A paranoia de Djamila Ribeiro e seu clube – uma resenha longa

A mestre em filosofia e militante do movimento feminista negro Djamila Ribeiro publicou pela editora Pólen, em 2019, o livro de bolso Lugar de fala, visando popularizar a expressão e explicar esse conceito que lhe é tão caro e que ela usa como distintivo policial onde quer que seja contrariada. Antonio Risério, antropólogo baiano, definiu bem o que “lugar de fala” significa na prática da vida: é o “você sabe com quem está falando?” das minorias politizadas no identitarismo. Portanto, uma forma de abuso de pretensa autoridade, um cala-boca. Djamila diz que não é nada disso, e seu livro é de uma calma e ponderação que fazem calouros nas interpretações de textos e mundos crerem que a autora é uma militante também da paz, nos moldes de Martin Luther King. 

“Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo.” 

Isso é o que Djamila fala – em seu livro, na Globo, em saias nada justas no GNT, entrevistada por brancos aflitos por posar de evoluídos sociais. Outra coisa é o que ela é, o que ela faz e o que estimula que os outros façam. Se Fernando Henrique Cardoso disse mesmo “esqueçam o que escrevi” ou versões similares – ele nega –, é porque sabia que entre abordagens acadêmicas e realidade há um mar de imbróglios. Não queria, afinal, ser cobrado por agir fora do que teorizara. Há coisas que não se faz, mas há muito mais coisas que não se escreve no ainda um pouco sagrado papel. 


Djamila é uma nas mídias – que eram veículos opressores até que ela passasse a ser convidada de honra deles, e quem critica a incoerência é “invejoso” –, outra quando está agitando os seus. Não somos todos assim, cheios de facetas? Somos, mas é inteligente saber que existem inúmeros graus na escala de danos, e que nossos avós, fomentadores da matança de punguistas na frente da TV e plácidos jogadores de damas nas praças mornas, não atingem um raio muito grande de pessoas e não são, nem de longe, “influenciadores”. Talvez achemos correto repudiar em textos o comportamento de nossos avós sem nomeá-los. Quem galga posições de relevância palavrosa na vida pública usando como ferramentas ignorância, farsa virtuosa e ódio anacrônico provavelmente merece um combate mais personalizado. 


Stephanie Ribeiro, militante negra que criou uma espécie de Programa do Ratinho para afrodescendentes e simpatizantes quando tinha uma conta no Facebook, costumava dizer aos que discordavam de suas teses: “leiam o livro!” Não disse, todavia, que livro era esse – nunca escreveu livro nenhum –, então nunca ficou claro para nós que obra deveria ser consultada para adquirir saberes que nos aproximariam de sua iluminação geralmente exclamativa. Tardiamente publicaram este Lugar de fala, da mestre em Filosofia (ressalto porque ela gosta que ressaltem) Djamila Ribeiro, que talvez pudesse suprir algum conhecimento que estava naquele “o livro”. Não é uma leitura que me agrada, pois é possível antecipar muito do que se vai encontrar em livros engajados, mas sem dever racionalizar tudo e fazendo algumas concessões, encarei Lugar de fala para não ser acusada de não ter gostado do que não li. Quando criticam os usos e abusos do lugar de fala, Djamila diz que seus detratores não entendem do assunto porque não leram seu livro. Fiz essa parte do dever de casa.


Ao livro. 


Djamila cita Giovana Xavier, professora da UFRJ, que defende que mulheres negras são “as grandes pioneiras na autoria de práticas feministas” e posiciona isto vagamente “desde antes da travessia do Atlântico”. É feminismo avant la lettre, mas não está bem situado para o leitor, pelo menos não no livro Lugar de fala e nem no texto original de Giovana, que é apenas uma postagem pouco profunda no blog #Agoraéquesãoelas da Folha de S.Paulo. “Mulheres negras pioneiras.” Que mulheres? Quando? Em relação a quem? O que configuraria uma prática feminista na época estudada?  


Ao estabelecermos que um grupo – neste caso, mulheres negras – foi pioneiro em algo, precisamos apresentar dois elementos: primeiro, o período ou ocasião em que o pioneirismo foi documentado, pois não podemos supô-lo sem apontar “ali, ali naquele lugar, naquela época, estavam mudando práticas e sendo pioneiras”; depois, caso estejamos contrapondo “quem foi pioneiro e quem não foi”, já que o pioneirismo sempre se dá em relação a outros que não são pioneiros, temos que fazer uma varredura histórica para averiguar se realmente o outro grupo, o das mulheres brancas, “não foi pioneiro primeiro”. 


Talvez Giovana Xavier tenha dados históricos para dizer que mulheres negras foram pioneiras em práticas feministas, mas ela não nos conta isso no artigo para a Folha de S.Paulo de onde Djamila pinçou o trecho. A mim parece estranho um julgamento desses sem mostrar onde, quando e como mulheres negras estavam sendo pioneiras em práticas feministas. Na Bahia? No mundo? No século 16? Antes de Cristo? Se Giovana erra, Djamila erra junto ao não procurar o fundamento da coisa frouxa que cita. É exigir demais pedir um trabalho tão investigativo? Se a autora quer que a Universidade e os membros de uma enevoada intelectualidade carimbem seus trabalhos como sérios – e até como “ciência descolonizada”, mas esse absurdo descosturaremos daqui a pouco –, é preciso entregar mais do que um livro com trechos de blogs que não apresentam a procedência histórica de uma afirmação como: “mulheres negras foram as pioneiras nas práticas feministas desde antes da travessia do Atlântico”. A citação está no capítulo chamado “Um pouco de História”, o que não significa que seremos cegados por História de fato. Há opiniões que não precisam de fundamento – “Luís acha que azul é a cor mais bonita” –, há opiniões que precisam. Ainda mais quando você as coloca em um livro que alegadamente vai quebrar paradigmas e estabelecer uma nova era pós-colonial do saber. 


