O negro que traiu seus irmãos (Série “Radical do Movimento Negro”, texto nº 8)

Em 18 de fevereiro de 2022, a Folha de S.Paulo publicou um raro parecer negativo sobre a produção de um autor negro. O artigo foi escrito pelo crítico literário e pesquisador da USP Luiz Mauricio Azevedo e tratou do último livro do capixaba Stefano Volp, Homens pretos (não) choram, publicado em nova edição pela HarperCollins. Azevedo avaliou a obra com apenas uma estrela (de cinco), chamando-a de “anêmica”, “ingênua”, “infantil” e “soma de clichês”, atravancando por poucos minutos o trânsito da galera até a mesa de bebidas numa festa motivada pelo sucesso de mais um oprimido histórico.

Seria pra se festejar, realmente, o estranho milagre que avançou sobre o mundo livreiro e que embaralhou os sentidos de tantos leitores a ponto de começarem a farejar cores e lamber sonatas: todos os autores negros que vêm sendo publicados por grandes e médias editoras são considerados ótimos pra quem tem na identidade um critério de aptidão. Se lá no canto escuro do salão se acotovelam alguns críticos profissionais enquanto enchem a boca de pão e sopa pra não ter que falar nada sobre as pencas de livros que vêm da repentinamente produtiva lavoura das minorias – quando requisitados a se pronunciar, apontam, de olhos arregalados e expressão de impedimento, para as próprias bochechas estufadas de comida –, o público acha que deve ser porque é tudo um talismã e que qualquer reserva soaria como chamar o pôr do sol de horroroso. Ao insistir pra que esses críticos façam algum comentário que não seja panegírico ou tergiversação, há o risco de vê-los correr para o banheiro segurando os fundilhos das calças. A afronta pode servir de medicina para os constipados.

Entre escritores brancos e homens, de cada dez que surgem no mercado é possível salvar meio, e do meio talvez a trigésima parte possa concorrer à disputada perduração no tempo. Mas cada-autor-negro-e-mulher que assina contrato com uma editora é “sensacional”, “necessário”, “denunciante da realidade”, “luz no túnel” e “cheio de sentimento” pra uma multidão de comuns em êxtase, e invisível pra intelectuais que noutras ocasiões assumem ares de microscópio ao apontar colônias de bactérias onde leigos, a olho nu, não percebem grande coisa. Matronas e seus ajudantes estão se acudindo pra dar conta de sovar tanto pão e cozinhar tanta sopa em caldeiras industriais só pra que os mortos de medo de contrariar a farra identitária tenham uma desculpa pra fingir que nada acontece. Uma das cozinheiras está deitada na janela, com metade do corpo caído pra fora, tamanho o esgotamento.

Até que Azevedo entrou – “penetrou” – no recinto cheio de balões e agiu como um estraga-prazeres. Nos primeiros parágrafos do seu estorvo, ele diz:

“O autor, o sudestino Stefano Volp, espalha por 224 páginas a tentativa estulta de transformar em matéria literária as limitações sociais que a realidade concreta impõe aos homens negros. A despeito de seu esforço, o que chega até nós é uma soma de clichês, truísmos e cenas cujo valor se perde na adoção de uma voz autoral que se deseja poética, mas que se apresenta insegura, pueril e sem repertório.”

Perto de finalizar:

“De resto, o problema não é a falta de ambição estética em ‘Homens Pretos (Não) Choram’, ou o fato de a obra pertencer às fileiras da literatura de massa. O busílis é ela ser má literatura, aquela que não questiona e também não diverte; aquela para a qual o ato de permanecer na superfície das coisas não é fruto de uma escolha, mas de uma carência.”

Finalizando:

“O fracasso do autor nesse livro não interdita eventuais acertos no futuro. Porém, a estratégia de lançar a obra com paratextos adulatórios de nomes que já provaram seu valor no cenário cultural brasileiro — como Jeferson Tenório e Emicida — reforça a sensação de que talvez essa obra seja importante porque quem a escreveu o é. Isso, é claro, funciona muito bem para a celebração das mídias sociais, mas não para o ofício literário. A existência de Volp, afinal, merece nosso festejo. A julgar por essa obra, sua literatura ainda não.”

