A seita antirracista (Série “Radical do Movimento Negro”, texto nº 1)

Esta é a primeira postagem da série “Radical do movimento negro”. Na série falarei sobre termos politicamente incorretos, paranoia, cotas raciais, negros “incômodos” para o movimento, blackface, colorismo, derrubada de estátuas, jornalismo frouxo que serve como relações-públicas de teóricos radicais, aliciamento da mídia, sistema carcerário, estereótipo policial, a recomendação de “ler escritores negros”, dentre outros assuntos. Tentarei fazer uma análise justa e realista das pautas caras a esse movimento e ao identitarismo em geral, o que significa que precisarei jogar luz sobre questões embaraçosas à manutenção do discurso militante. A realidade, afinal, não corrobora boa parte dessas narrativas.

 
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Acompanhamos um novo acirramento da futebolização da vida. Se o futebol e outros esportes competitivos foram bons substitutos do impulso de guerrear, o mesmo não se pode dizer quando seus procedimentos são assumidos no debate público, destruindo a vontade de compreensão e a postura conciliadora para dar lugar a fanatismo de torcida e afronta desnecessária a discordantes suaves, que passam a ser vistos como inimigos. A internet funcionou como uma plataforma eficaz para esse processo de radicalização porque em muitos casos extremou os extremistas em vez de abrandá-los pelo acesso ao cosmopolitismo ideológico. Aliás, esse conhecimento do mundo parece ter contribuído para que alguns passassem a combater coisas que anteriormente ignoravam, mostrando que não adianta muito ampliar o território de um indivíduo se ele não tem as ferramentas adequadas para explorá-lo. Um analfabeto dentro de uma grande biblioteca não serve para nada. Ele pode até começar a sentir raiva dos livros, que não compreende.


Embora facilitando pluralidade e informação, a internet criou pontes entre fanáticos espalhados pelo globo. Em grupo, eles se tornam mais fortes e organizados, além de melhor habilitados a tentar converter outras pessoas até então razoáveis para sua causa. Não faz sentido demonizar as redes de computadores pelas trevas nela veiculadas – seria como culpar as companhias telefônicas pela corrupção política que é negociada nas suas linhas –, mas é interessante constatar como quem é destinado à destruição (figura de linguagem) vai achar meios de canalizar esse desejo num ambiente aberto, pouco controlado e criado com boas intenções. Falo de “ambiente pouco controlado” mais como constatação do que como crítica, pois sei que não é difícil vislumbrar um cenário em que serão os fanáticos a determinar alguma parte essencial dos limites sobre a liberdade, visando a satisfazer seu lado. Isso já não está acontecendo de certa forma? 


Esse desastre civilizatório que não é novidade, senão um déjà vu histórico, atinge inúmeros grupos, mas nesta série me dedicarei a tratar da ala radical do movimento negro que o adota. 


Especifico como “radicais” os sujeitos a que me referirei porque sei que muitas pessoas envolvidas no combate ao racismo não pactuam com a tática de exército apropriada por membros do movimento negro que trocaram o sentido de justiça pela ardência por vingança. O movimento negro é útil e essencial num país de longa tradição escravocrata que sente até hoje os efeitos da inferiorização de pessoas negras. Já o movimento negro radical é danoso, odioso e afoito por abraçar condutas racistas para supostamente “acabar com o racismo”. Não quer harmonia, mas caos, humilhação dos sutilmente desviantes, revanche anacrônica e privilégios de intocabilidade, irrefutabilidade e sacralidade. E está sendo muito bem-sucedido nisso graças à estratégia discursiva que adotou, à amplitude que alcançou e ao medo que tantas pessoas têm de refletir sobre as novidades que as afetam – ainda mais quando há essa ameaça de “se você não concorda conosco e não se rende a todos os nossos dogmas, você é racista”. 


As únicas pessoas que aceitam ser chamadas de racistas são aquelas que se orgulham de seu racismo, como os supremacistas brancos. Para parecer relevante e angariar discípulos imbuídos de culpa, o movimento negro radical precisou ampliar muito o rol de racistas, e tem chamado de racistas justamente tantas pessoas íntegras que têm pavor da pecha e podem querer fazer qualquer coisa para se livrar dela logo – inclusive aderir a uma seita da qual não participariam em outro momento menos desesperante. Tal como está colocado o Antirracismo, uma pessoa que não reze conforme a cartilha e não dê as tais “demonstrações antirracistas” frequentes – que dizem respeito a uma conversão aos mandamentos da seita, inquestionáveis – torna-se racista


Como nosso impulso religioso aparentemente calcado na biologia não se manifesta apenas no louvor a deuses, quase tudo na sociedade pode sofrer um desenvolvimento de devoção e se transformar em seita delirante. Essa característica tão humana da qual a maioria não consegue se desvencilhar – mesmo tantos ateus que substituíram Deus por religiões seculares como o marxismo e o partidarismo político – impede o primado da razão e promove embates por crendices. Sistemas de ideias que começam bons podem degringolar para agrupamentos religiosos que operam de maneira autoritária, dogmática e ritualística. Com o movimento negro não foi diferente. Olho para a histeria da religião antirracista e olho para outros cultos – estão postas inúmeras similaridades. 