Nosso sistema jurídico diz que a lei só retroage se for para beneficiar o réu. No sistema justiceiro dos identitários, toda lei que se deseja retroage para punir imoralidades e crimes de personagens passados que viviam conforme as liberalidades de seu tempo, sem pensar em agir conforme supunham que apreciariam alguns grupos do futuro. Identitários não se importam com o pecado do anacronismo conveniente – mesmo que sejam historiadores, classe para a qual a comparação anacrônica é muito mais grave. Então Djamila cita um poema de Sojourner Truth, abolicionista afro-americana, que caçoa do elitismo de mulheres sufragistas subindo em palanques para defender suas causas por volta de 1850: 

“Quando vi mulheres no palco
na Convenção Pelo Sufrágio da Mulher,
no outro dia,
Eu pensei,
Que tipo de reformistas são vocês?,
com asas de ganso em vossas cabeças,
como se estivessem indo voar,
e vestida [sic] de forma tão ridícula,
falando de reforma e dos direitos das mulheres?
É melhor vocês mesmas reformarem a si
mesmas em primeiro lugar.” 

Realmente bastante pioneira Sojourner Truth, apontando o que via como incongruente: mulheres brancas lutando pelo direito ao voto não enxergavam como dignas de subir ao palco com elas as mulheres negras que ficavam às margens. Uma causa pelas mulheres de uma classe, e não por todas as mulheres; portanto, um feminismo manco de acordo com o nosso olhar. Mas Djamila faz disso uma causa para se indignar – em tom ameno, é verdade –, e talvez devamos lembrá-la que não há como fazer uma severa cobrança nesse sentido a mulheres brancas que estavam vivendo nos Estados Unidos de 1850 – um país que só permitiu direito civil e direito ao voto pleno à população negra na década de 60 do século seguinte; um país fortemente marcado pela divisão racial. 


Posso falar numa mesa de bar que um filósofo que escreveu em 1870 que “mulheres são tolas, não servem para quase nada” está errado, e contrapô-lo a John Stuart Mill, defensor, na mesma época, de que mulheres pudessem votar e participar da vida pública. Mas Mill é que é o bom excêntrico nessa seara. O outro filósofo talvez não teve oportunidade de refletir melhor sobre o assunto num momento em que lhe parecia que as mulheres eram todas infantis, preocupadas com fofocas e ninharias. O que, aliás, a maioria provavelmente era (e ainda é). Esse filósofo podia ser preciso em outras análises, mas não foi nessa. Nessa, era ainda o resultado de um meio que não queria dar nem chance para que mulheres mostrassem seu potencial, reprimido numa vida que as preparava para um comportamento pelo qual seriam desprezadas na maturidade – eram criadas desde a infância para a tolice, e quando se transformavam, era de se esperar, em adultas tolas, recebiam críticas por serem apenas o que lhes permitiram ser. É difícil cobrar pensamento modernizante de todos os pensadores de uma época e lugar só porque temos três míseros exemplos de pessoas inseridas no mesmo espírito cultural que tinham o cérebro mais arejado para questões que nos são hoje caras. É incrível que nos Estados Unidos de 1850 uma Sojourner Truth se levantasse para inquirir “e eu não sou uma mulher?”, mas sejamos justos: sufragistas brancas falando em nome da sua cor e da sua classe já eram bastante vanguardistas, diante do contexto que enfrentavam, quando subiam em palcos para lutar pelo seu direito ao voto. Tiveram um juízo muito inovador para seu tempo – é difícil cobrar que também tivessem que entender as reivindicações do poema de Truth, que não parecia lhes dizer razoável respeito. 


*


Compreendo certas vivências. Quem caminha com um sapato apertado traz uma visão sobre sapatos apertados que deve ser considerada. Mas o que a vivência de um homem negro representa é algo para entendermos sua vida particular e, cruzando com as vivências similares de outros homens negros, sua inserção num coletivo oprimido. A História da África não mudará porque um homem negro com “vivência” não estima partes dela que demolem sua construção simplista de bandidos brancos contra moços negros. Vivência não é passe livre para que se pense, presunçosamente, que se possa opinar sem estudo sobre aquilo que aparente lhe dizer respeito. Se um homem branco se propõe, com honestidade e método, a estudar o percurso das mulheres negras no Brasil, não deverá nenhum tipo de desculpa a uma ativista negra quando apresentar em seu livro situações que fogem do pensamento único e engessado que essa ativista traçara, da própria cabeça e de fontes enviesadas, para explicar a história daquelas mulheres. 


Na recorrência ao coringa “vivência” para valer como trunfo em qualquer debate, extrapola-se: não se fala somente em nome de si, mas em nome de outros e de antepassados. Djamila diz que um negro reacionário dizer não sentir racismo não minimiza o impacto negativo da opressão, e o exemplo faz sentido. Há quem ignore o lugar em que mergulha e não aceite quem indique, com propriedade, “isto não é água, é esgoto”. A questão é: quem elegeu Djamila Ribeiro como embaixadora de todos os negros? Por que ela deteria a verdade sobre as formas de emancipação da negritude brasileira?


Não vamos reduzir o quiproquó ao absurdo chamando como antípoda o negro reacionário que alienadamente diz não existir racismo nestas terras. Vamos chamar à cena o negro que entende, mesmo sem concordar, os argumentos de quem não aprova política de cotas para pretos, pardos e indígenas no Brasil; vamos chamar o negro que discorda da reprodução brasileira da repulsa ao blackface estadunidense, porque lá o blackface era para zombar de traços negroides enquanto aqui a intenção de quem pinta o rosto de preto raramente é de inferiorização racial; vamos chamar a negra que rejeita ser chamada de “solitária” quando homens negros não lhe fazem galanteios e também rejeita ser chamada de “palmiteira” quando cogita relacionamento com um homem branco que se interessou por ela; vamos chamar a socióloga negra que não vê como correto falar taxativamente “é racismo!” quando se apresenta o dado de que há mais negros nos presídios, como se a maior parte dos negros presidiários estivesse ali apenas por julgamento racial; vamos chamar a cientista negra que discorda da conspiração de uma “ciência branca contra epistemologias negras”. Djamila não apenas trabalha ideias que não são corroboradas por inúmeros outros estudiosos, brancos e negros, acerca de tantas coisas – ela incendeia os membros de seu clube para que calem os que dele discordam, prontos a chamar quem diverge de seu pensamento de “racistas privilegiados”, “fora do lugar de fala” ou “capachos da Casa-Grande”. E a tática funciona. Estudiosos capazes de retrucar impropriedades na salada identitária costumam se recolher aos seus aposentos porque a autocensura permite que não sejam linchados, estigmatizados e rebaixados de suas funções.