Ainda que francamente insatisfeito com a falta de qualidade do livro que fora incumbido de resenhar, Azevedo comparte das causas que buscam fortalecer pessoas com a identidade de Stefano Volp. Celebra a existência do autor, reconhece “as limitações sociais que a realidade concreta impõe aos homens negros”, menciona 18 escritores negros que, na sua opinião, tornam desnecessário “que se saia por aí publicizando haver ouro onde não há”, não deprecia a literatura de massa. É um aliado do progressismo, enfim.

Ativistas das identidades, entretanto, tendem a desaprovar até suaves matizes de discordância, e achacam evidentes posturas não glorificantes a seus cultuados como desonras vermelho-sangue, formas de regicídio. Por isso, quando Volp veiculou o artigo de Azevedo em sua página no Twitter, outros usuários logo vieram socorrer o jovem autor que ficara espantado ao descobrir que seu arraso não era unânime. A antropóloga Debora Diniz, professora da UnB, defendeu Volp com o argumento de quem pensa tutelar escritores negros como se fossem crianças cheias de sonhos que encontrou chorando na porta da sua casa:

“Vou ler o livro. Obrigada por tornar pública essa maneira torta de a crítica operar no meio literário. E mais: se o crítico achou o livro mesmo tão frágil, por que usar o poder da palavra própria e o privilégio da publicação para desmoronar a obra alheia?” (grifos meus)

Sentir pena de um escritor e achar que ele é um miserável que deve ser poupado de crítica literária é mais humilhante do que efetivamente maldizer esse escritor. É assumir que ele não é nem digno de receber avaliação profissional de tão rebotalho que é. A caridade da professora só não ofende aqueles que perverteram valores e agora pensam que é positivo depender de misericórdia pra escapar das regras do jogo. O trecho grifado acima declara que livros frágeis não deveriam ser depreciados “pelo poder da palavra” em publicações que alguns acessam por “privilégio”, o que elucida o silêncio da crítica especializada sobre obras de minorias que parecem O Confuso, O Bizarro e O Fuleiro liquidificados e postos pra assar. Azevedo concede mais respeito a Volp do que Debora Diniz com sua piedade intelectual de “se é fraco, ignore, não seja cruel”. Mas Diniz muito bem sintetizou a lógica dos calados.

Ainda no Twitter, Veronica Oliveira, influenciadora de faxina, ganhou 599 curtidas ao escrever: “se a Folha tá contra eu tou a favor”. Seria ela a favor de ditaduras, da tortura e do homicídio qualificado – coisas às quais a Folha se opõe? Além disso, parece não fazer ideia de como funciona a crítica literária ou mesmo uma publicação plural, pois acha que o artigo de um opinador transitório é a Folha. É até estranha essa sua repulsa, já que o jornal lhe deu espaço pra divulgar sua história e seu trabalho – em texto e vídeo –, e ainda hoje lhe cederia a palavra na seção de tendências e debates se ela requisitasse.

Por outros tantos usuários Azevedo foi chamado de “insensível”, “mal-educado”, “racista”. O juiz Luis Carlos Valois, atuante no Tribunal de Justiça do Amazonas e popularizado após ajudar a negociar a libertação de reféns durante uma rebelião de presidiários, disse que o crítico provavelmente gosta de “literatura morta, sem posicionamento” e que “deve ser daqueles que têm um pinguim caro decorando a casa” (?). Recebeu 570 curtidas por um comentário aparentemente tão tosco quanto o livro que defendia, mas lembro que há duas leis da biblioteconomia que dizem: “todo livro tem o seu leitor” e “todo leitor tem o seu livro”. Talvez seja bonito que Valois e Volp se encontraram num mundo em que tantos ainda se procuram.

