Li alguns excelentes livros em 2020, mas se tivesse que selecionar apenas um para recomendar ao leitor indicaria, sem pensar duas vezes, Sobre a verdade, de George Orwell, lançado recentemente pela Companhia das Letras. Esse livro é uma compilação de textos de Orwell sobre a manipulação dos fatos, a debilidade jornalística, a polarização (pois é) e a intocabilidade dos assuntos “proibidos”. Os textos são dos anos 30 e 40, mas parecem escritos para a nossa época. Ali está Bolsonaro, a Carta Capital, a Folha de S.Paulo, o esquerdismo, os lacaios da extrema-direita, as querelas sobre liberdade de expressão. Veja esse trecho de 1946:
“Considere, por exemplo, um confortável professor inglês que defende o totalitarismo russo. Ele não pode dizer explicitamente que ‘aprovo a eliminação física dos oponentes sempre que isso der bons resultados’. O mais provável, portanto, é que diga algo assim: ‘Embora reconheça de bom grado que o regime soviético tem certas características que o indivíduo humanitário talvez tenda a considerar deploráveis, creio que temos de concordar que certa restrição do direito à oposição política é uma consequência inevitável dos períodos de transição, e que os rigores a que o povo russo foi conclamado a suportar vão terminar sendo amplamente justificados na esfera das realizações concretas.’ O próprio empolamento do estilo é uma espécie de eufemismo.”
Defensores de regimes totalitários continuam os mesmos, rebolando para dar conta de justificar tiranias e brincando com a maleabilidade das palavras para ludibriar o interlocutor. Adiante o escritor diz:
“Tal fraseologia é necessária quando se quer nomear as coisas sem, ao mesmo tempo, evocar imagens mentais delas.”
Que esse problema tenha existido em 1946 – notável a ponto de Orwell achar importante escrever sobre ele – e ainda exista em nosso tempo só mostra como a História não ensina nada a quem não quer aprender coisa alguma.
Em outro texto, Orwell critica a impostura intelectual de não considerar que diferenças de grau são diferenças fundamentais. É comum: você rechaça determinada política e um relativista diz que alguma outra “também faz isso”. Está bem, mas na mesma proporção? Sabrina Fernandes, youtuber comunista, viajou pela falida Venezuela para apontar que os problemas que existem lá – pobreza, lixo nas ruas – “também existem no Brasil”, querendo dizer com isso que não há sentido em repudiar as condições de vida naquele país se nós passamos pelo mesmo. Mas nossos problemas ocorrem em igual medida? É correto querer equalizar, para fins ideológicos, um país que em 2020 tinha 80% da população vivendo em extrema pobreza e outro onde, de acordo com dados de 2019, a extrema pobreza não chegava a 10%?
Num texto de 1944 para o jornal Tribune, Orwell critica a desonestidade “do debate político em nossa época”:
“[…] quase ninguém parece convencido de que um oponente merece ser ouvido com isenção ou que a verdade objetiva importa, a menos que seja para marcar pontos na discussão. Quando repasso a minha coleção de panfletos – conservadores, comunistas, trotskistas, pacifistas, anarquistas ou o que for –, o que chama a atenção é que quase todos partilham da mesma atmosfera mental, ainda que com ênfase variada. Ninguém busca a verdade, todos estão defendendo uma ‘causa’, com total desconsideração pela imparcialidade ou pela veracidade, e os fatos mais patentemente óbvios acabam ignorados por quem não quer saber deles.”
Também não estamos diferentes nisso. Tenho acompanhado a radicalização de comentadores públicos que se recusam a ouvir e tentar entender opiniões que escolheram desprezar sem conhecer. O que conhecem delas são espantalhos e é contra esses espantalhos oportunos que se contrapõem. Operam como se a verdade fosse prerrogativa de uma corrente sagrada e às vezes até parecem ter por princípio marcar posição oposta a qualquer ideia que o “outro lado” expresse. Se uma popular pessoa de esquerda declarar que bolinhos de chuva são gostosos, algumas pessoas de direita passarão a detestar bolinhos de chuva e defenderão que comer esses bolinhos é beneficiar a esquerda.
Orwell repelia a ideia comum de que não se podia criticar a União Soviética porque isso seria “favorecer Hitler”, o que conduzia a outro pensamento que considerava ridículo: “trotskismo é fascismo”.
Mais dele, agora em 1945:
“Não só o nacionalista deixa de condenar as atrocidades cometidas por seu próprio lado, como também adquire a notável capacidade de nem mesmo tomar conhecimento delas. Durante uns bons seis anos, os admiradores ingleses de Hitler conseguiram não ouvir nada acerca de Dachau e Buchenwald. E aqueles mais veementes na denúncia dos campos de concentração alemães muitas vezes se mostram bastante inconscientes, ou apenas muito pouco conscientes, de que também existem campos de concentração na Rússia. Eventos tremendos como a fome na Ucrânia em 1933, causando a morte de milhões de pessoas, na realidade escaparam à atenção da maioria dos ingleses russófilos. Muita gente na Inglaterra não soube quase nada sobre o extermínio dos judeus alemães e poloneses durante a atual guerra. O seu próprio antissemitismo fez com que esse crime incomensurável mal lhe tocasse a consciência. No pensamento nacionalista, existem fatos que são ao mesmo tempo verdadeiros e falsos, conhecidos e desconhecidos. Um fato conhecido pode ser de tal modo insuportável que ele costuma ser colocado de lado e impedido de ser levado em conta em reflexões lógicas […]”
Somente fatos que confirmam o próprio viés são considerados, há orgulho na desinformação voluntária – mas opinante – e tudo é feito para manter a integridade da narrativa. Se os fatos não reforçam a narrativa, que se danem os fatos.