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Aqui é necessário fazer uma graduação. Lavadores cerebrais tendem a ser muito mais pérfidos do que lavados cerebrais. Teóricos do Movimento Antirracista têm conseguido converter muitas pessoas: algumas se tornam gêmeas desses teóricos, outras apenas seguem a corrente de forma alienada e apaixonada. Das últimas conseguimos sentir pena porque percebemos que são vítimas de um sistema que pensam ser íntegro de ponta a ponta, mas que foi desenvolvido justamente para ser indubitável (como uma seita) e foi gerado a partir de ódio e paranoia alimentados por alguém num quarto mofado às três da manhã.

Há moções que nascem de uma vontade coletiva natural, e há moções que nascem da conspiração de um ressentido isolado e se tornam, por eficiente persuasão dele, problema coletivo. O ressentimento isolado nem sempre é negativo – existem avanços sociais que nasceram de justa amargura elaborada na cabeça de um iluminado que percebeu o que ninguém percebera antes –, mas mesmo na hipótese de ser positivo ele pode facilmente abusar do alcance dos seus efeitos. Ao recordar de personagens históricos que provocaram mudanças amplas, para o bem e para o mal, é interessante especular como estaríamos hoje se eles não tivessem existido. Um indivíduo sozinho tramando mobilizações que afetarão a todos pode ser valioso ou muito perigoso.

Quando vejo pessoas que eu considerava algo sensatas aderindo aos ditames do Movimento Antirracista e reproduzindo suas sentenças como se professassem uma fé, sinto como se tivesse perdido alguém para a Cracolândia ou para alguma igreja neopentecostal. Espero que um dia possam sair de lá, mas sei que não é simples. Não tenho a mesma benevolência simpática com os mal-intencionados.



Diferenciemos duas coisas: 


a) Não ser racista; 

b) Ser antirracista. 


Parecem iguais, mas são diferentes. A diferença é que “ser antirracista” não é apenas uma posição moral e atitudinal, mas de adesão a um movimento político liderado por radicais a quem não basta não discriminar negros. O antirracismo aspira a que as pessoas pensem que negros devem ter privilégio discursivo – para compensar os séculos sem privilégio –, que negros estão vivendo em condições semelhantes às do período escravocrata, que negros passam por opressão o tempo todo no Ocidente, que negros são massacrados por uma certa supremacia branca que contaminaria as instituições, que tudo de ruim que acontece a negros se deve a racismo. “Ser antirracista” se tornou um selo que abarca muito mais conteúdo do que o “não ser racista”, cuja simplicidade de “não discriminar pessoas pela cor da pele” já deixou de ser suficiente dentro de um movimento que sempre demanda mais e mais sacrifício dos seus adeptos. Um movimento que tem franca ambição de ser necessário para sempre criando problemas onde eles não existem e atribuindo a problemas que existem uma causalidade que não procede.


O Antirracismo partiu de uma premissa inescapável. Sempre comento isto, e repito: os grandes movimentos que se declaram virtuosos têm um discurso simples no instante de cooptar os ingênuos. Eles te perguntam, buscando sua conversão: 


– Você acha que homens e mulheres deveriam ter direitos iguais? 


Existe apenas uma resposta aceitável para essa pergunta. Você diz “sim”. Eles dizem: 


– Está vendo, você é feminista. 


Só que a evangelização não para por aí. Se você assume “bem, parece que sou mesmo feminista, então”, haverá um livro de regras severas para adotar. Chamam de “feminismo” quando afirmam que é preciso apoiar uma alpinista social que mentiu que foi estuprada por Neymar. Chamam de “feminismo” quando uma universitária de Belo Horizonte monta um esquema de abortos clandestinos em que ela mata, com medicamentos veterinários, fetos de até 7 meses, pois “o corpo é da mulher e ela faz o que quiser com ele”. Chamam de feminismo dizer que “todos os homens são potenciais estupradores”. Chamam de feminismo colocar em redes sociais e em banheiros públicos nomes de homens que são “mulherengos” ou não ligaram no dia seguinte. Chamam de feminismo quando mulheres frustradas expõem seus maridos em páginas da internet para reclamar que eles não dividem as tarefas domésticas, não têm a performance sexual desejada e são bananas. Chamam de feminismo ser contra a revista Playboy e, ao mesmo tempo, postar inúmeras fotos de si mesma seminua e sensual no Instagram. 


No livro As armas da persuasão, o psicólogo social Robert Cialdini explica como funciona esse mecanismo de começar assumindo um leve compromisso e terminar adotando uma corrente de ideias aparentemente similares para manter a coerência: 

Depois que fazemos uma opção ou tomamos uma posição, deparamos com pressões pessoais e interpessoais exigindo que nos comportemos de acordo com esse compromisso.”

Ou seja, é preciso tomar cuidado com qualquer compromisso inicial que você possa vir a assumir com um movimento (político, social, religioso), porque muitas vezes, de forma automática, seu cérebro quererá assumir outros compromissos desvantajosos apenas para manter a coerência: 

“Ao ser coerente com as decisões anteriores, a pessoa reduz a necessidade de processar todas as informações pertinentes em situações semelhantes futuras. Em vez disso, basta que recorde as decisões anteriores e reaja em consonância com elas.” 

