Na postagem anterior diferenciei o não ser racista do ser antirracista. Gostaria de retomar rapidamente o ponto. A primeira posição é positiva, pois é como “ser honesto”, “não ser rude”, “ser caridoso” – valores que podem ser assumidos por todos sem que haja nisso uma vontade objetiva de agregação. Quem não se deixa corromper trabalhando no balcão de uma prefeitura não costuma se mobilizar para encontrar outros escrupulosos a fim de montar uma organização – Os Probos das Prefeituras – que não só diferenciaria as pessoas louváveis das condenáveis como criaria uma régua de graduações próprias sobre o que seria, de fato, a probidade. A honestidade, a cortesia e a caridade são predicados geralmente professados de modo individual e que não precisam de filiação, congressos ou fóruns para reunir quem a eles adere. Também não obrigam ninguém a seguir uma cartilha.
A segunda posição é ideológica – não é apenas um valor que orienta juízos e comportamentos, mas uma atitude política que tem muito mais rigor do que a simples “não discriminação de pessoas por critérios raciais”. Ser antirracista é aderir a um movimento que tem líderes, regras e rituais.
Nascido de uma mistura de revanchismo anacrônico, desejo de intocabilidade e aplicação de paranoia como método, o Antirracismo se desenvolveu rapidamente e foi da mera política à seita política. Tal como está, envolvido com negativos ismos – irracionalismo, anti-intelectualismo, dogmatismo –, só serve à danação dos adeptos e dos que, recusando o convite para a conversão, não conseguem mais viver sem receber acusações infundadas.
“Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista” é o novo “não basta ser contra a pobreza, é preciso ser esquerdista”. É possível ser contra a pobreza sem ser esquerdista – o combate à pobreza é muito anterior ao surgimento da esquerda – e é possível ser contra o racismo sem ser antirracista, não há dúvida. Mas fanáticos sempre querem nos fazer crer que não existe salvação moral fora do seu credo e que não adianta ser honesto, cortês e caridoso se você não for ao culto subscrever uma doutrina inteira que alega monopolizar os melhores valores. Fariseus continuam, desde tempos antigos, considerando que são superiores aos bons samaritanos porque observam uma formalidade severa e se reúnem no templo para dançar. Os contos do Novo Testamento deixam muito claro quem tem mais chances de ganhar o céu.
Os mandamentos da seita antirracista estão dispersos, mas podem ser encontrados nos escritos de seus teóricos e nos costumes recentes. Determinar, por exemplo, que tudo de negativo que ocorre a uma pessoa negra se deve a racismo não é algo que está evidente num manual ou numa palestra, mas sabemos, observando a construção das notícias nos jornais, a produção identitária acadêmica e as denúncias na internet, que esse é um comando sacramental que guia a análise dos discípulos do movimento. Ideias que não são ditas com clareza, mas que querem dizer muita coisa, podem viajar o mundo e afetar a todos. Quem propaga tudo isso sabe muito bem o que está fazendo. Num possível futuro de acerto de contas, os vigaristas de agora, satisfeitos com a incitação à guerra racial e à mania de perseguição, tentarão se safar da própria responsabilidade dizendo: “fomos deturpados”. Registrar o que está acontecendo neste momento contribui para que a notável falta de memória do brasileiro não permita a impunidade moral desse projeto de destruição.
Compilo nesta postagem os 10 mandamentos do Antirracismo para facilitar o reconhecimento desses comandos. Eles poderiam estar em menor ou maior número, a depender do nível de detalhamento, mas o número 10 combina com seu espírito religioso.
*
Primeiro mandamento: Nós vamos perseguir todos os brancos do presente pelo que os ancestrais de alguns desses brancos fizeram aos nossos ancestrais no passado.
O primeiro mandamento é anacronismo explícito. Marc Bloch, historiador medievalista francês que é um dos maiores nomes do entendimento contemporâneo da historiografia, escreveu, em Apologia da história: ou o ofício de historiador, que o anacronismo é o pecado mais imperdoável da “ciência do tempo”, ou seja, da História. Erra a História? Na verdade quem erra é o historiador.
Apesar de Apologia da história ser leitura básica das graduações da área, temos visto inúmeros historiadores identitários cometerem o pecado imperdoável do anacronismo, a saber: julgam o passado com as lentes presunçosas do presente. E não fazem isso como um pecadilho, uma nota de rodapé equivocada, uma análise rápida num parágrafo mal formulado. Cometem o pecado mais imperdoável de sua profissão de propósito. Da posição de “historiadores” – e não de comentaristas afoitos do G1 –, não só julgam o passado com as lentes de seu próprio tempo como fazem herdeiros sanguíneos de homens que viveram há séculos serem de alguma forma culpados pelos preceitos morais de seus antepassados.
As pessoas lá sabem o que fizeram seus 64 pentavós, 128 hexavós e 256 heptavós, mas o fato de elas serem brancas “prova” que seus ancestrais escravizaram negros – mesmo que esses ancestrais tenham chegado ao Brasil no final do século 19 com uma comitiva alemã ou italiana. E a cor branca, que denunciaria um passado “de escravizadores”, passa a ser a nova marca pela qual Caim é reconhecido como assassino em qualquer lugar pelo qual perambule.
Não tenho responsabilidade nem pelos erros que meus pais possam ter cometido. Se meu pai cometeu um crime punível com detenção, a Justiça não pode me prender para pagar por esse crime, já que meu pai está morto. Mas segundo o Direito Penal Antirracista tenho que responder inclusive pelo que fizeram meus 256 heptavós, que são:
Os pais
dos pais
dos pais
dos pais
dos pais
dos pais
dos pais
dos meus pais.
Imagine o cansaço existencial que sentiríamos ao carregar culpa ou responsabilidade pelo que nossos milhares de ancestrais desconhecidos fizeram de “errado” – sendo este “errado” julgado de acordo com pretensiosos de hoje a crer que se vivessem naquela época certamente não fariam parte de nenhuma opressão naturalizada. Não conseguiríamos sair da cama com essa carga ancestral pesando sobre as nossas costas.
Na internet – lugar aberto e plural em que as pessoas se sentem à vontade para “ser o que são”, seguindo de maneira fatalista e tonta a sugestão de alguns filósofos clássicos – já alcancei com facilidade submundos onde pessoas negras comemoravam o assassinato de brancos e diziam que “os Panteras Negras mataram pouco, tinham que ter matado mais”. E esses comentários não se referiam a “supremacistas brancos da Ku Klux Klan”, referiam-se a quaisquer pessoas brancas. A justificativa é a da “reparação histórica” (vingança histórica?), que faria brancos de hoje sofrerem alguma coisa do que negros sofreram no passado. É uma máquina do tempo perversa.