A revolução dos bichos (ou A fazenda dos animais, na nova tradução da Companhia das Letras), um clássico a denunciar o totalitarismo russo e que por analogia acaba denunciando características de outros totalitarismos, foi recusado por quatro editores antes de ser publicado. Numa das cartas de recusa, o editor diz a Orwell que
“[…] a publicação do livro no momento atual pode ser considerada de extrema inconveniência.”
O editor que dispensou A revolução dos bichos com essa carta achava inconveniente criticar a União Soviética num instante em que ela era uma aliada contra os nazistas. É no texto em que trata dessa recusa que Orwell aproveita para condenar a ideia de que existam “assuntos proibidos” – termos dele – e de que haveria momentos inadequados para falar a verdade sobre problemas de interesse geral por medo de beneficiar alguém.
A crítica ao Antirracismo enquanto movimento catastrofista, sectário e anticientífico é um dos assuntos proibidos da nossa época. Somos censurados ao tratar dele negativamente? Não de forma direta, na maioria dos casos, mas parece que as reclamações de Orwell sobre a censura ao tratar do totalitarismo russo cabem aqui:
“[…] devido a um acordo tácito generalizado segundo o qual ‘não convinha’ mencionar aquele fato em particular.”
E ainda, perfeitamente:
“Em qualquer momento dado, existe uma ortodoxia, um corpo de ideias que, supostamente, todas as pessoas bem-pensantes aceitarão sem questionar. Não é exatamente proibido dizer isto ou aquilo, mas dizê-lo é uma coisa que ‘não se faz’, assim como na era vitoriana falar de roupas de baixo na presença de uma senhora era coisa que ‘não se fazia’. Qualquer um que desafie a ortodoxia predominante se vê silenciado com uma eficácia surpreendente. Uma opinião genuinamente destoante quase nunca recebe a atenção devida, nem na imprensa popular, nem nos periódicos mais intelectualizados.”
O Antirracismo se tornou essa coisa que os bons meninos não criticam – “que maldade criticar, isso não se faz” –, o corpo de ideias que as pessoas “bem-pensantes” aceitam sem questionar. Como o movimento alega que aqueles que não o toleram são pecadores – “racistas” –, parece que todo mundo está entrando na onda, trajando a nova tendência – “Viram a última? É ser antirracista, está super in, é a calça saruel da vez” – e evitando colocar em dúvida seus dogmas. Censura tácita se transforma em autocensura.
Esse delírio coletivo poderia ter alguma graça se se mantivesse fervente apenas dentro de grupos desorganizados que tentam crescer em relevância na base do grito e da convulsão, mas quando você olha para a adesão acrítica dos jornais e da mídia em geral parece que o negócio é mesmo grave. Tratarei disso nesta postagem e na próxima.
*
Acompanho a maioria das edições do programa Roda Viva. Quando passo roupas, coloco um episódio recente; se nenhum episódio recente me interessa, coloco um antigo. Episódios antigos servem para informação, entretenimento e percepção das mudanças de ares no comportamento social. Uma edição de 1995 com Paulo Maluf mostra uma bancada de jornalistas defensores do direito de fumar em restaurantes e chamando de “protecionismo” a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança que o então prefeito impôs. Na entrevista que deu em 1990, Chico Anysio é perguntado: “qual é a coisa mais sem graça do Brasil?” Uma das coisas que ele elege é “a ministra Zélia”. Na entrevista de 1993, quando voltou ao programa… ele estava havia um ano casado com ela. Numa edição de 1987 com Dercy Gonçalves, a bancada dá gargalhadas quando a atriz está narrando um estupro que sofrera. Em vários episódios dos anos 80 e do começo dos anos 90 os entrevistadores da bancada fumam um cigarro atrás do outro, e há alguma edição – não me lembro qual – em que Cacá Rosset está na bancada aparentemente apenas para fumar, porque não faz pergunta nenhuma.
Tenho meus episódios favoritos. Apesar de não acompanhar Fórmula 1, gosto muito da entrevista do Piquet (1994) em que ele é franco ao explicar por que não foi ao velório de Ayrton Senna. Gostei muito da entrevista do José Wilker (1996), do Antônio Houaiss (1992), do Jô Soares (1990), do João Ubaldo Ribeiro (2012), do Marcelo Adnet (2020), do Ruy Castro (2016). A própria entrevista de 1990 com o Chico Anysio é muito boa (apesar de discordar de sua opinião sobre o TV Pirata). Acho que a estrutura do programa é ótima e que ele merece o valor que tem no debate público.
Todavia, parece que alguma coisa mudou neste ano, sob o comando da jornalista Vera Magalhães. Existe um tipo de entrevistado que não está ali para expor sua visão de mundo e ser confrontado nas opiniões polêmicas ou bizarras que defende. Existe um tipo de entrevistado que está indo ao Roda Viva tendo certeza de que estará num espaço seguro que servirá de relações-públicas para ele, pois sua participação no programa será para dar aula e fazer propaganda de si mesmo, e não para ser desdobrado pela bancada provocadora.
