Não existe código que defina o bom escritor. O que existe são manuais condensando métodos que aumentam a probabilidade de um trabalho se transformar em texto legível e no mínimo interessante para o público visado. Mesmo os doutrinadores da escrita não querem se comprometer demais com normas e correntes quando vão aconselhando alunos, pois sabem que alguns dos ilustres de hoje foram justamente pessoas que romperam com aquilo que se ensinava e reproduzia em escolas, enquanto figuras diligentes e sistemáticas que matam qualquer professor de enfado com mil perguntas sobre a sedução dos preâmbulos e remates acabam escrevendo livros cujos exemplares repetidos os donos de sebos não aguentam mais empilhar. Há um caminho seguro que provavelmente vai dar lá, mas um ou outro insolente que rasga o mapa e vai se guiando pelo olfato também pode chegar.
Essa elasticidade técnica e estética às vezes é uma maçada porque fica difícil desvendar os próprios gostos e desgostos com uma argumentação que ultrapasse a conversa com o carteiro que pergunta se são bons os livros que ele leva à porta da sua casa. Um leitor não bitolado que emenda clássico atrás de clássico e de repente se deslumbra com uma literatura moderna pode se complicar pra explicar essa traição ao movimento.
Se não existe código que garanta o escritor excelente, tampouco existe código que garanta a constância do leitor – pelo menos daquele não bitolado. Quem está acostumado às capitais europeias pode passar uma tarde enternecedora em Hortolândia. E depois ficar aborrecido ao não conseguir convencer familiares curiosos sobre “o que é que tinha pra fazer” na cidade. Os pouco exigentes se contentam com o “gostei porque é bom” e o “não gostei porque é ruim”, mas pra outros o detalhamento da afeição ou do desagrado é um dever – embora nem sempre fácil de cumprir, porque algumas coisas têm aquele não-sei-o-quê custoso de decifrar.
A expectativa costuma funcionar – falta de fôlego na Europa, um passeio controlado em Hortolândia –, mas notícia mesmo é quando ela é frustrada ou superada. O escritor Filho do Outro Escritor dá aulas de escrita criativa, causa alvoroço nos bairros de classe média das capitais sudestinas, tem uma rede de referências – e não empolga. É enfatuado; pra não usar do estilo repolhudo, em baixa, simula anorexia, ressecando os parágrafos; esnoba qualquer coisa do nada e avisa algumas vezes que vai empregar um clichê pra que o leitor saiba que ele reconhece clichês e tem nojo deles. Aí na outra ponta aparece uma favelada com experiências quase todas limitadas à pobreza, sem mentor ou inspiração de vertente, que manuscreve com certo fluxo e deixa abertos alguns raciocínios – ela prende seu olhar, se assenhora do seu tempo e vai habitar sua memória pra sempre. Esta é Carolina Maria de Jesus (1914-1977), reencontrada. Se descrevessem seu estilo e história sem me mostrar os textos, apostaria no meu desagrado a seus livros. Lendo e passando alguma abstinência nos momentos de não leitura – porque precisava trabalhar, cuidar de afazeres domésticos, prestar atenção nos jornais que não deixam ninguém morrer de tédio no Brasil –, tudo mudou de figura: ela encanta escrevendo de uma forma que professor nenhum recomendaria.
É até excitante ter algumas teorias pessoais assim abaladas. Só recentemente descobri que o Drummond dos livros didáticos era o pior Drummond, e que a pedra no caminho que atrasou nosso romance foi o próprio poema No meio do caminho. Nenhuma curadoria poética excêntrica vai mais impedir que fiquemos juntos agora que cheguei à fonte.
O que Carolina Maria de Jesus observou e escreveu tendo apenas dois anos incompletos de estudo formal é uma dessas surpresas que alguns locais inesperados guardam pra quem tem interesse e disponibilidade em procurar. Consagrada após a descoberta de seus cadernos pelo jornalista Audálio Dantas no final dos anos 50, recebeu elogios de Ferreira Gullar, Clarice Lispector e Manuel Bandeira, e teve seu livro mais famoso, Quarto de despejo, traduzido pra 13 idiomas. Depois de sair da favela do Canindé e comprar uma casa melhor, não demorou a voltar à pobreza e a ter que catar lixo nas ruas pra complementar a renda familiar. Morreu em 1977 – pobre, asmática e abandonada.