Alexandre Bahia, professor de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto, disse que a crítica beirava “o racismo explícito”. A cantora Karina Buhr escreveu: “no primeiro parágrafo […] quis parar, mas segui. Aí ele começa a vomitar racismo e não para mais.” Ganhou 529 curtidas com a acusação baseada na ideia de que criticar um autor negro é racismo, e racismo desengolido. Depois que alguém avisou que o próprio crítico era negro, uma mulher com trejeitos textuais de lá-vou-eu,-Moisés,-descendo-a-montanha-com-as-tábuas disse que Azevedo estava “traindo seus irmãos”. Se malucos solitários discursando pra ninguém nas portas dos bares e nos terminais de ônibus soubessem que em redes sociais as curtidas vêm às centenas pra apoiar delírios como “um negro criticar o livro de outro negro é traição a um irmão”, talvez tentassem adquirir um celular. Às vezes você só não alcança a glória porque insiste em persuadir a plateia errada. Em algum lugar de não tão difícil acesso, gente bruta e não medicada está à espera das suas arengas doloridas ou escandalosas pra começar a pressionar corações com os polegares. Onde estão? Aqui estão. Eles se saúdam.

A tempestade que ameaça desabar sobre quem atrapalha o alto-astral dos festejos a autores passíveis de reprovação – ou, vá lá, passíveis de ressalvas, de mínimos poréns – explica a atual situação da crítica, acamada justamente quando existe tanto lote pra carpir no seu campo de trabalho. Há um espírito no ar de “não quero me envolver”, “não quero arranjar encrenca”, e quem sai favorecido com isso é a tralha que pensa que pra escrever bem basta inspiração, que “vivência” habilita qualquer um a criar ficção desde que os personagens tenham as mesmas características que as suas, que membros de minorias redigindo meras opiniões na universidade devem ser chamados de cientistas. Nesse ambiente de temor e sussurros, um artigo contraindicando o livro de um jovem negro com milhares de seguidores no Twitter é algo a se destacar.

Além da coragem, outro mérito da crítica de Azevedo é a clareza. Essa clareza não deve se confundir com a banalidade estilística de tantos textos de opinião que saem na imprensa ou em páginas independentes, cujos autores, visando a compreensão do usuário médio das redes sociais, escrevem como se tivessem nível A2 – elementar – de proficiência no próprio idioma. Com uma escrita acessível que não é ordinária, Azevedo não contorna e não hesita: todo parágrafo fisga, nenhuma frase é obscura pra propositalmente esconder um juízo desfavorável. Nisso difere de alguns de seus colegas de ofício, tratados na postagem anterior deste blog, que não têm na artimanha do ininteligível um costume que se distribui de forma democrática a todas as apreciações que fazem, mas que selecionam quais tipos ganharão sua faceta “adentrando a mata fechada à noite e sem lanterna”.

Pra tratar do que é incontroverso ou irrelevante nos tribunais da internet, esses críticos são descomplicados: dizem coisas como “isto é maravilhoso, pura poesia” ou “de espantosa frivolidade, morrerá na praia”. Mas quando julgam vacas sagradas que intimamente não aprovam, compelem o leitor a espremer os olhos em esforço pra entender o significado daquelas tintas: “dado o opróbrio de uma desqualificada exegese erigida sobre destroços do ser-em-si moderno, oriundo daquilo que Fulano de Tal chamou de pitoresco agônico, é mister alumiar o encalço do feitio alucina-ação, neologismo leve, pois apenas hifenizado, da lavra de Ciclana, que já abordava o petardo em 1967, mas por vias tortas – vias essas que, hodiernamente, cabe a nós alinhar ao derradeiro cartapácio posto em questão, nada obstante lançando mão de certo relativismo de classe que pesaremos na balança de precisão do extremo rigor acadêmico, algo que, urge revelar, tomamos de inspiração dos russos”. Se no século 21 o novelo embaraçado do estilo já tende a causar suspeita, ainda pior é o expediente do impenetrável que serve a uns analisados e não a outros. Espero que os adeptos desse truque tenham dificuldade pra dormir à noite, porque o conflito moral e a culpa pelo menos são sinais que afastam alguns diagnósticos perigosos de transtornos de personalidade.