Enxergo um Roda Viva que é um Coliseu quando recebe um político, mas é frouxo quando recebe esse tipo de entrevistado especial. O Roda Viva que recebe pessoas da política é, pesadas as caricaturas hiperbólicas, assim:






Já o Roda Viva para “convidados especiais”, que são entrevistados de maneira também muito especial, é assim:






Em um de seus livros Djamila Ribeiro defende que mulheres negras deveriam receber a regalia de poder escrever ensaios com opiniões pessoais na universidade e que esta universidade deveria chamar esses ensaios de “ciência”. Ela diz que mulheres negras “são as pioneiras nas práticas feministas”, citando outra autora, sem provar historicamente o pioneirismo das mulheres negras no feminismo. Ela também afirma que não existe “competição de opressões” dentro dos movimentos identitários, mas algumas vezes ela mesma já desdenhou outras mulheres autodeclaradas negras porque não eram negras retintas – voltarei a isso em outro texto –, e já mandou, em redes sociais, que mulheres brancas soubessem seu lugar de fala devendo apenas ouvir o que negras tinham a dizer sobre negritude e racismo.
Ela diz, ainda, que universidades desprezam “epistemologias negras”, mas não dá nenhum exemplo prático do que seria isso. Para encerrar por aqui nos exemplos, tudo de ruim que acontece a Djamila é atribuído, por ela, ao racismo: quando não era chamada à TV, quando não ganhava prêmios, quando foi criticada por escrever uma dissertação ruim. Mas o que o Roda Viva fez em novembro, quando recebeu Djamila em seu centro? Tratou-a como guru. Artistas, comediantes e cientistas que vão ao programa são mais cutucados e vasculhados do que essa convidada de honra, recebida como a papisa da negritude.
Seguem resumidas as perguntas feitas à filósofa naquela edição mamão com açúcar:
1. O que a levou a escrever um livro didático sobre antirracismo? Como ele está sendo recebido?
2. É possível ser antirracista e logo depois ter um comportamento racista?
3. A coleção “Feminismos plurais” que você coordena é bem-sucedida. Ao mesmo tempo, você é best-seller, mostrando que havia demanda pelas questões raciais no público brasileiro. Quais os próximos passos do debate racial?
4. As pessoas estão polarizando em vez de construir pontes. Quais são as grandes estratégias para a construção de pontes?
5. No mês da Consciência Negra, como é que a gente faz para estourar as bolhas das redes sociais e começar a falar para as periferias, os porteiros, as domésticas?
6. Poderia falar sobre a importância do feminismo negro no Brasil?
7. Como você vê o papel do ativismo negro nas eleições?
8. Você acha que há um caráter de vira-lata no Brasil quando só se passa a valorizar as questões raciais depois do que aconteceu nos EUA?
9. Há mais candidatos negros nestas eleições municipais. Quais os desafios, oportunidades e estratégias neste momento? Como avançar a pauta negra na política?
10. A branquitude sempre se viu como muito intelectual, etc. Com a pandemia, as questões raciais ficaram em alta entre a branquitude. Como pode essa branquitude não entender nada sobre seu país? Quando a pandemia passar, os temas raciais deixarão de ser moda para eles da branquitude?
11. A língua portuguesa se desenvolve na configuração social do racismo. Como lidar com essa língua que reproduz racismo estrutural?
12. O presidente faz piadas racistas. Isso suscitou debate na sociedade branca e negra? Devemos apontar e expor o racismo para avançar para outro lugar?
13. Em qual projeto político você acredita para o Brasil? E quando você vai se candidatar a um cargo político?
14. Queremos votar em candidatas mulheres. Como avaliar se uma candidata está alinhada às pautas sociais?
15. Como você define o seu “ser liberal”?
16. Como você enxerga a branquitude brasileira progressista?
17. Numa live você se referiu a uma militante negra como “clarinha de turbante”. Como você entende o colorismo?
18. Numa sociedade que exige tanto da mulher negra, há espaço para que essa mulher possa apenas ser humana?
19. Como você vê o recente interesse das marcas na representatividade negra?
20. Como agir para que não se crie luta de classes dentro da própria comunidade negra?
21. Quais são os sonhos que você tem para si mesma e para a sociedade?
A única pergunta um pouco desconfortável foi a pergunta 17, feita por Vera Magalhães. Se você não viu o episódio, contudo, não pense que ela ceifou a celebração à mentora da questão racial brasileira. A única pergunta aborrecedora de Vera a Djamila foi envolta em folhas secas outonais e plástico-bolha. Se Djamila pareceu algo desgostosa com o tópico – tergiversou um pouco, mas disse, no meio da confusão argumentativa, que pessoas que se descobriram negras apenas recentemente têm que respeitar aquelas que sempre se souberam negras (?) – é apenas porque é insegura e teme mesmo o leve desconforto que pode abalar um reino assentado sobre a areia.
O programa bem poderia ter adaptado o cenário hospitalar para combinar com o clima do que vimos transcorrer ali: Djamila poderia estar sentada em almofadas coloridas no chão, alguns palitos de incenso estariam sobre a bancada, uma indiana tocaria, baixinho, uma cítara. Os mais animados poderiam acender um bagulho para compartilhar com os colegas naquela edição de grande bajulação.
Talvez você esteja se perguntando – ou me perguntando – se o Roda Viva é obrigado a ficar apertando seus convidados contra o canto da parede para mostrar que faz um jornalismo vigoroso e crítico. Não, não é obrigado quando está recebendo quem não oferece nada para espremer. Imagine um poeta apolítico conhecido por composições românticas e por levar uma vida muito discreta e até um tanto desinteressante. Não acho que a bancada tem que agitar a entrevista perguntando a ele, de maneira forçada, se é a favor da pílula do dia seguinte, se pensa correta a descriminalização das drogas e se prefere escolher morrer queimado ou deixar que três bebês morram queimados – só para que na mesma noite ou no dia seguinte jornais apresentem manchetes impressionantes como “Em rompante egoísta, poeta Armindo Sabiá diz que sua vida vale mais do que a vida de três bebês”, arruinando quem nunca se envolveu em polêmica. O mesmo não se pode dizer de uma convidada como Djamila Ribeiro, que, além de escrever e palestrar absurdos, ainda disse coisas mal embasadas no programa, para refutação de ninguém. Quando convidados especiais vão ao Roda Viva – ativistas –, o objetivo deixa de ser “vamos debater” e passa a ser “vamos aprender”.