Como muitos brasileiros brancos têm ancestrais negros, não sei qual é o cálculo que radicais fazem para cobrar o aluguel da dívida histórica. E parece que não sabem fazer contas quando humilham como “opressor de passado escravocrata” um branco cujos bisavós vieram da Itália ou da Alemanha no final de 1800.
Segundo mandamento: Qualquer coisa de ruim que aconteça a uma pessoa negra se deve ao racismo.
Um alienígena inteligente que acaba de aterrissar no Brasil saberá, em poucos dias, quais características são consideradas ruins em nossa cultura. Ele verá que muitas pessoas chamam negros negríssimos com os quais simpatizam de “morenos” como forma de “ajudá-los”, evitando usar o termo mais adequado, que consideram desnobre. Ele verá que em jogos de futebol muitos homens xingam o árbitro da partida com termos como “veado” e “bicha”. Ele também verá que quando um gay assume um emprego ou chega numa nova vizinhança as pessoas fazem questão de comentar sobre essa singularidade do novato.
Ele verá que quase ninguém quer ser gordo – muito mais por razões estéticas do que de saúde –, que existe um mercado bilionário de dietas, que “gordo” é xingamento. Ele verá que sujeitos que fogem de certo padrão estético tendem a ser considerados menos bonitos que os outros: baixo demais, alto demais, esquelético, obeso, narigudo, com orelhas de abano, estrábico, pele de textura irregular, corpo desproporcional, deficiência física, etc. Ele verá que ser jovem é uma qualidade enorme, porque quase ninguém quer envelhecer. Ele verá que envelhecer é pior para a mulher, porque um ator bonito de 50 anos ainda é um galã desejado, mas uma atriz bonita de 50 anos tende a ser considerada velha demais para ser cobiçada sexualmente.
E ele verá que, dependendo do contexto, todas essas características “pejorativas” serão usadas para que seus possuidores sejam tratados diferentemente, de forma clara ou sutil. Uma pessoa bonita tem mais chances de conseguir certos empregos, uma mulher jovem tem mais oportunidades de escolher parceiros, uma pessoa branca de trajes medianos recebe menos olhares do guarda do shopping do que uma pessoa negra de trajes medianos. Ninguém precisará ensinar ao alienígena quais características tendem a aumentar o capital social e quais diminuem: em alguns dias de observação ele perceberá tudo isso.
Mas ele também perceberá que situações desfavoráveis atingem pessoas que não têm nenhuma das características consideradas desnobres. Ele verá que um homem jovem, branco e bonito deixou de ser contratado porque uma mulher mais velha meramente apresentável tinha um currículo melhor que o dele. Ele verá que jovens lindas são abandonadas por seus namorados. Ele verá que pessoas brancas deixam de ganhar prêmios literários aos quais concorrem. Ele verá que o mal-educado que interrompe mulheres também interrompe homens. Ele verá que uma pessoa com deficiência física que estudou em escola particular tem mais chances de ir bem no vestibular do que uma pessoa sem deficiência que estudou em escola pública. Ele verá que um homicida pobre e branco irá para a mesma cadeia que um homicida pobre e negro. Situações desagradáveis podem acontecer a todas as pessoas.
Radicais do movimento negro não veem as coisas dessa forma. Eles acham que fatos ruins acontecem a negros necessariamente por causa da sua cor. Um negro já está em sua terceira seleção empregatícia e não consegue a vaga? “Racismo”. Seria possível racismo se os radicais conseguissem provar que esse pleiteador negro tinha um currículo melhor – e uma desenvoltura melhor – do que os outros candidatos e mesmo assim não foi contratado. Sem essa prova, não se consegue garantir que um candidato negro foi preterido por racismo.
Geralmente candidatos negros são preteridos porque não têm o melhor currículo. Neste caso, podemos argumentar que a dificuldade de pessoas negras conseguirem um bom currículo se deve à condição social desfavorável de onde vêm, que dificulta sua ascensão estudantil e profissional. Note que afirmar isso é muito diferente de afirmar que “empresas não contratam negros porque são racistas”. Radicais não ponderam isso: preferem fazer o discurso impostor de que as empresas têm poucos negros porque os discriminam racialmente na seleção.
Com esse catastrófico mantra “tudo de ruim que acontece a um negro se deve ao racismo”, radicais falsamente “empoderam” negros. Na verdade fazem com que negros se tornem paranoicos e ressentidos, acreditando que vivem sob opressão constante e que todos os seus infortúnios ocorrem devido a uma perseguição dos brancos à sua cor.
Quando temos alguma característica considerada socialmente desvantajosa, podemos passar por situações negativas que outras pessoas presenciam em menor proporção. Há casos em que temos certeza de que somos discriminados por essa característica, mas há casos que geram dúvida – nestes, não temos como assegurar que fomos tratados diferentemente por causa da nossa desvantagem social. Sendo possível – nem sempre é –, devemos levar em conta outros fatores para tirar a prova se somos mesmo alvo de discriminação. Façamos isso antes de proclamar aos ventos que somos vítimas de um preconceito renitente.
“Aquele cara vive me interrompendo e fazendo longos monólogos explicativos sobre coisas que eu já sei. Machista, sem dúvida.” Sem dúvida? Para não ter dúvida é preciso observar um pouco mais:
1. Ele faz isso só com mulheres ou faz isso com homens também? Se ele faz isso com todo mundo, é mais honesto chamá-lo de mal-educado e autocentrado do que de “machista”. Reclame dos pais dele que o criaram de maneira errada, não do patriarcado.
2. Ele faz isso com a maioria das mulheres ou só com você? Às vezes a implicância pode acontecer não porque você é mulher, mas porque você é… você. Pessoas resolvem implicar conosco por razão consciente nenhuma, e às vezes a principal razão inconsciente não é o nosso sexo.
Existem inúmeros brancos que têm dificuldade de arranjar parceiros amorosos/sexuais. Existem inúmeros brancos que têm dificuldade de arranjar emprego. Existem inúmeros brancos que são tratados mal quando buscam atendimento. Existem inúmeros brancos que são desgostados por outras pessoas sem que consigam visualizar o motivo. Existem inúmeros brancos que são perseguidos por chefes, professores e outros indivíduos em situação de poder.