Pra embasar este queixume habitual contra o princípio da covardia no qual se pautam muitos supostos heróis da crítica quando precisam tratar de escritores e artistas frágeis (cf. Diniz) que tentam crescer no mercado das ideias usando o passe da opressão histórica – ainda que hoje quase não sejam oprimidos, a menos que pobres –, seria possível citar uma fileira de pensadores antigos e modernos que destoaram das farsas impostas por uma sociedade escorada em tantos enganos. Mas cederei a palavra apenas a John Stuart Mill, que está saindo fresco do meu forno de leituras com seu Sobre a liberdade, de 1859. O chapéu serve em 2022 como se ele fosse um gêmeo univitelino daquela atmosfera:

“Mas o preço a pagar por esse tipo de pacificação intelectual é o sacrifício de toda a coragem moral da mente humana. Um estado de coisas no qual uma grande porção dos mais ativos e inquisidores intelectos acham recomendável manter os princípios e fundamentos gerais de suas convicções dentro de si mesmos – e tentar, naquilo com que se dirigem ao público, adequar tanto quanto possam de suas próprias conclusões às premissas às quais interiormente renunciaram – não pode pôr em evidência os caracteres destemidos, e os intelectos lógicos, consistentes, que outrora já adornaram o mundo pensante. O tipo de homens que se pode buscar nesse estado de coisas ou são meramente pessoas conformadas com o lugar-comum, ou são oportunistas da verdade, cujos argumentos quanto aos grandes temas se conformam a seus ouvintes, e não aqueles que convenceram a si próprios.”

Adiante, há mais defesa da liberdade de intelecto contra a opinião arrebanhada:

“Mas não são as mentes dos heréticos que estão mais deterioradas, e sim a proibição imposta a toda inquirição que não termine com as conclusões ortodoxas. O maior dano é o que atinge aqueles que não são heréticos e a quem todo o desenvolvimento mental é restringido com o raciocínio subjugado pelo medo da heresia. Quem pode calcular o que o mundo perde na multidão de intelectos promissores combinados com temperamentos tímidos, que não ousam acompanhar nenhum curso de pensamento atrevido, vigoroso, independente, por medo de que poderia levá-los a algo que se admitiria ser considerado irreligioso ou imoral? Entre eles podemos, ocasionalmente, ver algum homem de profunda consciência, de entendimento sutil e refinado, que passa uma vida inteira sofismando com um intelecto que não pode ser silenciado, e exaurindo todos os recursos da engenhosidade na tentativa de reconciliar as manifestações de sua consciência e de sua razão com a ortodoxia, coisa que talvez ainda não tenha conseguido levar a bom termo. Ninguém pode ser um grande pensador se não reconhecer que, como pensador, é seu dever primeiro ser fiel a seu intelecto, quaisquer que sejam as conclusões às quais possam levá-lo. A verdade ganha mais até com os erros de alguém que, com o estudo e o preparo necessários, pensa por si mesmo, do que com a verdade de opinião daqueles que só a mantêm porque não se dão ao trabalho de pensar.”

Como a difundida política da pena tem conseguido assimilar mesmo pessoas inteligentes, a causa está sendo ajudada pelo empenho coletivo de vários estratos intelectuais – dos rasteiros aos eruditos – visando racionalizá-la. A trajetória da humanidade sempre muda, mas preserva alguma essência, e há coisas que eternamente retornam porque estão cravadas na nossa natureza de animais que se engajam em absurdos, desde que eles confiram aceitação ou prestígio social. Se um dia nos livrarmos da “pacificação intelectual” desta temporada que tem aniquilado “a coragem moral da mente humana”, não será pessimista, mas realista, prever que logo embarcaremos em outra ortodoxia assassina da liberdade de meramente pensar. Enquanto isso, seguimos chamando nanicos de colossos por indulgência ou poltronaria.

Não há muito mais pra falar de Azevedo – só o conheci por causa do artigo que escreveu na Folha –, mas vale apontar que uma pesquisa de minuto pelo seu nome no Google revela sua opção ideológica pelo marxismo. Hoje a corrente me interessa apenas no sentido histórico – não pra explicar ou revolucionar o mundo –, mas me dá alguma alegria ver pessoas de esquerda sendo genuína resistência ao combo perverso que o autoritarismo identitário – com megalomania, perseguição e paranoia típicas das tiranias – tentou lhes empurrar.

Amantes e contemporizadores de aberrações da extrema direita praticada ou discursada não impressionam quando fazem denúncias à nova onda apartante: estão somente aderindo a outro combo que põe essa aversão junto ao refrigerante e às batatas com tempero de naftalina. Têm um roteiro a cumprir entre adoradores de bestas indomáveis, e cumprem, amiúde com cinismo e pensando que ironia é sempre sinal de argúcia. Já alguém de esquerda desviar um pouco da cartilha do movimento atual pra escrever uma rara crítica honesta e clara ao livro de um autor negro – isso tem valor. Possivelmente Azevedo seja algo identitário, mas não a ponto de sacrificar o bom senso fingindo que Stefano Volp a) é um rei, e que b) está vestido.