O mecanismo de compromisso e coerência, portanto, inibe a reflexão (não é errado dizer que ele economiza o raciocínio) e tende a fazer com que embarquemos cada vez mais fundo num conjunto ideológico pelo temor de parecermos incoerentes. 


No mesmo capítulo em que trata disso o autor mostra como rituais de iniciação severos aumentam a coesão do grupo e o engajamento daqueles que se sentem maravilhados por vencer exigências difíceis antes de ter o direito de fazer parte do grupo: 

“Está provado que, quanto maior o esforço envolvido num compromisso, maior será sua capacidade de influenciar as atitudes da pessoa que o assumiu.” 

O compromisso é perigoso porque, se simples, pode levá-lo a assumir outros mais elaborados que venham depois, com vistas a manter a coerência. Mas se o compromisso for rigoroso e você depender dele para participar de algum grupo almejado, ao vencê-lo você se sentirá orgulhoso e gratificado, e tenderá a ser mais fiel ao grupo. 

“Enquanto as pessoas gostarem daquilo que lutam por conseguir, esses grupos continuarão promovendo ritos de iniciação desagradáveis. A fidelidade e a dedicação dos novos membros aumentarão muito as chances de coesão e sobrevivência do grupo. De fato, um estudo de 54 culturas tribais descobriu que aquelas com as cerimônias de iniciação mais dramáticas e rigorosas exibiam a maior solidariedade grupal […]. Dada a demonstração de Aronson e Mills de que a severidade de uma cerimônia de iniciação aumenta substancialmente o comprometimento do novo membro com o grupo, não surpreende que os grupos venham a se opor a todas as tentativas de eliminar esse vínculo crucial para sua força futura.” 

Cialdini trabalha principalmente sobre exemplos de iniciação universitária aplicada contra calouros, provas de treinamento militar e rituais de passagem sofridos que transformam meninos em homens numa tribo do sul da África. Ele não faz comparações desses rituais com movimentos ideológicos, mas eu farei. Todos os rigores que determinados grupos têm promovido para melhor controlar seus membros fazem parte dessa operação de tornar mais valioso aquilo que é mais difícil de ser alcançado e formar futuros radicais intransigentes, fiéis aos ditames do grupo. 


Momento 1 – Cooptação; ou abordagem para um programa vespertino no canal GNT 


– Você é a favor de direitos iguais para brancos e negros? – Sim. – Então você é contra o racismo. 


Momento 2 – Controle, coerência com o compromisso assumido, coesão 


– Bem, como sou a favor de direitos iguais para brancos e negros, sou antirracista. – Isso não é ser antirracista. Assim é muito fácil ser antirracista. – O que tenho que fazer para ser antirracista? – Leia esses livros. – [enquanto folheia e lê trechos] Mas são muitas regras, são muitos detalhes… – Ora, se você prefere continuar sendo um racista… – Não sou racista. – É o que muitos racistas falam. Se você se beneficia de uma sociedade racista (e vivemos em uma, sem dúvida) e não tem demonstrações antirracistas nessa sociedade, você é racista de alguma forma. Não basta dizer que não é racista, é preciso ser antirracista. – E para ser antirracista preciso fazer o que está escrito nesses livros? – Sim. – Lutarei para conseguir esse selo, então. 


Momento 3 – Transição que ainda permite o aparecimento de dúvidas 


– No geral, concordei com esses livros, mas esses trechos aqui não procedem… – Por que não procedem? – Porque não é dessa forma que negros são tratados na sociedade atual. – E você é negro, por acaso, para saber como negros são tratados? – Desculpe, não sou, mas observo com atenção o que acontece ao meu redor. – Você discorda desses trechos porque você é racista. – Como assim? – O racismo cria essa condição em que brancos sentem que teóricos negros falam coisas que não os agradam, não os beneficiam. Com isso, sentem medo de perder seus privilégios. Discordar do que teóricos negros falam sobre racismo é racismo. – Não posso discordar, então? – É prepotência racista discordar dos ensinamentos de teóricos negros. Tudo isso faz parte do plano racista generalizado de manter privilégios brancos. – Sem perceber, estou sendo racista? – Obviamente. – Nossa, parece que o plano racista da supremacia branca é mesmo poderoso. Sou racista sem perceber. Perdoe-me. – É disso que estamos falando, também, quando falamos de racismo estrutural. Procure melhorar. 


Momento 4 – Radicalização plena 


– Estão dizendo que as estatísticas sobre assassinato de negros estão erradas nas conclusões a que chegam. – Racismo. – Sem dúvida. É preciso ser um sujeito muito opressor e malvado para questionar estatísticas sobre morte de negros feitas por membros do movimento negro. E agora uma historiadora branca está escrevendo um livro sobre a escravidão brasileira. – Quem tem que escrever sobre a história da escravidão são os historiadores negros. Até na escrita da história dos antepassados de negros os brancos querem ter protagonismo? – É, essa racista ainda não quer abrir mão de todos os seus privilégios. – E o político branco de esquerda que fez uma piada de sentido duplo com o termo “Casa Grande”? – Racista. Tem que se desculpar. – Já se desculpou. – Não basta. É fácil ser racista e depois vir se desculpar por medo de perder privilégio branco. – Concordo. Falam coisas que violentam negros e impedem sua existência, e depois acham que um pedido de desculpas é suficiente. A punição tem que ser maior. (…) Que livro é esse que você está lendo? – Um livro do Raduan Nassar. – Um bom escritor, de esquerda e tudo, mas no momento que estamos vivendo não seria melhor priorizar a leitura de autores negros? Com a opressão que negros viveram e ainda estão vivendo, não acha que é melhor apoiá-los como uma forma de ação afirmativa cultural e pessoal? – Faz sentido. Lerei Chimamanda Adichie. Homens brancos já foram contemplados com leitores por séculos. 