Ao contrário do que o movimento negro radical prega, um mundo não-racista não é um mundo em que tudo dará certo para as pessoas negras. Pois no mundo das pessoas não-negras inúmeras coisas dão errado também. Em sociedades predominantemente brancas há dor, rejeição, perda de emprego, atentados à honra, perseguição. Se na vida das pessoas não-negras acontecem coisas ruins, por que tudo de ruim que acontece na vida de um negro se deveria ao racismo? Não digo que nada se deva ao racismo – que ainda existe em nossa sociedade, manifestado especialmente na inferiorização da estética negra, no abuso de estereótipos negativos por policiais e na intolerância com religiões de matriz africana –, mas achar que ele explica tudo de ruim que ocorre com uma pessoa negra nestes tempos é muito equivocado e algo insano.
Tenho dúvidas se quem defende esse tipo de pensamento é ignorante ou na verdade muito esperto: quando você é um radical que alega que o racismo está em tudo, você está garantindo que exista relevância vitalícia para si mesmo na problematização de qualquer coisa na sociedade. Nossos teóricos radicais querem perder o prestígio que ganharam inventando problemas raciais no ar que respiramos e no rio em que nos lavamos? Não querem. Para garantir que possam se perpetuar até o infinito, criar problemas e aumentar a gravidade dos que já existem é uma jogada astuta.
Pense num cenário fantástico em que a maior parte das doenças foi curada e os médicos só têm doenças menores para tratar. Então alguns desses médicos, vendo que sua profissão está em risco de extinção, criam novas doenças, mas não só: eles criam doenças que são difíceis de mensurar e eles associam às doenças que criaram outros problemas não correlatos à saúde. Se ninguém os questiona, eles seguirão necessários para sempre tratando doenças que eles mesmos inventaram. E chamarão os pontuais questionadores de “malvados que desejam morar em uma sociedade doente”. A sociedade, acreditando que está doente, ficará ao lado deles.
*



Terceiro mandamento: Uma pessoa branca discordar de uma pessoa negra em assunto que diga respeito à negritude é racismo e abuso de privilégio discursivo.
É tendência mal descascada acreditar que “vivências” estão acima de todas as coisas. Se uma filósofa negra defende uma ideia que não procede – dados, estudos, bom senso não corroboram –, deveríamos nos calar em respeito à sua “vivência”, dizem. Já comentei sobre isso em outro momento e gostaria de repetir: considerar as experiências que as pessoas têm na vida é importante para que possamos compreendê-las. Não posso abrir uma fábrica de sapatos num país descalço sem considerar como são os pés de seus habitantes, o que os incomoda ao caminhar e como pensam que seria um bom calçado. Precisamos ouvir os outros, fazer o esforço de nos colocar em seu lugar e entender por que pensam como pensam.
Mas a importância da vivência cessa mais ou menos por aí. Quando dados mostram que brancos matam mais brancos e negros matam mais negros nos EUA, a “vivência” que diz que brancos são os maiores responsáveis pelo assassinato de negros norte-americanos é inútil e deve ser contestada. Sua “vivência” não lhe dá o direito de mentir estatísticas. Quando relatos históricos mostram que reis africanos se beneficiaram do tráfico de escravos e por meio dele enriqueceram seus reinados, a “vivência” que diz que “africanos foram totalmente coagidos pelos europeus a mandar escravos para o Ocidente” é mentirosa. Sua “vivência” não lhe dá o direito de ser um revisionista histórico maniqueísta. Quando uma enfermeira pede a um negro expansivo que faça silêncio no corredor da UTI, a “vivência” que diz que a chamada de atenção se deveu a racismo é incorreta. Sua “vivência” não lhe dá o direito de chamar de racistas quaisquer pessoas que o interpelam com razão.
As contestações ao movimento negro radical que alguns brancos fazem são também feitas por outros negros. Como esse movimento diz que “um negro não pode ser chamado de racista”, note o paradoxo: um branco que contesta uma estatística racial feita por militantes é racista, mas um negro que contesta a mesma estatística é… um traidor?
– Essa sua opinião sobre a negritude é bem coisa de gente branca privilegiada.
– Pesquisei muito para chegar a essa conclusão que você chama de “opinião”, mas se minha posição não serve por causa da minha cor, vou chamar para falar em meu lugar um colega negro que concorda comigo.
– Um negro que concorda com a sua opinião é um traidor.
Talvez devamos pensar na descrição de uma nova falácia: a falácia colorista. Retruca-se um negro no que ele disse de errado, e ele parte para a falácia de apontar a branquitude do retrucante em vez se ater ao conteúdo da contestação. Essa falácia pode ainda não ter sido nomeada e esmiuçada nos manuais argumentativos, mas já grassa na internet. Quem a utiliza pensa, em seu autoritarismo e ignorância, que encerrou a contenda.
Se o leitor não percebe a gravidade desse expediente, tente fazer o exercício com outras características:
– Os eixos desse gráfico sobre São Paulo estão arranjados de uma forma que induz a erro de análise…
– Não vou discutir isso com uma pessoa que nasceu em Petrópolis.
– Olha, na verdade dentro da África há alguns racismos entre os próprios negros…
– Você tem o cabelo liso e ruivo, não tem? Então fique quieto.
– Mulheres holandesas são comumente mais altas do que você escreveu em seu livro…
– O que uma anã entende de mulheres altas? Quando houver um estudo sobre mulheres anãs, aí você opina, certo?
A vivência é mais útil do que pensam os reacionários e mais inútil do que pensam os identitários.
Quarto mandamento: Quando pessoas brancas fazem críticas ao trabalho de pessoas negras – escritores, jornalistas, cantores, artistas plásticos –, isto é racismo.
Não me estenderei aqui porque logo publicarei um texto sobre a recomendação de “ler um escritor negro para se mostrar antirracista”.