Quando um fato não ratifica uma narrativa, trazê-lo à luz pode chamar atenção da inquisição ideológica, que gosta de mostrar serviço e fazer valer suas atribuições. A maioria das pessoas não quer essa exposição. Assim fica parecendo que todo mundo está de joelhos e que a crítica a esse movimento só parte de reacionários, o que propicia, aliás, a adoção de uma eficaz estratégia: forçar a fórmula de que criticar o identitarismo é “coisa de reacionários” para causar uma debandada dos que se opunham ao movimento produz efeito entre os inseguros porque ninguém com o juízo no lugar quer ser confundido com a caravana do retrocesso. Mas quem se põe a ouvir os sussurros nos cantos dos corredores e atrás das portas das casas sabe que não é assim. Deixar de falar não é deixar de pensar, e alguns, embora com medo, não deixaram que aquela polícia tivesse gerência sobre seus pensamentos.


No livro Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária, Antonio Risério relembra o cala-boca imposto a Demétrio Magnoli por se atrever a não dobrar sua avaliação a respeito das cotas ao que impõem esses grupos: 

“No Brasil, já em 2013, presenciamos o caso do violento ataque esquerdista-identitário ao geógrafo e analista político Demétrio Magnoli e ao filósofo Luís [sic] Pondé, numa feira literária realizada em Cachoeira do Paraguaçu, na Bahia. Impediram Demétrio de falar, jogando, inclusive, uma cabeça de porco ensanguentada no meio do palco de onde ele iria expor seu pensamento. E isto pelo simples fato dele ser um crítico lúcido de nossas atuais fraudes estatísticas, que metamorfoseiam até índios em pretos, e principalmente das políticas públicas compensatórias (cotas raciais, etc.), quando, de Sarney a Lula, nossos governantes foram incorporando acriticamente o discurso sempre norte-americanoide e as reclamações do racialismo negro.” 

Que se discorde de Magnoli é normal, seja nesse tema ou em outros. Impedi-lo de falar e ameaçá-lo se ousar falar ultrapassa a mera discordância e avança para o terreno da censura. 


No apêndice de seu clássico Ética prática, o filósofo utilitarista australiano Peter Singer nos apresenta o texto Sobre ter sido silenciado na Alemanha. Países que sentem culpa pelo seu passado, como a Alemanha, ou por suas condições privilegiadas, como a Suécia, são fortes candidatos a permitir que a liberdade de expressão sobre temas bastante naturais seja contida em nome dos desejos de hegemonia discursiva por parte de grupos minoritários constantemente ofendidos. Existe certa “sensibilidade” sobre determinados temas quando postos a bailar no debate público, sem que se dê ao comunicador a oportunidade de expor sua opinião detalhada sobre tal assunto porque o mero levantamento da questão ativa “gatilhos”. Quem lê Peter Singer – e recomendo que leiam – sabe que ele defende inúmeras pautas esquerdistas práticas como cotas raciais e sociais, aborto com certas condições, formas de diminuir a desigualdade de classes, direitos animais e ambientalismo. Mas Singer também defende que os pais tenham o direito de escolher se seu filho, ao nascer com uma deficiência grave, deve continuar vivendo. Se um bebê nasce de tal forma prejudicado por uma deficiência que lhe vai proporcionar apenas uma vida miserável ou privada dos mínimos prazeres, é preciso que os pais, junto ao médico, possam escolher se não é melhor ele ter uma morte rápida e indolor. O filósofo sabe que o tema é delicado: 

“É evidente que tal posição entra em choque com a doutrina convencional da santidade da vida humana, mas são bem conhecidas as dificuldades em defender essa doutrina em termos seculares, sem o seu tradicional suporte religioso.” 

Propondo uma série de palestras sobre o assunto, logo Singer foi “desconvidado” para algumas porque certos grupos disseram que ele atentava contra os direitos humanos e se atrevia e falar em público sobre suas ideias “eugenistas”. Organizações de pessoas com deficiência que não se deram ao trabalho de ler a íntegra da opinião de Singer sobre deficiência grave e eutanásia planejaram manifestações barulhentas nos locais onde ele falaria. Manifestantes foram à imprensa popular e fizeram violentos ataques contra o filósofo, inclusive apelando à mostra de fotos de “vítimas da eutanásia” no Terceiro Reich e da “Ordem da Eutanásia” de Hitler. Simplificando, o argumento seria mais ou menos isto: 


– Você disse “bom dia”. 

– Sim, eu disse. 

– Sabe quem mais dizia “bom dia”? Hitler. 

Na opinião dos rudimentares, se Hitler usou a eutanásia para fins escusos, a eutanásia deveria ser tópico abolido para sempre.