Vou me ater a somente três pontos que poderiam ter sido questionados nas falas que Djamila fez durante o programa, pois foi isso que restou para uma bancada que parecia se dividir entre a) ela é minha amiga e estou aqui para ajudá-la no seu ativismo, b) vou entrevistá-la, mas não li direito seus livros nem conheço outra reação a seu respeito que não seja de louvor.
1. Ela disse que sua coleção de livros de bolso – “Feminismos plurais” – é um sucesso também por causa do “preço acessível”, mas qualquer um que tenha familiaridade com o valor dos livros sabe que títulos mais volumosos da editora L&PM Pocket custam menos do que os livros de Djamila.
Aqui em casa temos uma fórmula para averiguar se o preço de um livro sem muita excentricidade estética está adequado para figurar como “promoção”: se a editora está cobrando de 10 a 15 centavos por página, o preço é bom. Um livro da Companhia das Letras que não é de bolso, tem 200 páginas e está custando de 20 a 30 reais está num bom preço. Já o Lugar de fala de Djamila tem 89 páginas e paguei 16 reais por ele. Isso não é barato. Isso é um preço mais ou menos normal, talvez até um pouquinho caro. O livro parece barato somente porque é pequeno. Como Djamila só escreve livrinhos, quem não enxerga bem acha que suas publicações são “mais baratas, acessíveis para o bolso da periferia”. Não são. Isso é como dizer que é mais barato voar de São Paulo a Araçatuba do que de São Paulo a Montevidéu – “mais barato”, OK, mas quantos quilômetros o avião tem que rodar para ir a cada um desses lugares? Paguei 52 reais por Doutor Fausto, de Thomas Mann, que tem 624 páginas de tamanho grande, capa dura e tradutor. Este foi de fato um livro barato. Custou menos de 10 centavos por página. Para alguém que mora na periferia, pode ser um livro caro, mesmo que seu preço seja justo? É possível. Mas recomendaria à periferia que vá se abastecer de conhecimento nos sebos – que por muitos anos foram os únicos lugares de venda de livros que eu podia frequentar –, onde ótimos livros custam 5, 10, 15 reais, em vez de recorrer aos livros de Djamila Ribeiro por achar que eles têm valor mais acessível.
2. Esta deveria aparecer na postagem dedicada ao politicamente correto, mas quero falar dela aqui porque é pertinente. Ao responder à pergunta sobre o reforço que a língua portuguesa daria ao racismo estrutural, Djamila volta à reclamação sobre o uso do termo “escravo” em vez do termo “escravizado”, pois a palavra “escravo” denotaria uma “condição natural”.
Não entendo a origem desse quiproquó e se um dia descobrir que há uma boa explicação para a substituição de “escravo” por “escravizado” para além das alucinações lacradoras, farei questão de me corrigir. Enquanto isso, a Revista Aventuras na História explica rapidamente que no tempo dos césares o termo usado para o que hoje chamamos de “escravos” era servo, mas, como esses servos se tornaram semi-livres na Idade Média, outro grupo ocupou o lugar e seu nome virou termo para designar aqueles que foram tornados cativos: eslavos. Eslavos eram os povos do Leste Europeu que foram escravizados em massa na Alta Idade Média após serem derrotados em guerras contra os germânicos. Assim, “eslavo” virou sinônimo de escravo.
Quem deseja purgar a língua de todas as palavras cujas origens etimológicas e históricas possam ser negativas talvez se sinta compelido a rejeitar também a palavra “eslavo”, já que eslavos foram povos que viraram sinônimo de escravidão e, assim, deram para nós a palavra “escravo”. Não conheço os limites do politicamente correto – se é que há algum limite –, mas talvez seus adeptos se sintam incomodados com o uso contemporâneo de uma palavra que no passado esteve associada a algo ruim: “eslavos” e também “escravos”. Afinal, não há nenhuma informação segura de que a origem da palavra denegrir tenha querido dizer “rebaixar alguém aos negros de pele” e mesmo assim está todo mundo fora de si achando que associar a cor preta a algo ruim é obrigatoriamente racismo.
A militância alega que a palavra “escravo” estaria associada a uma condição natural e que devemos usar, em vez dela, “escravizado”. Essa variação serviria para nos lembrar que negros não foram traficados da África para o restante do mundo de maneira legítima. Mas alguma pessoa decente lê a palavra “escravos” em livros de História e pensa que aquelas pessoas estavam ali por uma condição natural? Não penso isso, suponho que o leitor não pense isso.
O purismo desnecessário dos ativistas serve para vender palestras e ter mais controle sobre setores da sociedade. Não parece que certas problematizações nada mais são do que criação de demanda por elucubração sobre problemas que não existem?
E ainda: vamos trocar “servo” por “servilizado”, “vítima” por “vitimizado”, “o militar” por “o militarizado” – ninguém “nasce” para as Forças Armadas –, “pobre” por “empobrecido”, “rico” por “enriquecido”? Nesse ritmo, teremos que criar também alguns neologismos para substituir os supostamente inaturais “mãe”, “pai” e “órfão”? Estou até me divertindo embarcando nesse delírio para encontrar palavras que militantes poderiam achar “problemáticas” porque estariam associadas a uma “condição natural, mas que é social”, só que o diabinho no meu ombro sussurra “você está dando ideia, você está dando ideia…”, então vou parar.