Outra função do rigor é fazer com que sempre exista algo que necessite de conserto na sua conduta. A exigência despótica de conformidade estabelece o comando das mentes. Participar de grupos pode ter alguns benefícios para animais sociais como os seres humanos, mas o controle que eles têm sobre nós faz com que nos obriguemos a abrir mão da liberdade, em maior ou menor grau. 


E acrescento ainda mais uma função ao rigor: cria a ilusão de que o arcabouço teórico do grupo é complexo, sério, acadêmico. Nos últimos anos o mercado editorial foi inundado por livros abordando o problema da negritude. Ideólogos do movimento negro têm dito que é preciso ler esses materiais antes de dar opinião sobre aquilo de que tratam. Ao seguir a recomendação e lê-los, é possível perceber que eles se empenham numa problematização profunda da questão negra moderna, parecendo mesmo, num primeiro momento, discorrer com detalhe sobre o que não poderia se encerrar num folheto. Mas ao analisar o texto com mais ceticismo e atenção, palavra por palavra, alusão por alusão, é possível verificar que parte do que está ali é retórica vazia e parte é conclusão improcedente. O que sobra de útil e verídico não é muita coisa. Neste caso, a problematização profunda serve apenas a ela mesma e a um engodo. 

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Você assume um compromisso aparentemente fácil. Você quer manter a coerência. Você tem pavor da possibilidade de ser chamado de “racista”, esse adjetivo tenebroso, e aceita assumir novos compromissos. Para ser um antirracista de verdade, você precisa passar por todo um ritual de humilhação, autoimolação, negação do seu eu pecador anterior, assunção de culpa pelo que fizeram seus ancestrais, culpa por ter uma vida razoável enquanto pessoas negras nas periferias estão sem emprego, culpa por ter usado palavras “violentas” contra a negritude, culpa por ter nascido branco (pecado original), admissão de privilégios, delação de pessoas que ainda são pecadoras, adoção de terminologia adequada, adoração de líderes negros que determinam como você deve pensar e o que deve pensar, apagamento de um passado em que você lia mais pessoas brancas do que pessoas negras, aprendizagem diária de dogmas que não devem ser contestados, pedidos constantes de desculpas que não são facilmente aceitos, ameaças de ser expulso do grupo se não se adequar, exaltação dos eleitos contra os que irão para o inferno. Se você está disposto a passar por esse ritual de iniciação antirracista – que é um ritual de conversão religiosa, e não de “conscientização”, como eufemistas têm floreado –, quando sentir que está pronto para ser condecorado será quase impossível tirar você de lá. O ritual terá cumprido seu papel, e receber o direito de participar desse grupo tão difícil tornará você um fanático radicalizado. Agora você não é apenas contra o racismo. Você é um antirracista


Depois de suas relações sociais girarem ao redor desse clube, depois de suas escolhas profissionais serem feitas pensando em se aprofundar nele, depois de sua reputação como “grande companheiro do clube” ficar consolidada, depois de todos os seus textos longos mostrarem fidelidade ao clube – você não terá cara, honra e coragem para abandoná-lo com facilidade se um dia acordar e perceber que “ei, estamos defendendo coisas extremas e vigilância policialesca até do que os outros sussurram nas alcovas”. Colocar todas as suas fichas de vida num grupo radical é uma receita para a agonia se você um dia “mudar de ideia”: será difícil abandonar algo conquistado e construído com tanto espetáculo e fanatismo. Ao conseguir abandonar o grupo, aqueles que ficaram te chamarão de “traidor” e farão questão de considerá-lo ainda pior do que quem nunca esteve no grupo; e do “lado de fora” do grupo você precisará não só criar relacionamentos novos como terá que aguentar alguns depositários da memória a lembrar constantemente quem você já foi


Tenha consideração pelo seu eu futuro. Pense duzentas vezes antes de mergulhar apaixonadamente num clube exigente. Concorda com algumas ideias de determinados clubes? Defenda-as isoladamente, evitando se comprometer em ser rotulado como membro deles. E se um dia precisar entrar em algum – porque há momentos em que precisamos nos unir para atingir um objetivo maior de interesse coletivo –, já deixe claro, no formulário de inscrição, que manterá seu direito de pensar sobre certos assuntos caso a caso e que seu comprometimento com o grupo não é nem cego, nem vitalício. 


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Quem não percebe o que o Antirracismo está se tornando está mal informado ou talvez já um tanto dominado pela propaganda de que ele é uma virtude e está em busca de um “bem maior”. Tem sido comum que absurdos defendidos por radicais negros sejam aceitos como verdade irrefutável – mesmo que se apresentem dados honestos para contestá-los. Nesse caso, os dados passam a ser racistas também. Seitas são assim. Contra dogmas, não há fatos, e apresentar fatos que desmentem os dogmas da seita é heresia. Sejamos mais hereges ante essa nova inquisição. 