Movidos pelo espantalho de que Peter Singer era um neonazista que desejava matar todos os bebês com quaisquer deficiências já na sala de parto, os manifestantes tentavam impedir que ele tivesse direito à fala: 

“Esclarecer uma coisa tão óbvia foi muito mais difícil do que eu poderia esperar. Quando me levantei para falar em Saarbrücken, fui saudado por um coro de assobios e vaias de uma minoria do público que não queria permitir que eu falasse. O professor Meggle ofereceu aos manifestantes a oportunidade de dizerem por que motivo achavam que eu não devia falar. Esse fato mostrou como era total o seu desconhecimento das minhas ideias. Muitos, sem dúvida, acreditavam que eu me situava na extrema direita do espectro político. Outro me sugeriu que me faltava a experiência com o nazismo que tinham tido os alemães; junto com outras pessoas do público, ele ficou estarrecido quando me ouviu dizer que eu era filho de refugiados austríacos judeus e que três dos meus avós haviam morrido em campos de concentração.” (grifo meu) 

Este grifo que fiz não é para desmerecer minorias numéricas. A razão não depende do volume dos ajuntamentos – quem está em maior número não está com a razão necessariamente –, mas aqui é interessante observar que havia um grande público disposto a ouvir e entender as propostas de Peter Singer, e uma minoria, ao fazer barulho para impedi-lo de falar, conseguia impor sua vontade. 


Em artigo para a revista Época de 13 de janeiro de 2020 intitulado Patrulha ideológica 2.0: como as redes sociais se tornaram tribunais capazes de “cancelar” uma figura pública em razão de declarações ou comportamentos considerados “politicamente comprometedores”, o jornalista Jerônimo Teixeira dá dois exemplos de repressão à liberdade de expressão retirados do livro The coddling of the american mind (ainda sem tradução), escrito pelo psicólogo Jonathan Haidt e pelo advogado Greg Lukianoff: 

“1. Um professor da Universidade de Northern Colorado pediu a leitura de um artigo que se opunha ao direito de transgêneros usarem o banheiro que desejam. Ele explicou que não esperava que os alunos concordassem com o texto, mas que era necessário conhecer e discutir pontos de vista diversos. Um estudante o denunciou à administração da universidade por preconceito; o professor foi repreendido, aconselhado a não falar mais sobre transexualidade, e seu contrato não foi renovado no semestre seguinte.
2. Na Universidade Yale, uma professora escreveu à administração sugerindo que não se instaurassem regras ditando que fantasias seriam apropriadas ou inapropriadas no Halloween, pois não era preciso tratar os alunos como criaturas vulneráveis, incapazes de negociar entre si o que é ou não aceitável. Esse e-mail tão razoável sobre tema tão trivial foi fatalmente interpretado como uma defesa de fantasias racistas. Protestos de estudantes intimidaram a professora e seu marido, que também tinha um posto em Yale; a administração da universidade não lhes prestou apoio, e eles acabaram renunciando aos cargos que ocupavam.” 

Na mesma matéria Jerônimo traz outro exemplo mais fisicamente violento: 

“Especialmente brutal foi o protesto que impediu o inglês Milo Yiannopoulos, jovem agitador da direita, de falar na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017. Manifestantes mascarados do Antifa, grupo que diz combater o fascismo, espancaram dezenas de pessoas, e a destruição na universidade e nos arredores foi estimada em US$ 0,5 milhão. Na lógica tribal dos manifestantes, violência ainda maior seria o que Yiannopoulos teria a dizer. Outros protestos violentos se seguiram naquele ano, exacerbando a polarização da política americana. A radicalização é, aliás, uma consequência do ambiente de intimidação física e verbal que se estabeleceu em muitos campi: os moderados, avessos à beligerância gratuita, tendem a se calar, e só as vozes mais extremas têm vez.” 

O silêncio dos moderados serve para catalisar esses movimentos e perpetuar sua prática. Na introdução a seu livro supracitado, Antonio Risério faz um chamado provocativo aos que se calam diante da barbárie por medo de serem alvos dela: 

“[…] aqui está um livro que destoa radicalmente do atual clima de complacência e medo que tomou conta do ambiente intelectual da esquerda e, em especial, do meio universitário, acadêmico, onde tantos professores, quando não apoiam o identitarismo, escudam-se covardemente no silêncio, temerosos de sofrerem linchamentos verbais e agressões físicas, elementos hoje centrais desta estranha ‘práxis’ esquerdista que colocou os campi sob seu rigoroso controle, na base do chicote e da rédea curta.” 

Capítulos depois, citando a socióloga Lúcia Lippi, Risério nos mostra que esse clima, longe de ser ameno e lidar com detalhes irrelevantes, acaba por moldar as próprias universidades, agora imbuídas em fazer pesquisas e concluir “fatos históricos” que corroborem as narrativas identitárias. Também é possível contar umas verdades e omitir outras, parecendo realizar um trabalho honesto que, bem avaliado, é cheio de furos e intencionalmente mentiroso.


Numa universidade capturada por essas políticas, provavelmente um africanista como Alberto da Costa e Silva, se bem lido e bem compreendido, não teria oportunidade de desenvolver um cenário completo e complexo do que sabe, apesar da erudição, do rigor documental e da paixão pela história da África. Enquanto grupos identitários querem colocar a grande força que levou à abolição da escravidão na conta dos movimentos negros abolicionistas, que reclamavam, à época, a humanidade e o direito à liberdade dos sujeitos negros que ainda eram escravizados, Alberto da Costa e Silva nos mostra, em seu Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África, que a Grã-Bretanha passara a militar pela abolição do tráfico de escravos porque ela contrariava seus objetivos políticos e econômicos. Um novo tipo de domínio surgia, e o combate ao trabalho escravo, pretextado pelo humanitarismo, minou o poder dos reis africanos: 

“Pouco a pouco, mas sem recuos duradouros, o combate humanitarista ao tráfico de escravos, o sentimento da missão civilizadora europeia e as teorias do livre comércio foram fazendo prevalecer na Grã-Bretanha, como no resto da Europa, as teses da efetiva ocupação colonial da África sobre o pensamento daqueles que defendiam uma presença restrita a entrepostos comerciais. A luta contra os traficantes de escravos tornou-se o grande instrumento da derrubada sistemática das estruturas políticas africanas.
Destroem-se, numa velocidade crescente, à medida que caminha o século, quase todos os mecanismos de poder africano. Sob pretexto de erradicar o tráfico de escravos e de favorecer a liberdade de trocas, elimina-se o comey [nota ao final do capítulo: “imposto cobrado pelos chefes da costa da Nigéria aos comerciantes europeus, para que pudessem ali negociar”], arrasam-se a rede de comunicações e os entrepostos dos intermediários nativos do comércio de óleos vegetais, de resinas, de borracha, de marfim e de madeiras, privam-se os chefes africanos dos recursos que lhes permitiam adquirir armas e mobilizar tropas para manter a independência.” 