O novo resgate de Carolina de Jesus aconteceu há pouco tempo, impulsionado pelo identitarismo. É possível que alguns ativistas a admirem como uma estratégia oportunista de badalar minorias porque são minorias e não por compreender seu valor, mas é equivocado confundi-la com esses calculistas do ressentimento e presumir que sua obra é “coisa de identitários”: Carolina merece a empolgação que cerca seu trabalho sem que seja necessário fazer concessões ofensivas às suas identidades. É certo que ela só viveu o que viveu – e escreveu o que escreveu – porque era negra, mulher e pobre no Brasil, mas quase nenhum leitor forçará estima aos seus textos autobiográficos somente por compaixão. Qualquer repórter pode visitar favelas com o intuito de entregar cadernos aos moradores pra que contem suas histórias de sofrimento, mas a emoção que isso vai gerar não é garantia de valor narrativo e é difícil que saiam dali muitos escritores.
Por meio da escrita e da audácia, Carolina transformou sua tragédia pessoal em registros para a posteridade que nos aliciam pelas queixas e por algum pontual lirismo. Ali vale o “o que” e o “como”, e mesmo os erros de português, quando preservados em edições, têm uma dinâmica que revela os detalhes do seu aprendizado tão peculiar. A mãe, espantada com sua inteligência quando criança, disse: “O que tem de ser, já nasce”. A frase é ruim como fórmula, mas é um curioso apontamento que pode servir pra matutar que Carolina não dependeu de enfeite, maquiagem e propaganda enganosa de militância pra criar fascínio no público. Não precisou ser inventada como boa escritora – já nasceu assim desde os primeiros diários.
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Mas a espontaneidade não é para todos. Quando existe muita vontade de vender e faltam dotes ao produto, entra em ação a equipe de campanha pra trabalhar na arte do merchandising. Anúncios de cigarros ofereciam uma experiência completa de liberdade, sucesso amoroso e financeiro, amizades entrosadas, brio. É impossível dizer quanto da queda do consumo de cigarros se deveu à proibição dos comerciais, mas podemos especular que o veto a essas histórias ao menos contribuiu pra que deixássemos de fantasiar que o tabagismo nos aproximava daquela gente confiante que parecia não dever nada a ninguém e jamais pediria uma quentinha pra viagem na rodoviária. Agora temos outro tipo de anúncio, que nos promete as delícias do jardim da moralidade e da boa cotação social se participarmos de determinada compra coletiva de autores que dizem dirigir o bonde da História. “Vai perder essa? Não durma no ponto, todos estão embarcando!”
Às vezes converso com ex-fumantes e pergunto por que começaram a fumar. Costumam dizer que não sabem direito, mas sempre lembram que na sua época “todo mundo” fumava. Assumem que aderiram a uma tendência. Ouvimos boquiabertos memórias como “no meu tempo, o professor fumava vários cigarros enquanto dava aula”. Espero estar viva pra ver jovens boquiabertos com as novas memórias de seus pais: “no meu tempo, o professor dizia que todos éramos racistas e tínhamos uma dívida a pagar”. Todo mundo está se deixando enganar por essa propaganda.
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Conceição Evaristo (1946) é uma escritora mineira, negra, que ganhou proeminência nos últimos anos graças a uma campanha voluntária de leitores e ativistas. Sua vida foi marcada pela miséria – morava na favela Pindura Saia, em Belo Horizonte –, e enquanto estudava teve que trabalhar como babá e faxineira. Tornou-se a primeira pessoa de sua família a concluir uma graduação, e em 2011 recebeu o título de Doutora em Literatura Comparada pela UFF. Foi finalista do prêmio Jabuti em 2015 e também foi homenageada numa edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Vem sendo considerada uma das grandes vozes da literatura negra e feminina brasileira.
É admirável sua trajetória vencendo obstáculos materiais básicos que muitos nem imaginam em que nível oneram e o quanto conspiram pra reduzir miseráveis a um ciclo perverso de sobrevivência e alienação, mas essa luta não redime sua fraca produção literária. Biografia sofrida, idade avançada, o timbre e o rosto da bondade, a cor e o gênero da violência histórica – absolutamente nada disso conserta um livro ruim, embora outro cenário valha: autores excelentes que têm todas essas marcas às vezes merecem ser mais cultuados, pois alcançaram o topo tendo dado largada em desvantagem.