3. Djamila disse que se o Brasil fosse justo ela seria rica. Como a filósofa não é uma pessoa dada à piada intencional – todas as suas piadas são involuntárias –, parece que a fala foi pra valer. A bancada riu, e ninguém pensou em perguntar por que e como ela teria se tornado rica num Brasil justo. É por que ela se considera empreendedora? Para o entendimento de Djamila, como seria um Brasil justo? Seria um lugar sem racismo estrutural? Nesse caso, ela não conseguiria vender os livros que vende, pois em tese seriam desnecessários. Então em que se basearia a riqueza de Djamila? Um país justo seria um país que enriquecesse seus filósofos? Mas é justo que pessoas sejam ricas enquanto outras não são? Afinal, Djamila gosta ou não gosta da desigualdade? Não entendo e, a depender das próximas edições do Roda Viva entrevistando Djamila, nunca entenderei.
Políticos que aceitam ir ao programa têm que torcer para que o mote de que “não existe má publicidade” seja verdadeiro, mas ativistas do movimento negro radical podem escrever livros rasos, forjar estatísticas, criar narrativas mentirosas, tratar a língua como argila, inventar momentos históricos e incentivar a ideia de que negros estão vivendo sob os mesmos problemas do tempo escravagista (“açoitados”, como Djamila expressa dramaticamente falando da situação dos negros no Brasil atual): o Roda Viva sob Vera Magalhães não investigará e nem questionará nada disso. “Ser antirracista” é não se indispor com pessoas negras de esquerda (Sérgio Camargo está meio liberado para o achincalhe) mesmo quando elas promovem desastres.
*
Junho de 2020. Silvio Almeida, advogado, filósofo, professor universitário e ativista negro, esteve no Roda Viva como convidado remoto por causa da pandemia e porque naquele momento estava nos Estados Unidos, onde leciona. Registrarei aqui, resumidamente, as perguntas feitas a ele no programa porque acho informativo compilá-las para analisarmos como funciona o Roda Viva quando recebe convidados especiais. Pule essa parte, se preferir, porque são muitas perguntas.
1. Segundo você diz no seu livro, o racismo é sempre estrutural. Vimos agora a urgência da questão racial após a morte de George Floyd. Poderia falar um pouco do momento que o mundo vive e como ele se relaciona com a sua obra?
2. A agenda econômica que prega o Estado cada vez menor reforça o racismo estrutural?
3. É possível convencer os brancos a diminuir seus privilégios, que eles nem percebem que têm?
4. Você afirma que jornalistas, economistas, juristas desprezaram a pauta racial. O racismo é um projeto? Como podemos pensá-lo em relação ao poder?
5. Qual seu entendimento da necropolítica? Somos governados pela necropolítica?
6. Parece-me que o problema do sistema excludente é de ordem socioeconômica. Como diferenciar a questão racial da questão socioeconômica? O que diferencia um pobre branco de um pobre negro?
7. Temos um governo que nega o racismo e colocou na Fundação Palmares um negro que nega o racismo. Como o senhor encara esse governo e como vê o retrocesso desse governo para a questão racial?
8. Quais razões trouxeram as mulheres negras para esse lugar de destaque e liderança das questões raciais no Brasil?
9. Sabemos que há evidências do sucesso das cotas raciais. Como se explica a disparidade entre o entendimento institucionalizado das questões raciais e o debate público, que muitas vezes usa os termos “mimimi” e “coitadismo” para essa discussão?
10. É possível, no nosso contexto, falar em meritocracia no Brasil?
11. Nos jornais americanos há uma demanda por diversidade nas redações. Como a imprensa pode ser antirracista e como a imprensa tem reforçado o imaginário do negro? E como isso tudo é tratado comparando Brasil e EUA?
12. Eu queria voltar à questão dos “jovens negros brilhantes” que o senhor comentou. Sou professor em escola. Percebo que a discussão do racismo no Brasil está muito conceitual, muito abstrata. Eu li seu livro, mas percebo que meus alunos do ensino médio e básico têm dificuldade de entender o seu livro. O jovem negro, que em outras épocas era incentivado pelo movimento que lhe dizia “vai lá, você consegue, vamos te dar suporte” não está, hoje, com a tese do racismo estrutural, achando que o racismo o impede de dar o primeiro passo, sem conseguir se mover?
13. Poderia desmistificar a diferença entre racismo individual e racismo estrutural?
14. Por que no Brasil não surgem lideranças de massa capazes de tratar da questão negra?
15. Como combater o mito da democracia racial brasileira?
16. Nosso país tem 56% de negros que consomem muito. Por que os ganhos econômicos associados à diversidade não são capazes de reverter a postura racista do ambiente corporativo? O racismo é maior do que a vontade de ganhar dinheiro por parte das instituições?
17. A esquerda foi capaz de criar uma agenda em que a questão racial é tema central? Foi capaz de criar espaços de protagonismo para pessoas negras?
18. Como você responde às críticas de que as pautas identitárias dividem a esquerda?
19. Você é a favor de cotas para negros em candidaturas eletivas?
20. Como fica a situação do movimento negro que não faz mais o trabalho de tirar o negro de uma certa condição de suspeição – até para que ele tenha mais facilidade de conseguir emprego – ao mesmo tempo em que se preocupa tanto em criticar o sistema e o Estado? Como compatibilizar isso?
21. Como se contrapor à extrema-direita que usa as redes sociais para propagar racismo? Como usar as mesmas redes para o antirracismo?