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NOTAS


1. O impulso religioso calcado na biologia humana – que ganha proporções perversas graças ao desenvolvimento cultural – é tão forte que mesmo muitos ateus e agnósticos procuram teorias irracionais às quais se agarrar. A quantidade de mulheres ateias que creem em astrologia é alta, e algumas delas se sentem muito à vontade para criticar a “guerra à razão” do brucutu Bolsonaro como se tivessem envergadura para ser guardiãs da ciência. A conduta religiosa pode ser aplicada a tantas coisas – há até quem se apegue a defender a panaceia de um alimento como se ele fosse uma deidade –, e uma parte considerável da sua atuação se explica pela vontade de pertencimento do indivíduo. Em síntese, carência. A mulher ateia que fica bailando com a descrição do seu signo, do seu ascendente e da sua Lua quer alento dos astros, quer sentir que o espaço sideral lhe dá importância e que há uma força maior enigmática que a rege. Dependendo do nível de maluquice e egocentrismo fracassado, é muito mais proveitoso travar diálogo com um religioso do que com uma adepta da astrologia. 


1.1. De uma perspectiva histórica e folclórica, a mitologia por detrás dos signos é muito interessante. Gosto especialmente das histórias que envolvem meu alegado signo, Áries, e os outros signos de Fogo. Mas quem se encanta pelas histórias de Zeus tende a não acreditar que ele fez tudo que humanos imaginativos disseram que ele fez, certo? Isso não acontece com a Astrologia. Ela está em voga, não é tratada como curiosidade antiga ou brincadeira, pessoas que se pensam inteligentes acreditam de fato que suas imundícies, presunções, tendências ao barraco e rancores são explicados pelas energias astrais que (uau) alteraram seus cérebros de acordo com o dia e a hora em que saíram das vaginas maternas. 


Porque, afinal, acreditar que sua personalidade é influenciada pelos astros é isso: o corpo recebeu alguma energia (um gás?) astral que o alterou dependendo do momento em que foi colocado para fora da barriga da sua mãe. Se o médico demorou para tirar seu pé lá de dentro – a hora considerada do seu nascimento é quando seu corpo inteiro está para fora –, isso pode mudar o seu ascendente (!), então uma mãe astróloga poderia pedir para o obstetra esperar mais um pouco para tirar o último pé do bebê de dentro dela a fim de controlar a tal energia que determinará a personalidade mais vistosa, externa, que é regida pelo signo ascendente. 


Perguntas: 


a) As tais astrólogas ateias não devem acreditar em alma, suponho. Então o gás astral que atua na hora do nascimento gruda sobre o cérebro, não sobre a alma, também suponho. Neste caso, bebês anencéfalos não têm signo? 


b) O horário de nascimento do bebê é marcado pelo momento em que ele sai por inteiro do corpo da mãe. Como é o raciocínio do gás astral que se impede de atuar na personalidade do bebê quando somente sua cabeça está para fora da vagina da mãe, mas vem com tudo quando o último pé é retirado lá de dentro? O gás astral senta no ombro do obstetra e fica aguardando que o último dedinho do bebê venha ao mundo para então agir sobre a personalidade dele? 


c) Existem exemplos estudados de pessoas que mudaram de personalidade após sofrerem lesões cerebrais. As lesões alteraram o gás astral também, já que alteraram a personalidade dessas pessoas? E será que a mudança de personalidade se deu mais por causa do dano cerebral ou por causa do vazamento de gás astral? O ovo ou a galinha da teoria da personalidade astral? 


d) Ainda no caso de pessoas com lesões cerebrais que mudaram de personalidade: podemos dizer que mudaram de signo ao observar seus novos comportamentos ou isso é uma blasfêmia à astrologia? “Nossa, ele era tão Virgem, mas depois do acidente está totalmente Leão.” 


e) Por que gêmeos univitelinos são tão parecidos em personalidade, mas gêmeos bivitelinos tendem a ser diferentes se todos nasceram praticamente juntos? Cientistas falam de genética, mas como os astros explicam isso? 


f) Bebês que morrem durante o parto: eles têm signo? E é possível determinar seu ascendente, já que seus corpos saíram mortos da barriga da mãe? 


1.2Fazendo uma pesquisa, descobri que há mães que fazem seus filhos nascerem prematuramente porque não querem que eles nasçam sob certos signos. 


1.3Fazendo uma pesquisa, descobri que “animais têm signos”. Uma astróloga disse que cachorros que trabalham farejando drogas para a polícia provavelmente têm em seus mapas astrais (!) alguma tendência ao sucesso para isso demonstrada na casa do mapa que trata de profissões (!). Cachorros. Com mapas astrais. Determinados astrologicamente para o sucesso em certas profissões. 


1.4. Não descobri se insetos também têm signos. 


1.5. Mulheres que estão querendo reconhecimento discursivo na sociedade precisam rever o delírio astrológico. Parem de envergonhar nosso gênero com esse atestado de falência da razão, com esse terraplanismo que tem muito mais adeptos entre as mulheres. “Mas é só por diversão.” A partir do momento em que você gasta várias horas do seu mês para ler/falar sobre isso, a partir do momento em que você muda a forma como se relaciona com os outros com base em seus signos e a partir do momento em que você paga para alguém fazer seu mapa astral – acabou há muito tempo a “mera diversão”. Busque tratamento. 