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NOTAS

1. As NOTAS, como de praxe, tratam de assuntos correlatos ao texto e também de assuntos banais, amenidades, coisas que falamos enquanto cortamos as unhas dos pés sob o sol. Começarei pelas que têm relação com o texto principal em respeito a quem só se interessa por ele.

2. Fazia tempo que eu não escrevia uma postagem curta, mas o inusitado tem explicação: pensei em tratar de alguns episódios diversos na mesma postagem, mas desisti disso porque demoraria muito pra publicar. Então, por enquanto, ficou aí só a parte sobre o caso Volp versus Azevedo.

3. A internet não exacerba apenas o ódio, mas também o amor. Anúncios como MAIS UM TEXTO SENSACIONAL DE ou QUE LIVRO SENSACIONAL DO têm alta probabilidade de não trazer nada de sensacional: o conteúdo algumas vezes é básico, dado a obviedades, ou tresloucado; e o estilo é preguiçoso, clichezento, falso e tomado pela crise vocabular que marca quem tem escasso repertório e deixa por isso mesmo. Ou de quem tem repertório, mas não sabe modelar com ele, pois não adianta apenas ler os bons – é preciso também prestar atenção. Psicólogos herdeiros da ideia de que “ninguém tem que sofrer” devem ficar contentes ao ler textos com essa construção vulgar. Angústia, receio da própria ignorância, suor e exaustão – desnecessários pra quem respira os vapores deste tempo de soberba e relaxo. A depender dos trechos de Homens pretos (não) choram que Azevedo selecionou pra provar seu ponto, a displicência da escrita de Volp se beneficia dessas características.

3.1. É claro: existe o bom texto simples e o mau texto simples. E não é porque um texto é simples que ele foi fácil de fazer. Os bastidores de um artigo que delicia o leitor podem revelar um cenário de guerra. Mas parece que alguns presunçosos que passam mais horas diárias querendo influenciar os outros em redes sociais do que tentando ser influenciados pelos mestres se pensam capazes de também escrever textos ao se deparar com um bom texto simples. Na hora em que se põem a redigir, no entanto, seu amadorismo fica claro: não têm experiência de encadeamento; acham que é fácil copiar estilo, enxerto de citações e sarcasmo alheios; compõem de uma vez só e ainda anunciam, com triunfo: “escrevi em uma sentada”. Dá pra perceber, amigo. “Muitos gostaram.” É a sua audiência que aceita qualquer coisa ou elogia por gentileza. Quando alguém que escreve não tem autocrítica, o elogio de uma audiência desatenta, às vezes até parva, é uma armadilha, pois leva o escritor a achar que o topo da excelência já foi alcançado. Crescerá somente para os lados, como um musgo, e não pra cima, como uma árvore.

3.2. Profissionais ou gênios muitas vezes têm facilidade pra escrever bons textos rapidamente. Fazer uma ótima página por dia, na minha opinião, já é algo de extrema destreza e velocidade, mas um avaliador da Amazon chamou Philip Roth de “charlatão” por escrever apenas uma lauda diária, disse que essa informação sobre seu ritmo de escrita o deixou “chocado” e que por isso ele, Roth, “não é um escritor profissional nem aqui nem em Weequahic”. Estou contando a anedota só pela diversão, pois o choque do usuário decepcionado com uma suposta lentidão de um de seus autores mais lidos não tem nenhum cabimento. Não há morosidade que derrube o valor de um bom resultado textual, que é o que importa. Joseph Mitchell que o diga.

4. Sempre gostei da imagem do rei nu, mas, como já fiz uso dela algumas vezes, penso em colocá-la num cruzeiro sem data de retorno a partir desta postagem. São várias as imagens boas que se desgastam quando repetidas nos nossos textos ou no grande conjunto do que já foi publicado. Outra que me vem à mente agora é “a história se repete: na primeira vez como tragédia, na segunda vez como farsa”, de Marx, que é uma referência muito usada e que talvez possamos enfiar na mesma viagem do rei nu. Quem sabe “o bom, o mau e o feio” também possa conseguir um bilhete. E se sobrar espaço, o “é simples sem ser simplório” quer embarcar, escondendo na sacola seus amigos mais rodados “tragédia anunciada” e “seria cômico se não fosse trágico”. Existem outros exemplos – afora os clichês mais maria-sem-vergonha dos quais até pessoas bacanas se fartam –, mas isso é tema pra outra hora.