Uma matéria na Carta Capital dizia que a escritora “atribui suas publicações tardias ao racismo institucional que se reflete na literatura”. Acha que não escreveu tão cedo e que publicou tão tarde por causa do racismo que a embargava. Alguns escritores negros prosperaram apesar do racismo porque dominavam seu ofício, mas Conceição tem a desculpa do racismo não apenas pra demorar a escrever – pelo visto também pra justificar que escreva mal. O racismo pretérito que escorreu sintomas de pobreza para a população negra brasileira e faz com que hoje ela tenha muito mais problemas por ser pobre do que por ser discriminada racialmente tem efeito no baixo acesso de seus herdeiros a bens culturais. Isso é quase indiscutível, e o “quase” aqui é só pra não cimentar que existam assuntos proibidos ao debate. Mas uma vez que uma pessoa negra conquistou esse acesso e está de posse das ferramentas necessárias pra escrever um bom livro, não há mais que se ter comiseração ou regalias avaliativas ao se deter no trabalho dela. Não é o que ocorre com Conceição, protegida por uma redoma, com a redoma cercada por ovos, com os ovos cercados por taças de cristal.
O primeiro livro seu que li foi Olhos d’água. É um livro pequeno, de contos curtos, que estava na lista de literatura do vestibular da UFSC até uns anos atrás. Peguei por curiosidade. Apesar de algumas descrições boas – não me lembro de nenhuma muito boa –, a escrita é geralmente simplória, apelativa e piegas. Tem quem goste. Peculiar é que tenha virado um culto.
Conceição põe um personagem pra falar com um erro de português não perceptível ao ouvido: “ela estava atrazadérrima”. Pessoas pensam e falam com erros, mas eles são sonoros: “pobrema meu”, “pregô as tauba”, “fazem cinco dias que ela pariu”, “ficou meia chateada”, “fui ao cabeleleiro”. O personagem de Conceição inova: o narrador externo descreve sua fala com erros ortográficos que não notamos pela audição. Não é crível que uma Doutora em Literatura Comparada erre a ortografia de uma palavra básica, então o provável é que a escritora tenha usado esse erro como estilo, de propósito. Dado o contexto, ficou sem cabimento. Quando viu outros autores escrevendo com erros ortográficos, talvez Conceição não tenha captado que o recurso não é um oba-oba e que precisa ter sentido: um narrador simples que comete erros no decorrer de todo o texto, erros de português que soam, etc. Mas o narrador de O cooper de Cida usa palavras como “turbilhão”, “desmesuradamente”, “premeditados”, “cronometrados” – e aí solta esse “atrazadérrima” quando vai descrever a fala de um personagem. Inconsistente. Mas um equívoco até suave perto da fixação com a matança como desfecho que a dona de Olhos d’água tem.
Em Di Lixão, de quatro páginas – fonte robusta, espaçamento folgado –, o personagem que dá nome ao conto é um rapaz que vive na rua. Passado ruim, viu a mãe morrer, e ao se lembrar dela pensou “ainda bem que aquela puta tinha morrido!” Sua história nas mãos de Conceição termina assim:
“Fez um esforço. Sentou. Pegou a bimbinha dolorida e fez xixi. Assustou-se. Estava urinando sangue. Passou a língua no canto da boca. O carocinho latejou. Num gesto coragem-desespero levou o dedo em cima da bola de pus e apertou-a contra a gengiva. Cuspiu pus e sangue. Tudo doía. A boca, a bimbinha, a vida… Deitou novamente, retomando a posição de feto. Já eram sete horas da manhã. Um transeunte passou e teve a impressão de que o garoto estava morto. Um filete de sangue escorria de sua boca entreaberta. Às nove horas o rabecão da polícia veio recolher o cadáver. O menino era conhecido ali na área. Tinha a mania de chutar os latões de lixo e por isso ganhara o apelido. Sim! Aquele era o Di Lixão. Di Lixão havia morrido.”
Seu papel como leitor é sentir pena de Di Lixão tendo por base essas frases secas. Ele morre; tenha coração. No conto seguinte, Lumbiá, que não chega a cinco páginas de texto, há esse final:
“O sinal! O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus-menino, Lumbiá morreu!”
Num terceiro conto, a personagem é assassinada. Em um quarto conto, ocorre um suicídio coletivo. Num quinto, o protagonista toma veneno, e assim são suas últimas linhas:
“O outro podia levar os poucos pertences de Ardoca. Podia tomar-lhe tudo. Ardoca não tinha mais nada, nem a vida. Naquela tarde, ainda no trabalho ele resolvera tudo. Num gesto desesperado e solitário bebera lentamente um veneno e decidira levantar para morrer no trem. O outro levava os pertences de alguém que já despertencia à vida e jazia no banco da estação. O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para Ardoca. Amém.”