22. Há um movimento feito por várias instituições de, em nome da diversidade, oferecer espaços a mulheres antifeministas e negros racistas. Qual é a sua avaliação disso? A briga é política?
23. Você é filho de um goleiro famoso do Corinthians. Você vê o futebol como superação ou reprodução do racismo?
24. Qual é o papel dos brancos no combate ao racismo?
25. Sobre derrubada de monumentos, como você vê a questão do uso dos espaços públicos e de memória histórica?
26. Como as crianças de hoje podem se preparar de uma maneira mais estratégica para viver numa sociedade destruída pelo racismo?
Inúmeras dessas perguntas são um espanto, mas já estou na página 9 do meu LibreOffice Writer e não pretendo comentá-las mais detidamente. Só quero destacar que a pergunta nº 2 é respondida com “sem dúvida” – portanto, liberais econômicos, na opinião de Silvio Almeida vocês são racistas –, respondendo à pergunta nº 11 ele diz que jornais que mostram negros cometendo crimes “reforçam o imaginário do negro como violento e bandido”, na pergunta nº 16 a jornalista Joyce Ribeiro dá a entender que o ambiente corporativo não tem tantos negros porque é racista hoje, e na pergunta 22 deveriam ter explicado o que consideram ser “antifeminista” e “racista”, dado o abuso dos significados reais desses xingamentos. Quando recusar o feminismo da quarta onda se torna “antifeminismo” e quando criticar a baixíssima qualidade de alguns escritores negros se torna “racismo”, em nome da honestidade é bom sempre definir esses termos antes de usá-los.
Nesse Roda Viva havia um “token do contraponto”: Paulo Cruz, filósofo negro que escreve para a Gazeta do Povo. Se você leu todas as perguntas acima, fica fácil descobrir quais foram as três perguntas feitas pelo Paulo. Não percebeu? Eu espero um pouco.

Encontrou?
Sim, as perguntas feitas pelo Paulo foram as de número 6, 12 e 20. Boas perguntas, mas numa roupagem muito constrangida, muito amedrontada, muito estou-deslocado-vamos-com-calma-rs. Antes de fazer uma delas Paulo elogia o livro Racismo estrutural de Silvio Almeida – acredito que mais por educação do que por achar, de fato, que é uma boa leitura –, e em alguns instantes ele ganha ironia de Almeida – “Ironia de Almeida”, um bom nome próprio – ao responder suas perguntas. Paulo era, ali, visivelmente um “negro incômodo” que fugiu do ciclo de puro louvor dos outros entrevistadores. Dá para ler a expressão facial de Silvio – “puta merda, lá vem esse cara agitar minha aula” – quando Paulo ganha a vez na roda.
Ocorre que Silvio Almeida não é nosso hipotético poeta Armindo Sabiá, monótono e com gosto de biscoito de polvilho. Se os entrevistadores tivessem lido o livro inteiro dele – não duvido que só tenham encarado as primeiras páginas ou feito aquelas leituras dinâmicas que para os homens comuns resultam em apreensão de apenas uma pequena parte do conteúdo –, haveria uma edição do programa só para questionar todas as improcedências que estão lá.
Com base em quê ele diz que empresas que têm poucos negros estão praticando “racismo institucional”? Com base em quê ele diz que o Direito atual reproduz racismo? Com base em quê ele afirma que “o Brasil não experimentou desenvolvimento ao longo de sua história, mas somente o crescimento econômico” se não existe nenhum dado que corrobore isso? Ele acha que estamos em 1800 nos direitos para os negros brasileiros?
Silvio passa dezenas de páginas de seu livro demonizando o capitalismo, associando-o à escravidão e ao racismo – como se tal sistema fosse responsável direto por essas coisas – e não nos diz claramente que modelo econômico ele gostaria de implementar no lugar. Comunismo? Por que nenhum entrevistado perguntou isso? Por que nenhum entrevistado questionou a visão de Silvio sobre o Brasil atual – uma espécie de assíduo Mississípi em chamas (Mississippi burning, 1988) – e sua tese de que “a modernização é racista”?
Durante o programa ele diz que “existem camadas da economia em que o racismo é um grande negócio” – por que ninguém pergunta que camadas são essas e como elas estão se beneficiando do racismo? Quando ele diz que jornais “reforçam o imaginário do negro como violento e bandido”, o que ele de fato quer dizer? Que os jornais não deveriam mostrar as fotos de bandidos quando eles forem negros? Mas já não está suficiente que em casos de negros assassinados por brancos os jornais avisem a cor da vítima, fazendo o público pensar que sempre que um negro morre nas mãos de um branco isso se deve a racismo? (Como se negros não matassem brancos e negros não matassem, principalmente, negros.)
Sintonizando Orwell, parece que questionar Silvio Almeida é algo que “não convém fazer” e que desafia certa ortodoxia e corpo de ideias de nossa época: de que um intelectual negro está sempre certo sobre questão da negritude. Almeida é ideólogo do catastrofismo, do anacronismo oportunista, da falsa guerra racial brasileira e do pânico racial. Confunde questão socioeconômica com racismo e finge que não sabe que negros pobres são as maiores vítimas de outros negros pobres. Mas jornalistas que deveriam abordá-lo com veemência sobre os despropósitos que escreve resolvem niná-lo e protegê-lo de qualquer dissabor e desconforto discursivo.
“Intelectual”, que palavra vazia. Silvio é “intelectual” que inventa a realidade – ambições literárias transpostas para o cotidiano? – e não prova com dado nenhum muitas das coisas que afirma. Por que não aproveitam para chamá-lo de “cientista” também? E que tal “especialista do mundo todo”? E quem sabe “pós-doutor do universo”?