2. É sabido que sou favorável ao aborto até por volta de 10 semanas de gestação porque até esse ponto o feto não é muito melhor do que as pessoas que são legalmente desligadas de máquinas nos hospitais por causa de morte cerebral. E o argumento da “potencialidade” é muito fraco – quanta “potencialidade” está congelada em forma de embriões em clínicas de reprodução assistida sem que ninguém proteste seriamente contra essa suposta imoralidade. Quando vi a chamada do Fantástico sobre uma estudante de Belo Horizonte que fazia abortos clandestinos, achei que fosse uma mulher auxiliando outras a fazer abortos nas primeiras semanas de gestação. Pensei “ih, não sabia que o Fantástico aderia à onda antiaborto”. Até que vi do que a matéria realmente tratava, e fiquei enojada. A aborteira aceitava fazer o procedimento veterinário (com medicamentos usados por veterinários para otimizar a ordenha de vacas) em mulheres com 7 meses de gestação. 


Algumas feministas (não todas, talvez nem a maioria) aprovam esse tipo de conduta com base na ideia do “meu corpo, minhas regras”. O raciocínio é manco. Lamentamos se a sua negação da natureza faz com que você desaprove o fato de ser a mulher a responsável por gerar uma nova vida dentro de si, mas os fatos biológicos são o que são, não o que você quer que eles sejam. A partir do momento em que um feto está tão desenvolvido que ele já tem intensa atividade nervosa e já está pronto para nascer – mesmo que prematuramente –, aquele corpo não é mais “seu”: é outro corpo. Sendo outro corpo, você não deveria ter o direito de fazer o que quiser com ele. Uma mulher que se arrepende de sua gravidez tardiamente, quando o aborto se torna imoral, não deve matar o feto: deve fazer o esforço de esperar mais alguns meses para conceber a criança e então entregá-la para adoção. Há longas filas de pessoas ansiosas por adotar bebês recém-nascidos. Seu desejo de não ter um bebê quase plenamente formado não lhe dá o direito de matá-lo – mas deveria lhe dar o direito de entregá-lo para adoção sem ser julgada por isso. 


2.1. Pessoas que são contrárias ao aborto a qualquer tempo possivelmente são as primeiras a julgar – com comentários reprovadores e olhos arregalados – aquelas mulheres que colocam seus recém-nascidos para adoção. Não deveria ser assim. Para diminuir o número de abortos no Brasil, os ativistas antiaborto deveriam fazer grandes campanhas de conscientização do tipo “tudo bem você não querer ficar com o bebê, não tem problema algum colocá-lo para adoção depois do parto”. Hoje uma mulher que se vê com um filho indesejado fica num dilema: abortá-lo e mentir que foi espontâneo, ou ter o bebê e colocá-lo para adoção, tolerando ser julgada por seus parentes, vizinhos e empregadores pela escolha “desnaturada” que fez. 


2.2. Fiz um esforço de memória e não consegui resgatar quase nenhum ativista de esquerda que eu conheça (incluindo políticos) que tenha adotado crianças. Certamente existem, mas são poucos. Então parece que mesmo grande parte deles gosta é de ter filhos sanguíneos que não tragam um possível passado de miséria e trauma atrás de si. Não seria muito melhor – pensando em poupança de recursos do meio ambiente, desigualdade social, distribuição de riqueza, resgate de crianças em situação de pobreza, oferta de oportunidades – que esquerdistas fossem mais adotantes? Seria. Mas a maioria das pessoas prefere nos aporrinhar com discursos a nos arrastar pelo exemplo. Ativistas de esquerda vivem a falar em nome dos pobres e marginalizados, mas não querem dentro de suas casas as crianças que alguns desses pobres e marginalizados não puderam amparar. 


2.3. Como já comentei algumas vezes, muitos ativistas de esquerda querem jogar todas as responsabilidades para o colo do Estado porque não querem ter responsabilidade individual em melhorar a sociedade para além do papo furado. “Distribuir meu dinheiro aos mais pobres? O Estado que resolva! Recolher mais impostos de mim para financiar as políticas públicas que defendo? O Estado que resolva taxando apenas as grandes fortunas! Adotar crianças abandonadas em orfanatos? O Estado que faça alguma coisa! Eu quero um filho novinho em folha saído da barriga da minha mulher!”


2.4. Só consegui me lembrar de um ativista de esquerda que adotou crianças: David Miranda, deputado pelo PSOL, adotante de dois meninos com seu marido Glenn Greenwald. 


2.5. A esquerda que quer nos convencer que criminosos hediondos podem ser reeducados e ressocializados é a mesma que pouco adota. Ela aposta que um adulto torturador e homicida pode ser renovado numa penitenciária humanizada, mas parece ter medo de dar oportunidades a uma criança de dez anos de passado difícil que está esperando por uma família no orfanato. 