Em Olhos d’água, Conceição foi surda para a máxima de André Gide de que “não é com bons sentimentos que se faz boa literatura”, e parece ter radicalizado a receita de Cortázar de que “o conto vence por nocaute”, talvez achando que quanto mais nocauteasse personagens negros, mais potência dava às histórias. Nem Agatha Christie matou tanta gente em tão poucas páginas.
Ela disse no Roda Viva que muitas vezes escreve chorando, o que não admira, pois extermina quase todo mundo que tenha nascido debaixo dos seus dedos. O personagem que ganha consciência e se percebe sua cria já pode se antecipar entrando em contato com a funerária pra assinar um plano, pois é possível que seja mais uma vítima da chacina dessa autora que tenta comover o leitor com soluções drásticas. “Como terminar um conto que não sabemos mais desenvolver? Matando o personagem”, diria seu manual de escrita, um fôlder.
Fiéis um pouco mais transigentes, do tipo que ficam no portão tentando atrair passantes para o culto enquanto os radicais estão lá no fundo do galpão lavando os pés do líder, pediram que eu não me apegasse somente a Olhos d’água e lesse Ponciá Vicêncio, publicado pela primeira vez em 2003. Li. É melhor que o livro de contos, mas ainda assim não justifica a celebração sem emendas à escritora, pois a história não tem a grandeza que lhe embutem, utiliza para Ponciá algumas situações que ocorreram a Carolina Maria de Jesus – homenagem ou falta de imaginação? – e termina de maneira preguiçosa, talvez contando com a moleza do leitor permissivo. Isso porque o livro, ao que parece, foi editado. Resta à imaginação fazer conjecturas sobre como eram livros regulares antes de passar pela moldagem da edição.
Poderia dizer que gostei do prefácio escrito por Conceição em parceria com Vera Eunice, filha de Carolina Maria de Jesus, para os diários de Casa de alvenaria, publicados em 2021 pela Companhia das Letras, mas justamente por desconfiar do peso da mão dos editores é que não sei o que é estilo dela e o que é reparo de editor. Afinal, a escritora já claudicava no meu conceito, e ainda começou um texto sobre Toni Morrison, pra Folha de S.Paulo, assim: “Uma vez escutei uma afirmação a qual não entendi logo o significado da mesma”. O velho conselho de tentar cativar o leitor logo na abertura deu certo, a frase é fascinante. E, depois de um toque na seção de comentários, foi corrigida. Nada como a autoestima daqueles que enviam textos sem revisão para o jornal publicar – parece até coisa de personagem de propaganda de cigarros.
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É claro que quando avaliamos criações artísticas ou intelectuais estamos tentando persuadir o leitor a dar mais atenção a pequenas joias que podem passar despercebidas na obra – e que, somadas, vão justificando os festejos de um autor – ou a abandonar predisposições muito positivas só porque alguém de renome disse que determinado trabalho tinha qualidade – tem quem só saiba diferenciar ouro de latão depois da análise de supostos ourives. Mas os trechos de Conceição selecionados acima não têm tanto como meu objetivo disciplinar o gosto dos outros, numa expressão usada pelo crítico Agrippino Grieco. Ambicionar que leitores deixem de correr desembestados para as prateleiras dos livros ruins é como querer parar o vento com as mãos, e não é dessa causa impossível que estou me ocupando. Ou seja, não tento arrasar o leitorado da escritora, pois estou ciente de que todos os livros têm espaço no mercado naturalmente hierarquizado da apreciação estética e argumentativa. Tem quem queira publicar? Publique, atenda à demanda.
O que me recuso a compreender é a ausência de crítica desvantajosa sobre a obra de uma autora que já foi recomendada em vestibulares, que um grupo tentou alçar à Academia Brasileira de Letras com um abaixo-assinado – se é assim vamos fazer enquetes na internet – e que ativistas conseguiram entuchar nos meios de comunicação só em tons elogiosos. Nem Machado de Assis alcançou essa unanimidade – o já citado Agrippino o criticava, bem como Guimarães Rosa –, então somos abraçados sem consentimento por qual maldito espírito cultural pra que essa questão seja interditada? Na seção de comentários de um perfil que divulgava uma entrevista de Conceição, postei: “tem uma louvável história de superação da pobreza, mas escreve muito mal”. Em poucos minutos recebi o teto dos xingamentos: “nazista”. Não vale a pena tentar me defender de uma excrescência dessas, mas tenho certeza que nenhum real adepto do nazismo vai me enviar convite pra participar do movimento por causa de um inofensivo comentário sobre as habilidades literárias de alguém.