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O Antirracismo é o assunto sagrado do nosso tempo, a nova “verdade” que tantos engolem sem avaliar. Quando o jornalismo larga o espírito questionador que é a função primordial de sua existência para tratar o Antirracismo como um fato dado – como já foi fato dado, incontestável, que o Sol giraria ao redor da Terra –, fica impossível não pensar que o país se transformou num manicômio cheio de dopados. Se uma classe que deveria desembaraçar as coisas para nós está mais preocupada em posar de humanista do futuro e propagadora de uma suposta virtude, fica difícil cobrar das pessoas comuns que desafiem tendências ideológicas que contaminam programas de TV, universidades, artes, empresas e tribunais. É ilusão pensar que não teremos novos Copérnicos e Galileus a pagar pelo apontamento de uma realidade que ninguém quer ver.
Não acho que em terra de cegos quem tem olho é rei. Acho que em terra de cegos quem tem olho é rechaçado.
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NOTAS
1. Numa página vegana foi colada uma matéria sobre exploração animal na Coreia do Norte. Uma minoria conspiratória disse que a matéria era mentirosa e que a mídia estava tentando destruir a reputação daquele país “só porque é de esquerda”. Perguntei a uma jovem: “se você acha que a Coreia do Norte é um bom país para se viver, por que ainda está aqui no Brasil?” Ela respondeu: “você acha que eu já não teria me mudado se pudesse?”
Há não tantos anos assim muitos otimistas pensaram que o desenvolvimento da internet traria informação e conhecimento fácil para todo mundo, criando oportunidades para que o ser humano atingisse “o seu melhor”. Mas num momento em que a internet está na mão o tempo todo, quase 22 mil pessoas escolheram se informar pela página O outro lado da Coreia do Norte. Às vezes dá pena olhar para isso. Às vezes dá vontade de iniciar uma vaquinha virtual para comprar passagem apenas de ida para que todas essas pessoas possam ir para o país de seus sonhos conhecer esse tal “outro lado”.
2. Quando João Ubaldo Ribeiro morreu, em 2014, eu nunca tinha lido nada do que ele escrevera. Não dei atenção ao fato. Comecei a lê-lo somente em 2019 com o maravilhoso e divertido Noites lebloninas, e há pouco terminei de ler Viva o povo brasileiro, uma obra que parece ter sido escrita por alguém que superou o homem – que é sobre-humano e troca figurinhas com os deuses num patamar que a imensa maioria de nós não consegue alcançar. Aí comecei a viver um luto atrasado, agoniada porque não tínhamos mais esse gênio erudito, de camisa entreaberta e chinelos, chamado João Ubaldo Ribeiro, que morreu sem terminar um livro e tinha dito a um amigo que deixaria suas memórias para a alta velhice. Se tivesse que escrever seu obituário – algum dia gostaria de escrever os obituários de todos os mortos que admiro –, intitularia assim o texto: “Morre um universo”. Vi Ubaldo no caixão, em fotos, e não pude deixar de pensar que o universo que era tinha sido encerrado quando um pedaço de carne ia começar o processo de putrefação pelo qual passam tantas outras pessoas menos nobres.
2.1. A morte é danada e absurda. Apesar de me conformar com ela, às vezes me pego pensando em como nos deixa numa situação de perguntar “é isso mesmo?” e ter que responder “sim, é isso mesmo”. Ocorre quando me lembro que meu pai está morto, quando me lembro que Albert Camus está morto e tem acontecido quando lembro que Ubaldo está morto. Uma coisa tão natural que é, ao mesmo tempo, tão absurda e tão estranha.
2.2. Sempre que paro para olhar essa manchete do Combat de 1960 que escolhi para estampar o título do blog – “Albert Camus est mort” –, vem esse pensamento: “é mesmo, que absurdo, Camus está morto”.
3. Comentei com meu namorado que ia fazer um desenho comparando duas versões do Roda Viva. Uma versão incisiva e uma versão frouxa, celebrativa. Falei que a versão celebrativa se chamaria “Roda Morta”, e aí ele disse que também poderia se chamar apenas “Viva!”. Gostei mais dessa sugestão e por isso usei no desenho. Fica aqui o crédito da ideia 🙂
4. Um fenômeno das eleições municipais de 2020. Lembra daquele sujeito que contemporizou a ascensão de Bolsonaro ao poder dizendo que “ele não conseguirá fazer as coisas que defende, pois nosso sistema político impede medidas aberrantes”? É o mesmo sujeito que fez pouco-caso do fato de Bolsonaro defender torturadores como Ustra, Pinochet e Stroessner (e agora também Mohammad bin Salman). É o mesmo sujeito que, chamando todo mundo de “não pragmático”, pronunciou nas redes sociais que “não importa o que Bolsonaro fala, importa o que ele faz, seus tontos”.
Pois esse jactancioso, esse patife moral estava na esquina alertando a todos, com seu megafone, que em Porto Alegre uma comunista era candidata à prefeitura. Por que o duplo padrão de indignação? Alguém sinceramente acha que Manuela D’Ávila fecharia a câmara de vereadores, governaria sozinha e imporia a leitura de Marx nas escolas? Alguém sinceramente acha que Manuela D’Ávila faria uma revolução socialista em Porto Alegre e que seus opositores seriam fuzilados? Alguém sinceramente acha que ela implantaria uma ditadura do proletariado nos moldes dos ditadores que ela suaviza, como Stálin? Ora, “é só o jeitão dela, ela não vai conseguir implantar aquilo que defende”. “Vamos nos preocupar com o que ela faz, não com o que ela fala”. “O que o elogio a ditadores influencia num governo democrático? Preocupem-se com coisas mais relevantes!”