4.1. Já usei tantas vezes o “é simples sem ser simplório” e já vi tanta gente usando que o termo está cadavérico, maltrapilho e sem alguns dentes. Também balbucia coisas enfadonhas como “está tão frio hoje”, “está tão quente hoje” e “nossa, como ela cresceu”.

4.2. O irmão dele, o “é sentimental sem ser sentimentaloide”, está oficialmente desaparecido no banco de dados da polícia, mas às vezes surge pra jantar e logo vai embora de novo. A família não sabe que se prostitui no editor de textos de quaisquer clientes, sem critério.

5. Textos bons têm temperatura quente ou fria. Fora disso estão os mornos e febris, que, embora muitas vezes ruins, têm público.

5.1. Parafraseando Frank Zappa, a maioria das pessoas não reconheceria qualidade textual nem que ela viesse mordê-las na bunda. E algumas só sabem reconhecer o que presta quando um tutor lhes aponta o mérito. Sem tutor e colocadas pra fazer um teste cego, muitas seriam expostas bendizendo um pacote de lixo que já vão embolsando, felizes, e esnobando um pedaço de ouro que lançam rapidamente no rio, com asco. É mais fácil ter bom gosto quando o cânone – ou alguém “de renome” – decide tudo do que se deve gostar.

5.2. A ideia de democracia pautada em “uma pessoa, um voto” tem influenciado as redes sociais. Zés que não conseguem compor três frases seguidas com coerência e que abandonam na página 30 tudo de valioso que tentam ler de repente se tornam “opiniões a se considerar” quando se inspiram na atriz Amber Heard pra manifestar reprovação na internet: fazendo cocô no território de quem odeiam. Azevedo foi massacrado por centenas, talvez milhares de grosseiros que não souberam interpretar seu texto muito simples. Tem quem ache que esse repúdio volumoso deveria significar a necessidade da sua capitulação, mas a opinião de uma multidão de tolos não é parâmetro pra nada. Azevedo deveria ficar desanimado com a potência numérica da burrice, mas alegre ao não agradá-la quando sabe que está apenas fazendo seu trabalho.

6. Escrevi que a Folha se opõe a ditaduras. Não sei bem qual é o público que me lê, mas vou me adiantar ao possível leitor que nesse ponto do texto lembrou do apoio do jornal ao golpe militar e me rebateu mentalmente. O golpe foi em 64 – há quase sessenta anos –, muitos veículos de imprensa da época não imaginavam a dimensão autoritária que viria a partir dali, quem trabalhava na Folha naqueles anos e que possa ter exaltado militares já se arrependeu, se aposentou ou morreu. Somente o desespero argumentativo ou o ódio pelo ódio podem levar alguém a dizer que a Folha de hoje merece punição porque décadas atrás apoiou o Golpe.

6.1. Não vou tratar agora das críticas que a Folha de fato merece porque isso pede uma postagem única. O jornal já não vinha bem, mas nos últimos meses tem descido a ladeira com a performance de um corpo esférico. E não estou falando de nenhum colunista de opinião, mas das seções de notícias.

7. Uma edição antiga de Sobre a liberdade, do Mill, descansava na pequena biblioteca do meu quarto em Blumenau. Pretendia ler algum dia. Então recentemente um jovem doutorando em Direito me mandou um trecho do livro e assegurou que eu ia gostar dele. Comprei outra edição mais recente, da Penguin/Companhia das Letras, e li. É excelente – um clássico cujos argumentos permanecem relevantes – e recomendo a leitura a todos, especialmente pela defesa feita à liberdade de expressão. Obrigada pelo empurrão que me fez antecipar essa leitura, Henrique!

7.1. Essa edição que recomendo traz junto o texto A sujeição das mulheres. Este eu li há muitos anos, no auge do meu feminismo – quando o movimento ainda não era tendência e alucinação generalizada, tanto que eu não tinha quase ninguém com quem falar a respeito a não ser dentro dos livros –, mas não me lembro de quase nada dele e vou relê-lo.