Trocando em miúdos, não só não foi “a resistência negra” a principal causa do fim legal do tráfico de escravos – que ilegalmente continuava acontecendo, inclusive pela vontade de africanos comerciantes de gente africana –, como isso levou a uma decadência da autonomia africana, agora enfraquecida e refém de um violento programa colonizador. 

“Tudo dentro da melhor lógica política, pois afinal foi em nome da luta contra o tráfico negreiro e a escravidão que a Europa começou a ocupar a África.” 

O que pesquisadores identitários negros podem fazer com esses fatos apresentados por um estudioso branco como Alberto da Costa e Silva? Provavelmente passarão por cima deles, fatiando a História e selecionando o que é oportuno, ou culparão o mensageiro por trazer notícias que não reforçam a mitologia negra. A historiografia tinha problemas quando se dedicava apenas aos vencedores, mas parece que em alguns casos a historiografia dos vencidos não se sai muito melhor.



Mas voltemos ao livro de Djamila, que apesar do tamanho econômico dá pano ruim para muitas mangas. Ao falar sobre “modelo dominante”, “disputas de narrativas”, “novas premissas” e desestabilização de verdades, ela cita outra autora com a qual converge: 

“A pensadora e feminista negra Lélia Gonzalez nos dá uma perspectiva muito interessante sobre esse tema, porque criticava a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população. Ou seja, reconhecendo a equação: quem possuiu o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco. A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica, conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e assim inviabilizando outras experiências do conhecimento. Segundo a autora, o racismo se constituiu ‘como a “ciência” da superioridade eurocristã (branca e patriarcal)’. Essa reflexão de Lélia Gonzalez nos dá uma pista sobre quem pode falar ou não, quais vozes são legitimadas e quais não são.” 

E depois: 

“Os trabalhos e obras de Gonzalez também têm como proposta a descolonização do conhecimento e a refutação de uma neutralidade epistemológica.” 

Apesar de a citação estar no capítulo “Um pouco de História”, Djamila transfere, no decorrer do livro, a ideia de uma “ciência branca” para o presente, como se as universidades ainda privilegiassem saberes criados por brancos e rejeitassem saberes criados por negros. Apegada à ciência nazista e à frenologia, pseudociência que se popularizou no meio científico no passado e que defendia que o formato da cabeça revelava o caráter e a aptidão das pessoas, Djamila diz que ainda estamos vivendo num ambiente universitário e intelectual que despreza conhecimentos e epistemologias de povos africanos como inferiores. Um ambiente, portanto, abertamente racista.


Não sei bem de que ciências Djamila está falando. Engenharia? Medicina? Ciências Sociais? Psicologia? Mesmo assim, é difícil entender a que ela se refere quando diz que a universidade privilegia “ciência branca”, “coloniza o conhecimento” e “não permite o desenvolvimento de outras epistemologias”. As ciências mais puras e menos refutáveis são uma em qualquer lugar e tempo – dois mais dois resulta em quatro seja na Dinamarca, seja no Congo – e as ciências oscilantes, como a Nutrição, bem, ainda estamos esperando que encontrem seu caminho e falem uma coisa só. Em regra, se um pesquisador branco faz um experimento correto utilizando métodos adequados e variáveis controladas, um pesquisador negro, nos mesmos moldes, chegará a resultado praticamente idêntico na Namíbia. Isso é ciência. Podem passar bem por esse filtro conhecimentos negros testados e podem passar mal, sendo reprovados, conhecimentos brancos duvidosos que sempre desejaram ratificação como ciência. 


A tal “ciência branca” de Djamila destrona há muito tempo saberes criados ou grandemente desenvolvidos por brancos que se provaram pseudociência, como a Astrologia, a Homeopatia e a Psicanálise. Djamila acha que existe uma conspiração contra negros, quando há na verdade uma batalha para combater aquilo que não é ciência e que mesmo assim se traja como tal. Que coisas como a Homeopatia e a Psicanálise estejam na academia e queiram o selo de ciência sem passar em testes científicos significativos – talvez devessem estar fora dela, como estão os cursos de Astrologia – é vexatório para a seriedade das áreas ditas científicas, mas isso não é porque há leniência com pseudociência branca. Infelizmente há leniência com qualquer pseudociência já estabelecida. O que Djamila quer? Que as pseudociências negras também tenham espaço na universidade? Devemos dar dois passos para trás antes de dar um passo para a frente? Primeiro devemos permitir que pseudociências negras sejam inseridas na universidade para depois tratar do problema das pseudociências acadêmicas em geral? Não faz sentido. E uma vez que uma pseudociência negra, indígena ou feminista adentre a universidade por meio de abaixo-assinado ou manifesto gutural, aí é que a militância não vai permitir que esse “direito adquirido” lhe seja retirado no futuro.