Harold Bloom ficou conhecido como “bardófilo” (por sua devoção a Shakespeare), como competente analista do cânone da literatura mundial e como um dos primeiros grandes nomes da crítica literária a rejeitar a saga Harry Potter pelo que considerava miséria estética. Mas é sempre bom lembrá-lo como o teorizador da “Escola do Ressentimento”. Numa entrevista de 2005 para a Folha de S.Paulo, em que reclama do fascismo de esquerda e de direita, Bloom explica no que consiste essa escola que contaminou a academia:
“No mundo de língua inglesa, desde o final dos anos de 1960, os estudos literários ficaram mais politizados. O que ocorre nas universidades, hoje em dia, da Austrália aos Estados Unidos, da Grã-Bretanha à Nova Zelândia, é que as obras literárias utilizadas para o estudo são escolhidas não porque são esteticamente mais poderosas ou porque são mais sábias. O intelecto, a sabedoria e a beleza são substituídos por considerações acerca da orientação sexual, gênero, pigmentação da pele, etnicidade e assim por diante. É isso que quero dizer quando me refiro a Ressentimento, com R maiúsculo. Obviamente, estou jogando com o uso que Nietzsche fez do termo francês ressentiment, as instâncias do ressentiment.”
Em entrevista de 1994, também para a Folha, Bloom explica a motivação de seu livro A angústia da influência:
“Escrevi meu livro contra essa ideia de que o cânone morreu, de que Shakespeare não interessa mais porque é um europeu macho, branco e morto. Esse barbarismo tomou conta da imprensa cultural. […] “Apenas quis fazer uma elegia, minha elegia, à cultura ocidental, que esses submarxistas, subfeministas, submulticulturalistas e subcríticos de toda espécie acham que não é necessária à educação. Essas pessoas não sabem mais ler, desconfio que nem gostem de ler. Ler livros complexos dá trabalho, e essa gente é contra o esforço. Está dominada pela TV, pelo pop.”
E ainda, numa entrevista de 2014:
“É bobagem acreditar que você pode beneficiar grupos insultados, explorados ou desfavorecidos lendo e ensinando a ler obras menores só por causa da pigmentação da pele, orientação sexual, gênero ou origem étnica. Os departamentos de língua e literatura inglesa têm só 20% do número de alunos que tinham há 30 anos. Ocasionalmente vejo a lista dos cursos e sinto um calafrio. Vejo pessoas que não passam de vendedores de lixo sendo contratadas. Mas no máximo em cinco anos estarei morto ou incapacitado. E muita gente respirará aliviada.”
O único ponto bom de Bloom ter morrido em 2019 é não ter acompanhado a radicalização posterior da Escola do Ressentimento, que só lhe traria desgosto. A explosão que estamos vendo de autores negros na literatura não parece se dever à qualidade – Conceição Evaristo é muito ruim, Geovani Martins é apenas razoável –, mas à militância identitária. Se querem publicar e tem quem financie, que publiquem, certo? Certo. O incômodo não é esse. O incômodo é que esses novos autores identitários, que pegam atalhos por serem mulheres ou negros, são ruins e, ao mesmo tempo, intocáveis para a crítica.
Pesquisei demais para tentar encontrar críticas ao livro Olhos d’água, de Conceição Evaristo, e não encontrei. Só encontrei celebração. Somemos esses elementos: escritora negra que tentaram alçar à Academia Brasileira de Letras por meio de abaixo-assinado pedindo “diversidade” + livro de baixíssima qualidade + livro presente em lista de literatura para o vestibular da UFSC + autora-sensação da FLIP. Por que um combo como esse não gerou a merecida crítica à falta de dotes de Conceição? Porque criticá-la se tornou “racismo”, crueldade e ofensa à ascensão dos negros. Na literatura atual, autores incompetentes são recomendados e louvados por suas características de oprimidos, mesmo que não entreguem bons textos. E ler os bons textos do cânone em vez de autores negros atuais se tornou “não ser suficientemente antirracista”.
Se continuarmos nessa toada, logo valerá a pena ler somente autores velhos, e será bem calculado em matéria de probabilidade achar que livros novos provavelmente são ruins.
Quinto mandamento: Se uma pessoa negra acusa uma pessoa branca de racismo, não há o que se discutir: houve racismo. É desrespeito à vivência e sensibilidade do negro essa pessoa branca tentar se defender e negar sua motivação racista.
No dia 7 ou 8 de setembro de 2020, a jornalista Amanda Audi, até então do The Intercept Brasil, criticou em seu Twitter os pedidos de milhares de fãs do historiador negro Jones Manoel para que ele fosse entrevistado no Roda Viva. Ela disse que Jones era “treteiro de Twitter” e que ele não teria capacidade de responder perguntas no programa. Algum desses comentários é necessariamente racista? Não, mas os discípulos de Jones começaram a achincalhar Amanda, chamando-a desse xingamento que virou “bom dia” nas bocas e dedos lépidos dos inquisidores contemporâneos. Ela tentou se defender, mas não adiantou. Depois pediu desculpas, fez-se de tapete, mas também não adiantou. Jones disse que ela era “candidata à juventude da Ku Klux Klan” e que fazia “suco de bizarrice estilo colonizador belga”.
A autoimolação de Amanda na praça e ajoelhada no milho seco foi em quatro tweets, no dia 9 de setembro, que seguem na sequência em que foram publicados:
“Teve um texto muito legal na Piauí esses dias sobre a cultura do cancelamento – como é uma arma adequada aos nossos tempos e geralmente criticada por quem é branco. Concordei muito com o texto. Então não vou ‘pedir desculpas a quem se ofendeu’, mas repensar o meu posicionamento.”
“Entendo que, hoje em dia, não é suficiente discordar de ideias, é preciso levar em consideração recortes de raça, classe e gênero. E quem sou eu pra me afirmar certa? Estou nessa vida para aprender e ouvir as críticas que recebo.”
“Queria pedir desculpas. Tenho consciência que errei e em nenhum momento vou tentar me justificar. Tenho muito respeito por todes [sic] e não agi de maneira condizente com a luta antirracista, a qual entendo ser primordial.”
“Garanto que estou aprendendo com meu erro e farei o possível para que não se repita. Não era a minha intenção (mas sei que isso não é desculpa). Não quero vencer nenhuma discussão, apenas me desculpar.”
Linchadores virtuais conseguiram fazer Amanda ver racismo onde não havia, além de incentivá-la a bater o recorde de texto mais curto com menção mais numerosa à palavra “desculpa” e suas variantes. A jornalista, que é entusiasta do trabalho de tantos outros jornalistas negros, ao criticar um “treteiro” negro passa a ser racista – mesmo que em nenhum momento tenha feito qualquer alusão à cor de Jones. Criticar negros agora é racismo – pessoas negras são incriticáveis – e defender-se da acusação de racismo é “insistir no racismo”. Andamos em círculos dentro de uma seita que aponta racismo onde há apenas vida comum.