Essa tática de querer nos catalogar em ideologias extremas que nunca nos reconheceriam como membros não é usada apenas pra criar constrangimento pela suave iconoclastia, mas pra mostrar aos outros que estão acompanhando a discussão o que acontecerá se eles se atreverem a fazer críticas a alguns semideuses. Não zelo muito pela minha reputação nesse setor, mas a maioria das pessoas não é assim – não é à toa que depois que apaguei as luzes, fechei o bar e estou indo pra casa, dos becos aparecem leitores trajando sobretudo, capuz e óculos escuros pra revelar: “concordo, mas não conte pra ninguém, finja que nunca me viu, nunca tivemos esta conversa”.
Autoritários que por séculos usaram o artifício da autocensura pra manter multidões sob seu jugo ficariam maravilhados ao constatar como as redes sociais encurtaram os caminhos que levam a certas retrações – sem violência, expulsão da cidade ou apelo estatal. Projetos de tiranos agora têm total controle sobre algumas pessoas, não precisando exibir facas, tacar fogo em suas casas, raptar suas filhas e derramar sangue. É tudo na base do terrorismo psicológico e da ameaça de exposição feita por um coletivo que pode fazer danos a quem quiser sem se responsabilizar por nada.
Neste regramento penal – popular, identitário e on-line –, o preso ideológico não tem direito à identificação dos responsáveis pela sua punição. Como identificar juízes que têm milhares de dedos e aplicam sentenças numa sombra que não se agarra? Se muita gente é capaz de te condenar em uma sentada, você não saberá individualizar quem te condenou. É mais seguro se censurar e deixar que vândalos tomem conta de um espaço que também deveria ser seu. A fogueira foi abolida, mas animais sociais continuam não suportando a ideia da humilhação e do banimento – é jogando com essa natureza grupal que o novo tribunal inquisitório aterroriza.
Não tememos mais O Rei, tememos A Internet. Era tão mais fácil fazer panfletos e piadas contra o personalíssimo rei; agora quando se quer atacar a figura tirânica que mais nos molesta parecemos o navegador ensandecido que tenta golpear o mar em fúria com um bastão.
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Ninguém parece achar necessário recomendar “ouça mais músicos negros” ou “aprecie esportes em que negros atuam”. Negros que se destacam nesses setores não só alcançaram o posto por merecimento como devem ter obrigado muitos racistas de fato a corrigir suas ideias de superioridade racial ou, ao menos, a ter que morder a língua por um instante quando viram John Coltrane tocando ou Jesse Owens correndo. Se é preciso receitar a categoria generalizante escritores negros pra que o público se dedique a ela é porque existe alguma barreira entre os leitores e esses autores. A barreira não é, hoje, racial – se fosse, estenderiam o conselho a músicos e atletas –, mas quem prescreve essa leitura direcionada à cor do autor tenta nos fazer pensar que é a discriminação contemporânea que não abastece bibliotecas particulares com tantos negros.
Surpreendente seria se os detentores de uma marca racial que foi oprimida por longo tempo no Ocidente e que colore tantas regiões pobres tivessem produzido e estivessem produzindo livros na mesma proporção que as pessoas brancas. Não, você não lê poucos negros porque é racista, mas porque poucos negros publicaram livros – o que não quer dizer que você seja obrigado a concentrar todos os seus esforços em ler esses poucos negros que publicaram só pra se provar “antirracista”. Deixe o pregador cobrar o dízimo, mas só pague quando achar que deve. É uma forma de respeito aos bons autores negros não fazer da negritude a sua maior importância.
E quando disserem “leia autores negros” não é exatamente Machado de Assis ou republicanos negros dos EUA que querem – ou aceitam – que você leia. A recomendação é ideológica, e os proponentes da campanha estão se autopromovendo e tentando insuflar o nicho estratégico onde conseguiram se inserir. Já quem veicula de graça esse tipo de gentileza paternalista – que só não é considerada ultrajosa porque delírios impedem a soberania do raciocínio – forja que age por um voluntariado despretensioso. Na sociedade do espetáculo a aparência de virtude é uma característica cada vez mais requisitada, então mesmo o tal homem branco de classe média, não escritor, que diz “leia autores negros” pode estar se lançando à venda. A vida não é só um palco, é também um grande mercado.