3. A total desconsideração ao princípio da presunção de inocência no caso do inventado estupro de Neymar não foi apanágio das feministas febris. Jornais e revistas compraram a história e já estavam condenando o jogador previamente sem muitas concessões. Alguns aproveitaram outros erros seus para dizer que surgia “mais um vacilo de Neymar” – como se já tivessem certeza de que alguma culpa ele tinha pelo ocorrido. Qual foi o vacilo daquela vez? Querer fazer sexo casual com uma mulher que parecia interessada sexualmente nele? (E que achou que ele ia se apaixonar por ela, pedi-la em casamento e levá-la a eventos cheios de fotógrafos que causariam inveja em outras alpinistas?) Os tais jornalistas achavam vacilo escolher mal parceiras para sexo casual ou o possível estupro? Se consideraram que houve estupro, a palavra adequada na ocasião não seria vacilo


Uma reportagem da Revista Época no tempo do escândalo assumiu posição na história a começar pelo título – A bagunçada vida extracampo de Neymar –, dando a entender que o caso do estupro seria mais uma trapalhada para colocar na sua lista de defeitos. A advogada que aceitou participar da equipe de defesa do jogador depois de ver o embuste no qual ele tinha sido enredado foi expulsa de uma entidade feminista da qual participava. Achar que um homem pode ser vítima de uma falsa acusação de estupro após análise dos autos fez a advogada ser indigna de pertencer a um grupo feminista. 


3.1. Não simpatizo com Neymar, como tantos que o criticaram na época do falso estupro. Mas disso não posso concluir que ele deve ser um estuprador. Pelo que sei, aqueles que concluíram isso – “sonegador de impostos, mimado e dramático nas quedas em campo: certamente é estuprador também” – não pediram desculpas por suas análises apressadas que não foram corroboradas pelas provas. As provas, aliás, corroboraram a hipótese de que uma mulher ambiciosa rejeitada em seu plano de conquista amorosa pode ser tomada por um ressentimento tão pernicioso que ela é capaz de inventar que o homem que a tratou como mero sexo casual cometeu um crime hediondo. Feministas não têm que apoiar essa mulher. Têm que rejeitá-la. Ela debocha das reais vítimas de estupro, ela usa o discurso de vítima de modo oportunista e ela contribui para desacreditar outras mulheres que vêm a público para denunciar estupros. Infelizmente não é possível esperar racionalidade, senso de justiça e ponderação de uma quarta onda feminista que age de maneira corporativista e desonesta ao tratar de assuntos sérios. Vão lá fazer pole dance, mapas astrais e bordado empoderado das trompas de Falópio. 


4. Após o ex-jogador de futebol e comentarista esportivo Walter Casagrande criticar em programa de TV a leniência de clubes brasileiros com jogadores que cometeram crimes graves, Fernando Haddad escreveu o seguinte tweet: “Tem Casa Grande que vale a pena”. Uma piada. Possivelmente sem graça, como a imensa maioria das piadas de Haddad no Twitter, mas uma piada inofensiva. Inofensiva? Um advogado criminalista (alô, princípio da proporcionalidade da pena!) negro escreveu: “Na moral? Se eu fosse do PT pedia a expulsão do Haddad hoje. Racista filho da puta.” Esse xingamento ganhou quase 6 mil curtidas. O autor se nomeia no Twitter como “João, O Justo” (grifo meu). O também advogado negro Thiago Amparo, colunista da Folha de S.Paulo, achou que era obrigação de Haddad se desculpar pelo “racismo” que cometeu. Imagine você derrubar um garfo na casa de alguém e a pessoa achar que para se vingar de você é preciso ir com um porrete à sua casa para detonar sua cozinha inteira. É o que o movimento negro faz hoje. E ele chama isso de “bem”, de “justiça”, de “reação justificada do oprimido”. O olho por olho de Hamurábi parece muito civilizado e razoável perto desses ataques colossais de projetos de ditadores intocáveis dentro do movimento negro radical. Falarei mais sobre isso em outras partes desta série. 


5. O livro As armas da persuasão, de Robert B. Cialdini, é um dos melhores que li neste ano. A Editora Sextante, que já critiquei duramente, tem ampliado muito seu rol de publicações e aberto espaço para livros comumente alinhados com a Editora Objetiva (que se tornou melhor após ser adquirida pela Companhia das Letras), saindo do estereótipo de publicar apenas livros sobre espiritualidade e liderança, seus temas-chave no início da carreira. Tenho lido alguns livros da Sextante e gostado muito. 


5.1. As armas da persuasão parece, num primeiro momento, tratar “apenas” de influência, mas acaba relacionando uma porção de estudos de psicologia social que mostram como a alteração de pequenos elementos nas situações que nos afetam pode transformar nossas decisões sem que notemos conscientemente. No campo do compromisso e da coerência, por exemplo, vejam este pequeno estudo feito numa praia em Nova York. Uma pessoa aliada a pesquisadores abria uma toalha na areia perto de outras, colocava seu rádio para tocar por um tempo e depois se levantava para caminhar, deixando seus pertences ali. Um pesquisador, fingindo ser um ladrão, pegava o rádio e tentava fugir. Nas 20 primeiras vezes em que esse furto foi encenado, somente 4 pessoas ao redor foram atrás do “ladrão”. Nas 20 vezes seguintes, 19 pessoas foram atrás do ladrão. O que motivou uma diferença tão grande de atitude? Nas 20 vezes seguintes o dono do rádio pediu para que o estranho ao seu lado desse uma olhada nas suas coisas enquanto ele ia caminhar. Ao assumir o compromisso de olhar as coisas de alguém, as pessoas sentiam certa obrigação de manter a coerência com o que foi estabelecido e aceitavam correr o risco de desafiar o ladrão para resgatar o objeto que se propuseram a tomar conta. 