Um dia depois, o assunto “Jones vítima de racismo por jovem Ku Klux Klan do The Intercept” era enterrado. Num timing equivocado, Amanda Audi começou a falar sobre um suposto estupro que sofrera havia um ano. Entendo se o leitor achar que “não existe hora para não se falar de estupro”. Neste caso específico, discordo.
Sexto mandamento: Se uma pessoa negra acusa uma pessoa branca de racismo e outra pessoa branca diz que não houve racismo, isso se deve ao pacto narcísico da branquitude. Racistas defendem uns aos outros.
A tese do “pacto narcísico da branquitude” é realmente uma tese. Foi apresentada por Cida Bento, para obtenção do título de doutora, ao Departamento de Psicologia da USP. Pretendo lê-la um dia, mas no momento me contentarei com as sínteses de terceiros. Djamila Ribeiro explica:
“[…] um acordo silencioso entre pessoas brancas que se contratam, se premiam, se aplaudem, se protegem. Narciso era um jovem caçador e se achava tão belo que só conseguiu se apaixonar pela própria imagem. A sacada de Cida Bento em trazer Narciso para pensar a branquitude nos oferece um horizonte de possibilidades.”
Djamila usou esse pacto para explicar o racismo que ela sofreu (?) ao não ganhar o Jabuti quando concorreu ao prêmio pela primeira vez – quem ganhou foi Gabeira com um livro sobre democracia –, mas não quero me aprofundar nisso agora porque Djamila merece “ocupar os espaços” deste blog de forma mais ampla.
O ponto deste sexto mandamento é que, de acordo com o pacto narcísico, pessoas brancas “se protegem”. Isso significa que se meu amigo branco é acusado de racismo inconsciente, eu analiso o caso, não vejo nenhuma lasca de racismo e profiro “pessoal, não tem nenhum racismo no que o Mariano falou”, posso ser acusada de lançar mão do pacto narcísico da branquitude. Defender uma pessoa acusada injustamente de racismo já é racismo e ainda é um “racismo assinado num pacto”.
Não existe devido processo legal nem direito de defesa na jurisdição identitária. Josef K. não imaginava que sua agonia poderia ser ainda pior.
Sétimo mandamento: Se pessoas negras não estão representadas em profissões na mesma proporção em que estão representadas na sociedade, isso se deve ao racismo institucional presente até hoje entre nós.
Racismo institucional é racismo apoiado por empresas, por leis, por governos. É racismo geralmente vertical e foi comum no Brasil escravocrata e além. A Constituição de 1934 dizia que era incumbência da União, dos Estados e Municípios “estimular a educação eugênica”. Naquela época, intelectuais apoiadores da eugenia lançavam revistas sobre o tema, faziam reuniões e influenciavam políticas públicas que afetariam principalmente negros. Um decreto de 1945 assinado por Getúlio Vargas condicionava a imigração “à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”, como bem lembrou esta matéria da revista Superinteressante. Até meados dos anos 60 ou 70, alguns locais ainda praticavam racismo institucional: existiam clubes que não permitiam a entrada de negros. Um clube, assim pensado, pode ser visto como uma instituição.
O movimento negro alega que ainda existe racismo institucional no Brasil. Como faz isso se leis racistas não existem mais, se nossa Constituição rechaça severamente o racismo e se estabelecer que negros não podem frequentar dadas empresas, escolas e clubes pode ensejar processo, além de justa indignação midiática? Em seu livro Racismo estrutural, Silvio Almeida alarga o conceito de racismo institucional: passam a ser racistas as empresas que não tenham negros em seu quadro, são racistas os governos que não criam políticas públicas para melhorar a situação das periferias (mesmo que esses governos não estejam trabalhando para resgatar os brancos que moram nelas), são racistas as universidades que não ofereçam cotas raciais no vestibular. Tal alargamento do conceito de racismo institucional ajuda a vender o pânico de que o racismo está em tudo e é engendrado.
Esses dias uma professora universitária, socióloga especialista em gênero e raça, escreveu no Twitter que a exigência de conhecimento de um segundo idioma para concorrer a vagas na pós-graduação é uma forma de racismo institucional porque impede que pessoas negras que não puderam pagar cursos de línguas progridam na carreira acadêmica. Disse também que uma das suas melhores alunas do semestre não passou na seleção de mestrado por causa da prova de inglês. Desconheço mestrados que exijam nível de idioma que vá além do intermediário e acredito que com a ascensão da internet e da pirataria de livros não há mais desculpa para uma pessoa inteligente culpar “o sistema” por não saber o básico de inglês. A professora em questão, entretanto, prefere tirar a responsabilidade da aluna pelo seu fracasso – minorias não são mais estimuladas ao fortalecimento, mas à fraqueza e à culpabilização dos outros por essas fraquezas – e joga uma exigência elementar da pós-graduação no colo do alargado conceito de racismo institucional, para aprovação das quase 11 mil pessoas que curtiram o comentário. “Racismo institucional não existe mais no Brasil? Vamos arranjar que exista. Vamos aplicar esse nome tão forte a novas situações. Não vamos deixar que ele se perca.”
Como comentei na postagem anterior, quem aceita ser chamado de “racista” é o supremacista branco. As outras pessoas, as normais, têm pavor de receber essa pecha e podem querer fazer qualquer coisa para se livrar dela. É uma forma de coação dizer que o racismo institucional está entranhado nas empresas, e a tática tem dado certo: quem quer provar que seu negócio é antirracista tem obrigado os recursos humanos a fazer seleções artificiais para contratar negros. Afinal, ativistas não demandam testes cegos na contratação – ou seja, análise de currículo e entrevista remota sem acesso à imagem do candidato, o que impediria o contratante de manifestar qualquer viés implícito contra negros –, mas admissão de negros em seleção especial.
A análise socioeconômica feita pelo movimento negro tem um sério erro temporal. Alega-se que pessoas negras tendem a ser pobres HOJE por causa de racismo intenso e generalizado praticado HOJE. Tentarei corrigir o erro temporal desse pensamento e acho que isso merece destaque em parágrafo separado, portanto:
Com histórico de opressão que durou séculos, pessoas negras ainda hoje sofrem os efeitos de um racismo praticado abertamente no passado. Sua condição socioeconômica desfavorável é resquício de uma época em que o negro médio tinha pouquíssimos direitos, era discriminado, foi liberto de mãos vazias. Apesar de não termos mais racismo institucional, de o racismo manifesto ser execrado pela maioria da sociedade e de negros viverem em seu melhor momento histórico para prosperar no Ocidente contemporâneo, a herança maldita da escravidão ainda se faz presente na dificuldade que tantas pessoas negras têm de superar suas mazelas econômicas e sociais.