Comecei esta resenha reclamando de migalhas de bolacha que estavam em cima da cama na hora de dormir; agora estou em terreno de farpas, mesmo, e que aliás é o pior do livro de Djamila. Continuando a fazer a fina em análises desvairadas – que tantos olham e não veem, e aí obviamente não entendem, e por corolário aplaudem –, a mestre em Filosofia cita Grada Kilomba, psicanalista negra lisboeta, doutora, que ganhou o mundo com seu ativismo. As citações são de Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, livro que trata de casos de sentimento racista e falas racistas como pequenas histórias psicanalíticas. Parte do trecho escolhido por Djamila diz: 

“Algo passível de se tornar conhecimento torna-se então toda epistemologia que reflete os interesses políticos específicos de uma sociedade branca e patriarcal.
[…]
É comum ouvirmos o quão interessante nosso trabalho é, mas também ouvimos o quão específico ele é:
‘Isso não é nada objetivo!’
‘Você tem que ser neutra…’
‘Se você quiser se tornar uma acadêmica, não pode ser pessoal’
‘A ciência é universal, não subjetiva’
‘Seu problema é que você superinterpreta a realidade, você deve se achar a rainha da interpretação!’
Tais comentários ilustram uma hierarquia colonial, pela qual pessoas negras e racializadas são demarcadas. Assim que começamos a falar e a proferir conhecimento, nossas vozes são silenciadas por tais comentários, que, na verdade, funcionam como máscaras metafóricas. Tais observações posicionam nossos discursos de volta para as margens como conhecimento ‘des-viado’ e desviante enquanto discursos brancos permanecem no centro, como norma. Quando eles falam, é científico, quando nós falamos, não é científico.
[…]
Nós não estamos lidando aqui com uma ‘coexistência pacífica de palavras’, e sim com uma hierarquia violenta que determina quem pode falar.” (grifos meus) 

É chocante alguém que está na universidade pegar esses livros, da Djamila ou da Kilomba, passar por esse trecho e sair dele incólume como se nenhum contrassenso preocupante tivesse sido defendido. No meu primeiro semestre da graduação em Ciências Sociais (inconclusa) aprendemos que a objetividade não só é esperada como muitas vezes exigida na academia; que a neutralidade plena não existe, mas deve ser buscada a todo custo; que não devemos supor coisas sem prová-las ou embasá-las; que o bom pesquisador não confunde suas opiniões pessoais com os resultados conflitantes que a pesquisa pode lhe trazer; que devemos ter cautela ao interpretar fatos. Se isto era esperado numa graduação em Ciências Sociais – área que acaba produzindo trabalhos chamados “acadêmicos” visivelmente autorais e parciais –, nas outras ciências a severidade dessas regras é ainda mais forte. E é uma severidade cobrada de todos. Na paranoia de Grada Kilomba e Djamila Ribeiro, contudo, se a universidade lhes exige objetividade, neutralidade e cautela é porque está tentando colonizá-las e lhes entuchar “ciência branca”. Os princípios da pesquisa honesta não devem valer para universitárias negras, sensíveis a qualquer chamada de atenção e prontas a erguer o cartão vermelho de “racismo!” para quem lhes contesta, ficando Kilomba e Djamila livres para passear pelo ensino superior pesquisando sob os moldes de “regras especiais” que elas mesmas inventaram para impedir a divergência. Quando decidem escrever um texto opinativo, exigem que a instituição se renda a esse mero ensaio, avalie como excelente de antemão e carimbe: “isto é ciência”. Ou irão para seus blogs, espaços seguros e livros pretensiosos reclamar que são vítimas de “hierarquia colonial”. Birrentas, não aceitam se moldar às leis da academia: a academia é que tem que se moldar a elas e a suas “epistemologias”, seja lá o que isso signifique. 


Antonio Risério diz que toda vez que pergunta aos identitários “que outras epistemologias são essas?” ninguém lhe responde diretamente. Como são essas “epistemologias negras” que a universidade deveria corroborar? O negócio é vago, e de propósito. Para esses autores a vagueza não é um problema, é uma solução, porque evita passar pela explicação pragmática e por evidenciar que o que estão querendo, de fato, é poder acadêmico sem mérito acadêmico. Imagino professores universitários razoáveis temendo ter qualquer tipo de envolvimento com mulheres assim, que têm sua possível má condição psiquiátrica transformada em “empoderamento”. Esses dias, numa rua de comércio, vi um guri pequeno se jogando no chão e gritando porque a mãe não queria comprar para ele o brinquedo demandado. Parecia bastante empoderado: sem razão, exigindo coisas que não merecia e humilhando em público aquela que não o obedecia. 



Acredito que poderíamos escrever um material no mínimo cinco vezes maior que o livro de Djamila Ribeiro – mestre em Filosofia – só para refutar as incorreções de seu Lugar de fala. Mas vou me ater a apenas mais um trecho impróprio, porque tenho roupas para passar e um livro do simpático Alain de Botton para terminar. Segue: 

“Quando existe algum espaço para falar, por exemplo, para uma travesti negra, é permitido que ela fale sobre economia, astrofísica, ou só é permitido que ela fale sobre temas referentes ao fato de ser uma travesti negra? Saberes construídos fora do espaço acadêmico são considerados saberes?” 

Minha resposta vai em tópicos: 


1. Quanto à primeira pergunta, devolvo: a hipotética travesti negra quer falar sobre outro assunto? Infelizmente o que vemos quando militantes de minorias são convidados a participar de rodas de conversa e programas de entrevistas é que eles quase só falam sobre os assuntos referentes às minorias que representam. Quando Rosane Borges, professora negra da USP e articulista da Carta Capital, foi convidada a participar da bancada do Roda Viva para entrevistar o então candidato João Amoêdo, ela utilizou três das suas quatro perguntas para falar sobre minorias raciais e de gênero. Quando Mariléa de Almeida, historiadora negra, foi convidada a participar da bancada que entrevistaria o então candidato Guilherme Boulos, suas três chances de pergunta foram sobre racismo estrutural e sexismo, quilombolas e candidaturas de minorias na política. Entendo que um militante de minorias queira perguntar a um candidato político sobre minorias, mas que tal esse convite de Djamila para falarem por aí também sobre economia e astrofísica? Por que ser um militante limitante?