8. E agora, Godofredo, traga nossos cortadores de unhas pra acertamos a harmonia dos nossos pés sob o sol.

9. Ruy Castro comprou uma briga difícil: no momento em que divulgava seu último livro, As vozes da metrópole: uma antologia do Rio dos anos 20, foi requisitado pela mídia pra aprofundar suas críticas ao louvor às vezes até gemente à Semana de 22, que comemorou seu centenário há pouco. A reação dos ilustrados veio – embora confusa, emocionada, fragmentária e em alguns casos com ar de “não tenho que gastar meu tempo refutando isso” –, e suspeito que possa ter prejudicado a importância do lançamento da antologia organizada pelo Ruy. O que é triste, porque ela é ótima e mostra um Rio de Janeiro tão moderno, antenado e criativo nos anos 20 que sua leitura torna justificável a revolta do Ruy com o apagamento de inúmeros dos autores que colocou nela. Eram pessoas dedicadas à pauta racial, de gênero, de classe; autores – e autoras – que escreviam textos eróticos pra fascinar qualquer um que esteja vivo e com sentidos; escritores poderosos na forma e no conteúdo, atentos à sociedade e às graças e desgraças das relações humanas.

A Folha publicou um texto precário, sem indicação de autoria, sobre o livro. Ainda que se trate de uma antologia permeada por uns poucos comentários do Ruy, acredito que valeria uma resenha sobre a seleção, o frescor e o visionarismo de alguns dos autores e as provocações que o antologista faz à turma de 22 quando a usa como contraponto aos que, na sua opinião, realmente mereciam ser chamados de modernos.

Deixei uma avaliação sobre o livro na Amazon, com trechos escolhidos. O Ruy já tinha me apresentado ao Agrippino Grieco por meio de suas colunas na Folha, e agora me levou a buscar outros autores que estão em As vozes da metrópole e merecem um aluguel de olhos mais longo. Recomendo a aquisição.

10. Do Oswald de Andrade li, no ano passado, Serafim Ponte Grande, e, recentemente, Memórias sentimentais de João Miramar. São bons livros pra garimpar: há histórias curtas, neologismos e gracinhas pra encantar e guardar. Mas não colocaria na cabeceira da cama e não levaria pra uma ilha se me dessem a oportunidade de carregar 100 livros comigo. Ou 200. A originalidade tem valor, só que parece sobrestimada quando o que mais importa ainda é a qualidade. Oswald tem dela em alguns momentos, mas em outros parece apelar ao estranho intrínseco e à bizarria anárquica que às vezes fede a pedantismo. Tem quem quase rasgue as vestes de tanta emoção com seus atributos de ousadia – “Oswald! Insólito! Vanguardista! Sui generis! Sempre oswaldeandradeando!” –, mas acho que os dois livros que li seriam melhores se tivessem descansado entre um polimento e outro.

10.1. Alguns bons trechos garimpados de Memórias sentimentais de João Miramar:

“No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai.”

“No silêncio tic tac da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza.”

“E mostrava-nos versos dizendo-se partidário da poesia vagabunda mas cheia de alma.”

“Albornoz e cafetãs de pele cúprica turcavam no expresso internacional guardanapando suores velhos.

“O lago gilette monoculava para o sol entre litografias convexas.

Montanhas espetavam tetas para a sede azul do céu.”

“O céu jogava tinas de água sobre o noturno que me devolvia a São Paulo.”

“Mas o dr. Pilatos confiara-me secretamente na travessinha alcoviteira dos corretores que estávamos à beira de um abismo econômico nacional.

– E desta vez é a bancarrota, meu amigo!

Mas o esganiçado Mendes Mindella sócio águia de Trancoso Carvalho retrucara-me adiante que qual o quê – São Paulo era como um gato, caía de um quinto andar e saía miando.”

10.2. Sempre que possível, sugiro comprar livros em edições comentadas e com textos adicionais, pois eles ajudam a entender melhor a obra. A edição de Memórias sentimentais de João Miramar que li tem textos suplementares de Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Haroldo de Campos e Antonio Arnoni Prado. O texto do Haroldo foi essencial pra digerir e contextualizar o que eu tinha acabado de ler.