O que essa correção temporal muda na abordagem da causa negra? Muitas coisas. Quando se diz que negros são maioria nas periferias por causa de um racismo praticado hoje, somos pouco eficazes. Inventamos racismo para combater o racismo inventado com medidas que, socialmente, não alteram “as estruturas”. Mas quando colocamos a culpa no racismo passado e reconhecemos que aquele racismo escorre efeitos socioeconômicos ainda hoje, damos atenção ao problema que deveria ser priorizado: a pobreza. A pobreza traz consigo má estrutura familiar, mais filhos do que se pode criar, educação pública de má qualidade, poucas referências para estudar e prosperar. É a pobreza que hoje impede o negro médio de ascender na vida, não o racismo. O racismo pode explicar as causas à margem dos insucessos negros. A maior causa desses insucessos, todavia, é a pobreza. A pobreza dos negros de hoje não é apenas o sintoma de um racismo passado. A pobreza de hoje é a própria doença que deveria ser combatida.
Não temos máquina do tempo para corrigir o racismo de outras épocas. Mas podemos corrigir seus efeitos percebidos ainda hoje focando no combate à pobreza. Inventar que nossa sociedade atual é racista como em outros séculos não tem nenhum cabimento. A quem serve maquiar perversamente a realidade?
Não é à toa que alguns marxistas mais apegados à luta de classes como grande motor rejeitem o identitarismo. Quando se fala pelos pobres acima de tudo, faz-se um discurso unido que busca enriquecer quem está na base da pirâmide. Quando se fala pelos negros retintos aqui, pelas mulheres negras com deficiência ali, pelos gays indígenas acolá, o foco se perde. A estratificação identitária é danosa no combate à pobreza, que é a pior situação brasileira há muito tempo: impede nosso desenvolvimento, emperra a produção de riquezas, incentiva a proliferação de bandidos, inutiliza cérebros que tinham alto potencial, cria dramas familiares. A tara com identidades viajou do necessário entendimento de certas especificidades – a questão indígena é diferente da questão negra, a pauta das mulheres é diferente da pauta dos operários – para alcançar competição de opressões, exaltação das vaidades de meia dúzia e personalização instagramável das causas. São tantas as coisas que começam justas e desandam.
Por que pessoas negras não estão representadas nas empresas e universidades na mesma proporção em que se encontram na sociedade? Não é porque empresas têm um pacto da branquitude de não contratar negros ou porque professores universitários dão notas mais baixas a alunos negros, via de regra. É porque a questão socioeconômica dos negros está longe de ser resolvida. Que chance tem alguém de origem pobre de conseguir vaga de coordenador numa empresa quando está competindo com jovens que fizeram intercâmbio, falam duas línguas e participaram de cursos nos Estados Unidos? Que chance um pobre tem de estudar Medicina numa universidade pública quando seu ensino básico público foi uma droga?
No caso dos negros, muitos acham que a solução está nas cotas raciais. Mas isso é assunto para outro texto.
Oitavo mandamento: É impossível que uma pessoa branca não seja racista. Todo branco é de alguma forma racista e usufrui dos privilégios da branquitude.
Desconfio de livros que tentam se vender com a palavra “verdade”. Geralmente está no título ou no subtítulo algo assim: “a verdade sobre X”. Mas no último ano li excelentes livros estampados com a palavra “verdade” na capa – livros que não tratam da verdade sobre algo, mas tratam da própria verdade. São eles: O guia contra mentiras: como pensar criticamente na era da pós-verdade, do psicólogo e neurocientista Daniel J. Levitin, Sobre a verdade, do filósofo Harry G. Frankfurt (livro para uma sentada), Sobre a verdade, do jornalista e literato George Orwell (livro atualíssimo) e Verdade: 13 motivos para duvidar de tudo que te dizem, do consultor de comunicação estratégica Hector Macdonald. Recomendo todos.
No capítulo intitulado “Definições” do livro de Macdonald, o autor elabora a ideia de que mudar a definição de uma coisa muda o poder que ela alcança. No caso do feminismo, por exemplo, é comum que ao serem perguntadas se são feministas algumas pessoas primeiro queiram – com toda razão – estabelecer o que consideram feminismo para então decidir se se consideram feministas. Os mesmos sujeitos que não titubeiam quando são perguntados sobre igualdade de gênero sentem receio quando a palavra “feminismo” vem à tona.
Seriam sujeitos machistas? Geralmente não. Ocorre que o termo “feminismo” é positivo para alguns, mas negativo para outros, porque o movimento não se atém à igualdade de gênero nas oportunidades e no combate à violência contra a mulher. O pacote é inchado, às vezes injusto, em alguns momentos marcantes francamente anticientífico e histérico.
Se eu me responsabilizo em me nomear feminista sem oferecer uma explicação do que considero o feminismo, meu interlocutor pode sair acreditando que sou misândrica, que sou favorável a cotas para mulheres na política, que acho que o aborto deve ser permitido a qualquer tempo, que perco tempo com astrologia e participo de danças circulares. Então, por precaução, ou tentamos redefinir certos termos, ou preferimos prontamente rejeitá-los. Muitas mulheres modernas que se destacaram em mundos masculinos – Mary McCarthy, Dorothy Parker, Agatha Christie, Susan Sarandon – não queriam se declarar feministas. Certas ou erradas – acho que um pouco de ambos –, deviam ter seus motivos.
Um trecho de Macdonald explica bem o peso que a definição de um termo pode carregar perante a opinião pública e como melhorá-lo:
“Podemos alterar a definição de palavras através da associação com ações específicas, e talvez esse seja o caso de ‘Mulheres Contra o Feminismo’: se você testemunhar várias mulheres se identificando como feministas enquanto destilam ódio contra os homens, poderá realmente concluir que a definição de feminismo tem algo tóxico. Uma definição muito mais positiva apareceu em 2014, quando líderes políticos britânicos – homens e mulheres – posaram em camisetas produzidas pela organização Fawcett Society que traziam a mensagem ‘Esta é a aparência de uma feminista’. O líder do partido trabalhista e o vice-primeiro-ministro, ambos homens, foram fotografados vestindo as camisetas para a edição especial sobre feminismo da revista Elle. O primeiro-ministro David Cameron recusou o convite da Elle, mas declarou: ‘Se isso significa igualdade de direitos para as mulheres, então sim. Se é isso o que você quer dizer com feminista, então, sim, sou feminista’.”