2. Obviamente estou supondo que a hipotética travesti negra de Djamila entenda algo de economia e astrofísica, pois o selo de oprimido não dá – não deveria dar – permissão para falar de qualquer assunto que mal se conheça esperando não ser retrucado em sua sensibilidade de minoria. Sendo estudiosa do assunto, a travesti negra saberá manter o debate em terreno polido e igual, ou acusará o interlocutor de “transfóbico racista” se ele lhe disser, de modo cortês, que num tópico específico ela estava errada? Agora mulheres que participam da quarta onda feminista reviram os olhos e dizem “mansplaining” quando um homem lhes ensina algo que elas julgavam que sabiam e “manterrupting” quando um homem, já conhecido por interromper todo mundo por ser mal-educado, interrompe uma fala delas. Numa discussão sobre outros assuntos – economia, astrofísica –, não vale lá no meio, ao ver que os outros sabem mais porque estudaram mais, dizer que está se sentindo discriminada por racistas, homofóbicos e elitistas acadêmicos. 


3. Representantes de minorias costumam querer falar mais sobre assuntos concernentes ao que representam justamente porque determinaram que são os donos desses assuntos. É uma forma de poder, e parece que a luta de Djamila para ser chamada de cientista na universidade ao escrever ensaios é só mais uma forma de aumentar seu poder. Ela rejeita a “ciência branca” universitária quando esta lhe diz: “espera aí, isso aqui é só uma opinião sua, faça algo nos moldes científicos”. Mas ela não pensa em criar uma instituição externa à universidade que ofereça cursos e referende suas opiniões, naquele contexto de valorização de outras epistemologias, como “melhor que a própria ciência, portanto pós-ciência”. Ela quer a chancela da universidade. Se não vai por bem – mérito e adaptação –, vai pela maculação e pelo sentimento de culpa inculcado em quem não está querendo aceitá-la nos quadros do crème de la crème universitário. É como criacionista querer ser chamado de “científico”. 



No início do texto O que é verdade?, do compilado ensaístico O capelão do Diabo, o biólogo Richard Dawkins faz este alerta: 

“Um pouco de conhecimento é uma coisa perigosa. Essa observação nunca me pareceu particularmente sábia ou profunda, mas ela se mostra muito apropriada no caso específico de um pouco de conhecimento em filosofia.” 

O ensaio é para criticar a “filosofia delirante”, nas palavras dele, do relativismo cultural. Esse relativismo foi bastante longe no caso dos grupos identitários, defensores de que a ciência é apenas uma narrativa entre tantas – simplesmente porque muito do que defendem não pode ser corroborado pela ciência. Não só a raposa esnoba as uvas porque não pode comê-las, como questiona quem é que determinou que uvas são boas frutas e em que contexto um grupo supremacista do conhecimento definiu que uvas são frutas. “Um pouco de conhecimento em filosofia” permite a Djamila Ribeiro, mestr… – tudo bem, todos já sabem –, acreditar que é capaz de subverter o saber acumulado para apresentar no lugar uma ideologia desenvolvida a partir de suas más experiências de vida, do que ela pensa entender do universo do conhecimento e de um modismo cultural que parece não se dissipar tão cedo. As novidades alimentam as massas e o consumo (de produtos e ideias), e nossa sociedade acha que precisamos viver em constante renovação. Aqueles que exigem mais, unem-se a grupos barulhentos e se esforçam para ter seu palavreado recebendo atenção acabam adquirindo uma relevância que jamais mereciam. E passam a usar lugar de fala para ceifar qualquer um que se pronuncie para refutar. 


Quem critica grupos identitários dentro da esquerda costuma dizer que eles substituíram a luta de classes por lutas menores, sendo nessa “personalização das lutas” inclusive sugados por segmentos de mercado atentos em captar os anseios de determinados nichos. Acredito nisso, mas ainda penso que existiria espaço para a militância negra num cenário que retornasse ao grande dualismo marxista – justamente porque acho que a militância não é em vão num país em que o racismo ainda é presente na ojeriza a cabelos, narizes, peles e costumes de origem africana. Mas assumir a realidade do racismo não faz com que sejamos obrigados a engolir teorias abstrusas formuladas por meia dúzia de radicais ávidos por poder e febris de ódio que querem reviver o apartheid, combater a miscigenação, transferir o problema histórico mundial da escravidão para brancos da atualidade, conseguir privilégios, alterar a linguagem na marra, censurar atrações artísticas e acabar com a democracia das ideias. Não concordo, não aceito e não compro combos. Como sei que o efeito manada tem muito mais potência que o efeito do pensamento racional – universitários aplaudindo que Grada Kilomba queira tratamento especial ao fazer pesquisa acadêmica mostra o estado da nossa esquizofrenia intelectual e da nossa infeliz carência de líderes para cultuar –, é possível que o que defendo seja vencido pela numerosidade dos que seguem delírios. Isso me assusta porque a ignorância me assusta, mas não me demove das minhas convicções contra o fascismo de esquerda. 


O lugar de fala talvez tenha começado como uma boa intenção: permitir que pessoas viventes de dada questão social pudessem ter voz quando estava em alta um tema que lhes tocava. No passado, o homem que se levantou, numa primitiva explanação do lugar de fala a uma plateia curiosa, para dizer “mas desse jeito logo um escritor branco será desautorizado a criar uma personagem negra na literatura!”, deve ter sido alvo de gargalhadas e do safanão de sua esposa: “querido, isso é ladeira escorregadia”. Acontece que o lugar de fala viajou tanto que de fato se tornou essa ladeira escorregadia sem fim: uma escritora branca não pode dar vida a personagens mexicanos, Lena Dunham se junta a japoneses que reclamam que mudar a receita de sushis nos EUA e continuar a chamá-los de sushis é apropriação cultural, Fabiana Cozza é considerada insuficientemente negra para interpretar sua falecida amiga Dona Ivone Lara, o turbante de provável origem árabe é raptado como acessório desde sempre africano que não pode ser usado por brancas. 


Não venham copiar e colar o que os identitários dizem que são quando se pintam de ponderados para cooptar trouxas, miseráveis e lerdos. Interessa-me o que eles são de fato. No papel mal lido o comunismo também é muito bonito, mas a aplicação gerou mais perversidade e morte do que qualquer bem defensável. Não há limites para o que ativistas despóticos estão fazendo em nome de uma salvação das minorias – muitas vezes um pretexto oportunista para que alcancem desejos humanos baixos como domínio ilimitado à 1984, aparelhamento de instituições e aparência de virtude. Já passamos do tempo de torcer o pepino desses obcecados por revanche intempestiva. Estamos todos atrasados. 