Como grande parte das nossas decisões, isso aconteceu de modo automático e inconsciente, sem que as cobaias do estudo teorizassem todos os componentes envolvidos na situação antes de agir. Quem deseja influenciar os outros acaba utilizando essas armas sutis de persuasão para criar vínculos, brincar com a previsível psicologia alheia e conseguir o que deseja. E mesmo aqueles que fazem uso dessas armas podem em muitos casos “manipular sem teorizar”, ou seja, a tática manipulatória também aparece de forma inconsciente, automática. Manipuladores cotidianos geralmente não fazem planos rabiscados no papel, não esfregam as mãos antes de cativar um trouxa, não pensam com todas as letras “agora agirei assim para obter isto que é do meu interesse”. Manipulamos e somos manipulados algumas vezes por dia sem que percebamos. 


6. O conceito de pecado original dentro do movimento negro radical é algo como isto: 

7. Santa Catarina, meu estado natal e pelo qual nutro um misto de amor e asco, afastou o governador eleito Carlos Moisés da Silva por causa de um processo de impeachment. Dado o nosso histórico de governadores sacripantas, Moisés, apesar de ser do PSL, fazia um bom governo até então, mas parece que a Câmara não gostou de seu estilo e encontrou uma forma de tentar tirá-lo do poder. Quem assumiu o cargo enquanto ele estava afastado foi sua vice Daniela Reinehr, filha de um conhecido simpatizante do nazismo, ex-professor de História. Até aqui muitos leitores sensatos poderiam pensar que as pessoas não têm culpa pelas opiniões de seus pais, e concordo. Devemos responder por nós, e não pelos erros daqueles aos quais somos aparentados por acaso. Mas jornalistas questionaram as opiniões de Daniela a respeito do nazismo enaltecido por seu pai e ela desconversou. Como o desconversar pegou muito mal, dias depois a atual governadora interina disse que não compactua com o nazismo. Espero que seja verdade, e que essa nova declaração não a faça ter que se explicar em casa. Já é um defeito bastante grave a senhora Daniela apoiar a desgraça do Governo Bolsonaro. Sua cota de aberrações já passou do limite. 


7.1. A ascensão do nazismo na Alemanha não tem nem 100 anos. Os pais e os avós de alguns de nós já tinham nascido quando milhões de judeus, ciganos, pessoas com deficiência, homossexuais e presos políticos eram assassinados por nazistas. (Meu pai nasceu em 1936.) É um acontecimento absurdamente recente. Qualquer manifestação nazista que ressurja na sociedade precisa ser repudiada. Pelo duelo de ideias, não deixemos que a “liberdade para ser nazista” se torne o que é hoje a “liberdade para ser stalinista”. 


8. Manuela D’Ávila também desconversou quando perguntaram para ela sobre Stálin no programa Roda Viva de 2018. Aliás, não desconversou. Relativizou. Disse que os crimes do ditador tinham explicação porque “era um período de guerras” quando ele estava no poder. Ou é uma ignorante que nunca leu sobre as execuções de Stálin (de amigos, de ex-aliados, de artistas, de opositores grandes e pequenos), ou age com má-fé. Aposto na má-fé. Pelo que pesquisei, Manuela nunca escreveu para se corrigir e afirmar que não defende o stalinismo. Mesmo assim, segue bem cotada por muita gente e não é mais cobrada pela mídia pretensamente plural por isso. 


8.1. Quem precisa de Manuela quando se tem Jones Manoel a dizer que o que Stálin fez foi uma “guerra justa”? Vladimir Safatle, filósofo da USP, disse que criticar Jones “é muito barulho por nada”. É o mesmo Safatle que se empertiga em colunas enfadonhas quando pessoas da direita dizem coisas muito menores. Sobre isso, recomendo a leitura da matéria A esquerda radical brasileira desenterra o debate sobre o socialismo real e ganha adeptos nas redes, publicada ontem pelo jornal El País. 


8.2. “João, O Justo” – aquele que queria a expulsão de Haddad pelo PT por ser um “racista filho da puta” – publicou este meme em resposta à matéria do El País: 

8.3. Haddad tem problema em ser confundido com pessoas desse naipe que contemporizam ditaduras? Não. Já alterou falas razoáveis suas para atender aos chamados de radicalismo do seu partido, e disse que uma “diferença” precisa ser registrada entre as execuções de Hitler e as execuções de Stálin: “Stálin [pelo menos] lia os livros dos perseguidos antes de executá-los”. 

No céu:

– Bem, quer dizer então que existe um céu. – Pois é, eu não esperava. – Nem eu. Por que você está aqui? – Fui executado a mando de Hitler. E você? – Fui executado a mando de Stálin. – Que coincidência. – É verdade, mas me diga uma coisa: Hitler leu seus livros antes de executá-lo? – Acho que não. – Não é que eu queira me gabar, amigo, mas Stálin leu meus livros antes de mandar me executar


9. Texto escrito ao som de 16 Horsepower, “Black soul choir”, e outras coisas. 


(Postagem publicada originalmente no blog antigo em 01/11/2020 e atualizada em 20/05/2021.)