Se é isso o que você quer dizer…
Tenho essa dubiedade com a expressão “racismo estrutural”. Existe ou não existe? Se com ela se quer dizer que o racismo está na estrutura da sociedade brasileira, pois passamos mais tempo com racismo do que sem racismo, existe. Se com ela se quer dizer que as pessoas podem, de forma não intencional, reproduzir práticas racistas que acabam inferiorizando negros, existe. Mas se com ela se quer dizer que o racismo contamina tudo na sociedade e que todas as mazelas que acometem negros hoje são explicadas por um racismo moderno tão presente quanto o ar, a expressão perde o sentido e se transforma em teoria da conspiração.
Recentemente o psicólogo norte-americano Bo Winegard propôs em seu Twitter uma enquete rápida: se o racismo sistêmico/estrutural a) existe, b) não existe, ou c) existe, mas não na proporção que os identitários alegam. Fiquei feliz em ver que a maioria marcou a terceira opção, ou seja, a maioria dos votantes não nega que o racismo ainda seja um problema da nossa sociedade, mas acredita que o movimento negro se excede ao defender que ele faça parte de tudo.
Dependendo de como se define o racismo estrutural, o conceito faz sentido. Tragicamente, nas mãos de teóricos radicais, passou a significar coisas levianas: que tudo de ruim que acontece a negros se deve a racismo, e que brancos são sempre racistas, em maior ou menor grau.
Na introdução ao Pequeno manual antirracista, Djamila Ribeiro demonstra o que o racismo estrutural se tornou na prática:
“[…] nunca entre numa discussão sobre racismo dizendo “mas eu não sou racista”. O que está em questão não é um posicionamento moral, individual, mas um problema estrutural. A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo? Mesmo que uma pessoa pudesse se afirmar como não racista (o que é difícil, ou mesmo impossível, já que se trata de uma estrutura social enraizada), isso não seria suficiente – a inação contribui para perpetuar a opressão.” (grifos meus)
Se você garante que sua crítica a um escritor negro de baixa qualidade não se deve a racismo, você está sendo racista. Se não percebe o racismo, “é porque ele é estrutural”. Se Amanda Audi menospreza um contemporizador de Stálin que move fãs no YouTube – e por acaso é negro –, ela está sendo racista. Se é impossível perceber onde estaria o racismo nas críticas que ela fez, “é porque o racismo é tão estrutural que as pessoas não enxergam quando o reproduzem”. No fim das contas o racismo estrutural tem sido usado para que radicais do movimento negro e seus aparvalhados discípulos possam chamar os outros de racistas sem precisar provar como chegaram a essa fatídica conclusão. Graças à “estrutura do racismo”, qualquer coisa e qualquer pessoa podem ser racistas, basta querer. Não há nenhuma lógica nisso, mas universitários hipnotizados aplaudem e jornalistas afastados do sentido questionador de sua profissão agradecem “pela conscientização”. Há mais loucos fora dos hospícios do que dentro deles.
Nono mandamento: Pessoas brancas são bem-vindas no Movimento Antirracista, desde que reconheçam sua participação no racismo sistêmico, reconheçam seus privilégios e aceitem se dobrar aos ditames de teóricos negros.
Humilhe-se e concorde. Se obedecer, você será bem-vindo. Mas não muito, pois vivemos um duplo conflito: se repudiamos quem não concorda conosco, temos menos respeito ainda por quem concorda com quase tudo. Por isso caçamos com tanta cólera quem está mais perto de nós e deixamos pra lá os grandes inimigos. Sabemos que temos poder sobre Lilia Schwarcz. Sabemos que não temos poder nenhum sobre Bolsonaro. Sabemos que podemos coagir as empresas a não usar palavras das quais não gostamos. Sabemos que não temos competência para perseguir neonazistas.
Décimo mandamento: Questionar qualquer um destes mandamentos é racismo.
Este mandamento tem outra versão similar: “Radicais do movimento negro nunca estão errados”. Assim se fecha a dúvida, o questionamento e o desvio. Com uma regra dessas, não há como não chamar o Antirracismo de seita. Pobres dos lúcidos do movimento negro que serão, cada vez mais, confundidos com os autoritários. Cederão a eles? Passarão a louvá-los? Vamos acompanhando. Até este momento, a maioria parece no mínimo cúmplice.
***
NOTAS
1. Está difícil escrever textos curtos. Temas complicados pedem postagens um pouco mais aprofundadas, então paciência. É o que tenho para oferecer. Sei que blogs deixaram de ser veículos para alcançar grande número de leitores, sei que o modelo das redes sociais em voga pede concisão porque poucas pessoas têm tempo e vontade de ler longos textos, mas não sei fazer muito diferente disso.
1.1. Muitos jornais deixaram de ter reportagens aprofundadas. Nos anos 90, Paulo Francis já reclamava no Roda Viva da morte das longas reportagens no Brasil. Se vivesse hoje, ficaria atônito e teria que se contentar com alguns jornais e revistas norte-americanos, como a New Yorker, que mantêm o modelo. Acho que no final da vida ele já não lia quase mais nada dos jornais nacionais, mesmo.
1.2. Não culpo os jornais, que se adaptaram ao novo leitor que a concorrência das redes sociais criou. O jornal pensa em custos e retorno. Se ele pagar jornalistas para escrever longas reportagens sobre determinados assuntos e tiver poucos leitores, faz sentido investir nisso?
Parece que os jornais brasileiros deixaram na conta dos livros a leitura de matérias compridas. Quem no passado lia extensas explicações sobre momentos históricos, crises econômicas e eventos culturais nos jornais, hoje tem que buscar esse tipo de material em livros. A troca não foi ruim, afinal.
1.3. A troca não foi ruim, mas a leitura fragmentada dos jornais – e das redes sociais – cansa. Cansa e parece alterar o modo como lemos os textos dos livros. Quando passo uma ou duas horas lendo jornal, depois paro e decido ler um livro, não chego ao livro com a cabeça de quem lê um livro. Chego ali com os olhos, o ritmo e a ansiedade de quem estava fazendo uma leitura de jornal. Vou lendo, vou lendo… e em algum momento, finalmente, encontro o tom correto para ler o livro. Ler jornal depois de ler um livro é bom. Ler um livro depois de ter habituado o cérebro a ficar uma ou duas horas lendo um jornal não é bom.