Existem livros enormes em número de páginas que passam pelas mãos dos leitores sem lhes provocar nada. O pequeno livro de Djamila não só provoca o leitor como muda o mundo. Thulane, a quem o livro é belamente dedicado, viverá num Brasil que foi severamente mudado, por sua mãe, para pior. A militância não precisava ser assim. Mas é. 


*** 


NOTAS


1. Lugar de fala sendo usado por Djamila Ribeiro como distintivo policial: me cobrem telepaticamente esta caricatura. 


2. O feminismo é dividido em “ondas”. Hoje esse termo peculiar faz muito sentido com o que vemos. O feminismo é “uma onda” que faz muitas de suas adeptas “irem na onda”. Ir na onda pressupõe dar certas férias ao pensamento porque o grupo já está pensando por você e tudo que vem de fora contestando as leis do grupo é repelido como opressão. Os homens são opressivos, mas também a matemática e a natureza. 


3. Um número considerável de mulheres envolvidas no feminismo atual trocou o psicanalista pelo ativismo coletivo. Em vez de se dedicarem aos estudos ou se reunirem com amigas para praticar esportes, mulheres infelizes, desesperadas por uma causa para dar sentido à vida, se juntam para vibrar diante de pautas algumas vezes nocivas contra um grande inimigo declarado sobre o qual jogar a culpa por qualquer fracasso pessoal: o homem. Com as boas conquistas – considero que ser uma mulher hoje é melhor do que ser uma mulher quando eu era adolescente – vem histeria e charlatanismo no pacote. Se nos fizeram muito bem, também nos fizeram muito mal, e não é permitido que separemos as partes sem criar confusão entre quem só compreende os outros por rótulos geralmente dicotômicos. Essa parcela de feministas repele ciência, jogos sexuais e contraponto para abraçar coitadismo, astrologia e táticas de torcida de futebol em discussões. Não é um movimento racional. Não me agrada quando me declaro feminista e sou confundida com isso.


A série Explicando da Netflix tem alguns episódios bons, outros nem tanto, tratando rapidamente de temas variados. O episódio chamado Cultos, sobre multidões que seguiram Jim Jones, Osho e outros líderes, tem uma descrição que se aplica a parte dessa quarta onda: “Como atrair e controlar pessoas? Aprenda como identificar uma seita e descubra como a solidão e a vida on-line facilitam a doutrinação”. Esse feminismo hermético, mimado, birrento e anticientífico é um culto. A série Explicando não trataria dele, pois é “politicamente correta” demais para isso. 


4. Colonizados também têm seus colonizados. Ativistas de minorias dos Estados Unidos criam pautas de acordo com a realidade americana, e ativistas brasileiros as adotam mesmo que não se apliquem ao contexto brasileiro. Se Michel Teló pinta de preto metade do rosto pedindo para o racismo acabar, é alvo de identitários negros a grudar em seu ato a marca de “blackface” mesmo que sua intenção tenha sido bondosa. A ideia de combate ao blackface foi importada com tanto bitolamento que o movimento negro brasileiro não sabe analisar circunstâncias caso a caso: pintou o rosto de preto, não importa a intenção, “é blackface que nos faz lembrar dos brancos do passado que se fantasiavam de negros para debochar deles”. É uma sensibilidade burra e cega. 


5. Ensaios bons são os de Richard Dawkins: são ensaios, o que é esteticamente agradável, divulgando ciência. Já ensaios majoritariamente opinativos que requerem o carimbo de ciência por causa do fenótipo de seus autores são apenas fruto, no meio científico, do que Harold Bloom chamou, nas artes, de “Escola do Ressentimento”.


6. Tratada como pseudociência, a Psicanálise tem seu valor quando não está pedindo para ser chamada de científica. Estou longe dos que rejeitam Freud por inteiro porque a ciência não verificou a plausibilidade de seu método e de suas teorias. Para quem discorda de tudo que ele escreveu referente à psicanálise aplicada, recomendo leituras que são primores de ideias e beleza estilística como O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização


7Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África, de Alberto da Costa e Silva e citado nesta postagem, está esgotado, mas vale a pena procurar em sebos virtuais porque é excelente. 


8. Não sou contrária ao politicamente correto por inteiro, só quando considero que é estúpido. O ofensivo de chamar negros de “moreninhos” é que está subentendido nisso que ser negro é ruim e desnobre, portanto as pessoas pensam internamente que ofendem alguém ao chamá-lo de negro e preferem o que consideram de padrão superior: moreno. Apressam-se em corrigir alguém com quem conversam: 


– De quem o senhor está falando? – Daquele cara lá, aquele moreno, o Rafael. – Ah, o Rafael… ele é negro. – Não, não! Não chega a ser negro, é moreninho


Já pregar a abolição dos termos “denegrir” e “mulato” é estúpido. Quem pensa em cor de pele preta quando usa o termo “denegrir”? Quem pensa em mulas ao falar de “mulatos”? As palavras adquirem tons e significados que se afastam de suas origens etimológicas, não sendo útil que expurguemos muitas delas. Quanto ao termo “denegrir”, mesmo em sociedades de população inteiramente preta a escuridão e seus mistérios é vista como algo negativo. Que paranoia leva alguém a imaginar que quando alguém diz “ele denegriu a imagem do Afonso” se está dizendo que o Afonso foi “rebaixado” a preto de pele? Por acaso uma pessoa branca de olhos pretos ouve o termo “denegrir” e se ofende porque supõe que estão falando mal da cor de seus olhos? Francamente. Vamos superar esses complexos.

9. Resenha escrita ao som de “Show you the way to go”, The Jacksons, e outras coisas.


(Postagem publicada originalmente no blog antigo em 03/02/2020 e atualizada em 15/05/2021.)

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