Faça esse balanço nos discursos de supostos “isentões” e verá que o genuíno “isentão” quase não existe. Ele urra e range dentes diante dos erros de um lado, mas faz apenas uns murmúrios diante de erros igualmente tenebrosos do outro lado.
Nós somos o que somos e nossas contradições. Num mundo complexo em que não conseguimos perceber todos os ângulos de uma questão e onde somos governados por forças inconscientes que nem enxergamos direito, é difícil manter um discurso coerente e impecável o tempo todo. Mas há certos contraditórios que são apenas canalhas. Não confunda “erros humanos comuns e compreensíveis” com canalhice calculada, repetida e vergonhosa.
4.1. Isso não é uma defesa de Manuela D’Ávila, que é autoritária, cínica, oportunista e tem ditadores no bolso. Para coroar a desestima, posso dizer que ela frequentemente tem na cara uma das expressões que considero mais desagradáveis, que é esta:

Sem tempo de avaliar tudo que nos cerca, criamos atalhos (preconceitos, estereótipos, cálculo de probabilidades) para encurtar a conclusão e a ação. E digo, de acordo com a minha experiência, que pessoas que vivem com essa cara

não costumam ser pessoas legais. Tendem a ser pessoas vaidosas, pedantes, indispostas ao diálogo com divergentes, “régias”, vangloriosas, sensíveis à crítica (critique uma unha delas e receba como réplica a crítica a seu bairro inteiro e o envenenamento do seu poço artesiano). Algumas apresentam momentos de brilho que são aproveitáveis – boas análises, atinadas críticas que fogem da mediocridade –, mas é melhor olhar de longe e com óculos escuros. Às vezes nem isso.
4.2. Outro fenômeno das eleições municipais de 2020. Num texto recente sobre bolsonaristas, escrevi que o povo cria conexões com políticos por bobagem. Há quem pense que “Bolsonaro é um de nós” ao vê-lo comendo pão com leite condensado no café da manhã e miojo no Japão. É trágico que tantas pessoas valorizem políticos por causa disso, mas, ei, “se Bolsonaro faz, será que não deveríamos fazer também”? Foi assim que Guilherme Boulos transformou certas simplicidades de sua vida em estratégia de ligação com o eleitor. Não sei se isso veio de sua cabeça, da cabeça de sua mulher ou de alguém de seu partido com visão para essa tática – que funciona –, mas Boulos andou aparecendo por aí passando café na pia de uma casa modesta e associando seu caráter a seu Celtinha prateado.
4.3. E um terceiro fenômeno das eleições municipais de 2020. Boulos, que já participou de live usando camiseta com a cara do ditador Fidel Castro, fez uma campanha falando de “amor” e dizendo que “o amor vai vencer o ódio”. Eu, talvez você e quem sabe um terceiro leitor torcemos o nariz para essa palhaçada publicitária, para esse crochê dourado em capa de botijão de gás, mas sabemos que a narrativa virtuosa arco-íris-todas-as-tardes-para-todos-ao-som-de-Carpenters angaria voto.
4.4. Jean Wyllys, do PSOL, que já se fantasiou de Che Guevara para sessão de fotos, fez um exílio voluntário em Berlim. Por que não foi para Cuba? Por que os defensores de Cuba não têm interesse em ir para lá definitivamente? Quando fazem um passeio rápido, por que só visitam Havana – suficientemente ruim, mas bastante melhorada para encantar turistas? Será que é porque a internet lá é lenta, cara e controlada? Como tagarelar diariamente contra o capitalismo num país assim?
Anticapitalistas querem reclamar do capitalismo morando em países de intenso capitalismo; criticam o capitalismo enquanto se beneficiam dos privilégios dele. Existem países onde o capitalismo é menos pronunciado – por que quem o abomina não busca se mudar para esses países? É uma pergunta séria, não é mera provocação.
4.5. Um site escreveu, em tons elogiosos, que Cuba é um ótimo lugar para turistas aproveitarem para fazer “detox” de redes sociais, e que a internet ruim, cara e limitada “faz parte da magia de estar em Cuba” (grifo meu). Achei muito bonito quando o personagem de Roberto Benigni, em A vida é bela (La vita è bella, 1997), tentava transformar as desgraças de um campo de concentração em algo mágico e corriqueiro para apresentar ao seu filhinho. Isso que fazem com Cuba – “ah, as delícias e maravilhas de um país atrasado!” – é apenas vexatório.
4.6. A vida é bela foi o primeiro filme que vi no cinema. No Brasil, ele passou em 1999 e meus pais me levaram ao cinema para comemorar meu aniversário de 9 anos.
5. Quase não acompanho o Oscar e acho que não vi metade dos filmes que foram indicados ao prêmio nos últimos anos. Gosto de filmes, mas não vejo com muita frequência e ainda tenho o hábito de velha de gostar de rever várias vezes os filmes cuja qualidade já garanto.
Então foi somente esses tempos que vi o documentário Ícaro (Icarus, 2017), que venceu o Oscar em 2018 e está na Netflix. Para quem ainda não viu, recomendo. Trama: um documentarista que é também ciclista está investigando a diferença de resistência física ao passar a usar drogas para participar de competições. Sem querer, envolve-se com um cientista russo e acaba participando do maior escândalo de doping da história da Rússia.
6. Obrigada pela leitura e até a próxima!

7. Texto escrito ao som de Slum Village, “We do it (Jazz Spastiks Remix)”, e outras coisas.
(Postagem publicada originalmente no blog antigo em 10/12/2020 e atualizada em 27/05/2021.)