1.4. Não tenho nenhum estudo para embasar essa tese. Falo por experiência. Mas não duvido que haja algum estudo nesse sentido.
1.5. Também percebo que o tempo lendo livros parece passar mais lentamente do que lendo jornais e redes sociais. O tempo em redes sociais voa. O tempo nos jornais corre. O tempo nos livros passeia.
1.6. Leio muito jornal e coisas selecionadas em redes sociais especialmente para me informar. Não é a tarefa mais gratificante. Depois de passar duas horas na internet lendo coisas fragmentadas, não saio dela tão grata quanto saio após duas horas lendo um livro.
1.7. OK, OK. Aprecio memes também. Gasto tempo na internet vendo memes.
2. A dívida histórica é paga em forma de aluguel porque nunca terminamos de pagar os aluguéis.
– Eu gostaria de pagar à vista a quitação da minha suposta dívida histórica.
– Nada disso. Aqui é só aluguel. Você deixará de pagar só quando morrer.
3. Linchadores virtuais – que são bastante reais – se alvoroçam com ou sem pedido de desculpas daqueles que perseguem. Não pediu desculpas? “Ô, racista, não vai nem pedir desculpas e reconhecer sua nojeira?” Pediu desculpas? “Ô, racista, está achando que um pedido de desculpas é suficiente? Você só está se desculpando porque viemos aqui te linchar.” Não tem escapatória. Em algumas ditaduras, quando um artista faz um poema comparando suavemente o ditador a uma barata ele é preso ou executado. O outro artista que fez outro poema comparando o ditador a um rato e depois resolveu consertar a provocação com um poema comparando o ditador a um jardim primaveril – ele também é preso ou executado.
4. O livre arbítrio puro é uma ilusão, por isso acredito que exista racismo inconsciente, que Silvio Almeida prefere chamar de “não intencional”. Mas essa liberdade de uso do flexível inconsciente pelos agentes errados é temerosa. Existem psicanalistas que se agarram a suas teorias com tanto fanatismo que aquilo que foge das explicações cimentadas recebe a carta-coringa do inconsciente:
– Você odeia sua avó, é isso que vejo.
– Não odeio minha avó. Adoro minha avó e sou capaz de morrer por minha avó. Toda semana escrevo cartas para ela e já lhe doei um rim.
– Inconscientemente você odeia.
Se por um lado há presunçosos que negam as forças do inconsciente – tratadas não apenas pela psicanálise, mas pela psicologia social, gerando estudos interessantíssimos –, por outro há quem abuse do recurso. Acredito em racismo inconsciente. No entanto, não acredito que uma pessoa como Silvio Almeida – de fala mansa, rostinho simpático, mas radical – faça bom uso desse conceito. Boas ideias nas mãos erradas podem se transformar em más ideias.
5. Gosto do humor do Sacha Baron Coen. Gostei de Borat (2006), apesar do estresse desnecessário causado a inúmeros animais não-humanos, e coloquei Borat: fita de cinema seguinte (Borat, subsequent moviefilm…, 2020) na lista da Amazon para ver em algum momento. Vi esses tempos, após ouvir certo bafafá e elogios. E achei o filme novo muito ruim. Absurdamente inferior ao primeiro (piadas, ritmo, a inserção de uma filha que é constrangedora de tão sem graça, Coen em várias cenas parece cansado, etc.). Mas o que destaco dessa sequência foi a má-fé de querer forçar uma situação escandalosa em cima de Rudy Giuliani, ex-prefeito de Nova York e aliado de Trump.
Na cena mais polêmica – que é uma polêmica vazia –, a filha de Borat se disfarça de jornalista e vai a um hotel fazer uma entrevista com Giuliani. Os dois estão extremamente à vontade. Não é preciso ser nenhum mestre em leitura corporal para ver que Tutar (filha de Borat no filme) está dando em cima de Giuliani. Em vários momentos da editada entrevista, entre gargalhadas sapecas, ela coloca a mão no joelho de Giuliani e deixa a mão passear ali por um tempo. Ao final da entrevista, ele a convida para beber algo no quarto e parece que já vai começar a tirar as calças quando Borat aparece para “salvar” a filha daquilo. Daquilo o quê? A atriz de 24 anos propositalmente seduziu Giuliani, deu a entender que estava a fim dele e não foi forçada a nada. De repente isso se transforma num escândalo “vejam o que Giuliani estava prestes a fazer com a jornalista!” A única coisa obrigatoriamente errada nessa situação é que Giuliani, ao que parece, tinha uma namorada. Se eles não viviam num relacionamento aberto, traí-la é imoral. Lamento por Sacha Baron Coen embarcar na busca por esse tipo de polêmica. Muitos políticos americanos associados a Trump tinham uma porção de problemas a ser explorados. Querer fazer sexo com uma mulher livre que lhes dá mole e não é forçada a nada não é um problema – e não deveria ser uma polêmica.
5.1. Para destacar uma rara ideia boa do filme de 2020 estão as cenas de Borat com um casal trumpista que acredita em conspirações de toda sorte. Quando Borat vem com conspirações ainda piores, o casal lhe aponta os equívocos.
Coen já utilizou essa manobra em outros programas – testar o limite dos absurdos que as pessoas defendem – e ela quase sempre funciona bem. No Borat de 2006 um homem numa van de festeiros trogloditas disse que “as pessoas ainda deveriam poder ter escravos”.
6. Um documentário que recomendo e que está disponível na Netflix é Sour grapes (2016). Apesar de tratar de golpes no mundo enófilo, ele não apresenta uma trama instigante apenas para quem é apreciador de vinhos, pois a força da história está na construção detalhada de um golpista e na incrível existência de trouxas mesmo num ambiente elitizado que pareceria menos suscetível a tapeações.
O cinismo do advogado do golpista que aparece em poucos momentos também é aquele velho e recreativo cinismo tão típico dos advogados norte-americanos. Alguém deveria fazer uma série documental sobre os mais famosos desses advogados e as teses estrambólicas que eles inventam para vencer processos. Não quero parecer mórbida, mas para mim isso é entretenimento de alto valor.
7. Escrito ao som de Beastie Boys, “Root down (Free Zone Mix)”, e outras coisas.
(Postagem publicada originalmente no blog antigo em 16/11/2020 e atualizada em 24/05/2021.)