10.3. Nem sempre os textos adicionais são bons, claro: a edição da editora Antofágica de O grande Gatsby traz um prefácio maçante da Rita Von Hunty, obcecada com a crítica ao “capital” na obra.

11. Abaixo, algumas músicas que embalaram esta postagem. Escolhi colocar aqui apenas material de artistas ainda em atividade, que mostram ser um mito a ideia de que “não se faz mais música boa”. É verdade que a maior parte do que está no mainstream é ruim, mas há centenas de artistas, conhecidos ou quase anônimos, fazendo música boa em diversos gêneros. Não desista da modernidade se refugiando apenas em baús.

Rendez Vous – Workout

Rendez Vous – The others

VR SEX – End vision

VR SEX – Snake water

VR SEX – Live in a dream

VR SEX – Dog complex

Kendrick Lamar – Alright

Caribou – Bees

Tamaryn – Softcore

Second Still – Recover

Matthieu Faubourg – Yaret

Matthieu Faubourg – Caffeine

Stazzia e Basic 96 – You can’t stop the groove

11.1. Rendez Vous é uma banda pós-punk de Paris que faz a fala do David Bowie “não gosto de músicas, mas de trechos de músicas” parecer desvario. Tem algumas músicas perfeitas de ponta a ponta, faz ótimos clipes baratos compilando vídeos existentes – implosões de prédios em The others, pessoas se socando nas ruas em Distance – e precisa vir pro Brasil.

11.2. VR SEX, de Los Angeles: só posso dizer que é uma das melhores bandas do mundo e que até agora não tem nenhuma música ruim. Nenhuma. Deus está nas grandes coisas também. Lançaram um álbum em 2022 que torna o uso de drogas ilícitas pra aflorar fortes emoções totalmente desnecessário. Dois copos de cerveja só pra relaxar os músculos no culto já estão de bom tamanho. Lembra Red Lorry Yellow Lorry, que também é uma das melhores bandas do mundo (Spinning round, Monkey’s on juice, Hand on heart, This today, Talk about the weather, etc.).

11.3. Kendrick Lamar lançou um álbum novo, duplo, há poucos dias, mas ainda não o ouvi. Anos atrás conheci duas músicas suas, não gostei e já supus que minha amostragem fosse reveladora. Não era. Há poucos meses me deparei com Alright, Swimming pools (Drank) e DNA., que achei ótimas na hora e aí me levaram a procurar a discografia dele. Tem letras e clipes justiceiros que superdimensionam problemas raciais, mas a arte, se bem-feita, aceita quase tudo. E, felizmente, artistas justiceiros ainda não cobram um passe identitário pra decidir quem pode apreciar seu trabalho (alguns talvez até quisessem). Aliás, a melhor música do EP Isso, dos rappers do SKiT, é justamente a mais justiceira, Nota de escurecimento.

11.4. Second Still é uma banda de pós-punk de Los Angeles – já devem ter esbarrado muito com o VR SEX – que faz algumas músicas que parecem saídas do final dos anos 80. A música Recover é demais – a partir dos 3min, quem está sentado quer se levantar e quem está de pé quer se deitar –, mas há outras também ótimas. Conheci no Spotify, por acaso, ouvindo playlists no escuro.

11.5. Matthieu Faubourg é um DJ francês que mora em Hamburgo e faz um dos melhores subgêneros de música eletrônica: house music. Pra quem gosta, recomendo procurar a discografia dele no Spotify. Em 2022, Faubourg lançou o EP Modern music for dreamers, onde está a Caffeine mencionada acima.

11.6. Bom, uma banda que também embalou esta postagem e sobre a qual infelizmente tenho que me referir usando o verbo no passado – era uma banda – é a 16 Horsepower (1992-2005), que já citei em algum outro texto. Nos últimos dias ouvi demais Heel on the shovel. O 16 fazia um country rock realmente de tirar o chapéu.

12. E foi assim que as notas esticaram a postagem. (Falei na postagem anterior que responderia meus e-mails acumulados em fevereiro, mas responderei em julho, depois das férias, e quero mandar um abraço sincero a todos que têm paciência.) Obrigada pela leitura e até a próxima!