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Da mesma forma, provavelmente não é por machismo que você lê poucas autoras. Dos 47 livros não infantis que li em 2021, 10 foram escritos integralmente por mulheres. Metade deles é de regular a ruim, e três já vão para a conta (positiva) de Carolina Maria de Jesus. Dos 40 livros não infantis que li em 2020, apenas 4 foram escritos integralmente por mulheres: Lugar de fala, da ideóloga Djamila Ribeiro, Poemas, de Wislawa Szymborska, Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, e Outro silêncio: haikais, de Alice Ruiz. Só o primeiro título não se aproveita.
Leio majoritariamente homens por acaso – não costuma me interessar o gênero do autor – e por afinidade temática. Gosto de material de divulgação científica, por exemplo, e os livros que leio sobre esse assunto são de imensa maioria masculina. Não porque eu delibere privilegiar homens, mas porque existem ramos nos quais mulheres livres pouco querem se envolver ou pouco querem divulgar para um público mais amplo, fora de gabinetes e laboratórios. A divulgação científica “sofre” dessa situação. Quando dou uma espiada na seção Ciências da minha estante, não vejo com facilidade nenhuma mulher ali. Depois de alguma busca aparece Biologia, de Campbell, que tem mulheres entre os autores, e livros da Janet Browne, que é uma historiadora da ciência. É mais ou menos isso, e para a maioria dos homens presentes não consigo puxar da memória nenhuma mulher que tenha equivalência em trabalho e prestígio entre leigos. Quem são as “versões femininas” de Sagan, Harris, Pinker, Dawkins, Sapolsky ou Sacks?
Então “ler mais mulheres”, como algumas feministas têm pedido, me obrigaria a abrir mão da divulgação científica, pois poucas mulheres publicam livros sobre esse assunto. O mesmo sucede com leitores de ficção russa, ficção científica, crítica marxista, técnicas de xadrez, filosofia, história da Segunda Guerra, história do jazz, conservadorismo, manuais de direito penal, cursos de direito civil, peças teatrais ou textos bíblicos: ler mais mulheres faria com que tivessem que abandonar grande parte daquilo que lhes importa pra atender a uma agenda promovida por pessoas obcecadas com diversidade que são capazes de sacrificar a relevância e a qualidade de quase qualquer coisa em nome dessa causa estética. Uma causa que não busca qualificar ditas minorias sociais pra que cresçam dentro de áreas onde são minorias numéricas, mas opta pelos atalhos não só de variadas cotas como de querer nos forçar, incitando sentimento de culpa, a dar dinheiro e atenção pra gente que mal merece o rótulo piedoso de “esforçada”; gente que sem a comoção da simbologia histórica do fenótipo que carrega seria apenas mais do mesmo meh no seu ramo profissional.
Pedem que leiamos o que não queremos pra satisfazer o corporativismo feminista; que percamos muito tempo com essa Nova Literatura Feminina, que é tantas vezes uma remodelagem dos livros de mulherzinha, mas agora repisando exaustivamente o demônio do meio-dia feminino, as agruras da maternidade e a desilusão matrimonial da balzaquiana que pensa merecer marido melhor porque tem entranhada a ideia do resgate do príncipe; que troquemos clássicos literários, onde homens sobejam, por estudos de gênero, onde mulheres abundam; e, ainda, que nos apressemos em louvores às primeiras “icônicas” que aparecem dentro de uma área costumeiramente dominada por homens.
Aquelas que consideram a seriedade e a maturidade intelectual do seu gênero não vão adotar o comportamento desesperado de elogiar de antemão outras mulheres quaisquer, como se fossem anões carentes que sentem obrigação de se amar numa terra de gigantes. Supor que é preciso chamar de “genial” cada mulher que surge na área da Informática ou da Física pra assim “apoiar mulheres” pode ser um negócio furado: uma estudiosa ordinária que é chamada de genial na marra não impedirá que os atentos e os verdadeiramente geniais notem a farsa que está sendo fomentada, nem vai dissuadi-los de comentar, ainda que pelos cantos, sobre a piada da consagração de uma mulher comum que se mantém de pé num pódio de que não é digna graças às muletas do gênero. Não haverá escândalo de “eu mereço estar aqui, sim!” que faça a fabricação da mulher prodígio soar natural pra quem não está dopado.
É inegável que opressões históricas têm responsabilidade na proporção demográfica que vemos hoje em algumas profissões, na política e nos ramos do conhecimento. Chega a ser malicioso ler darwinistas econômicos alegando que não existem banqueiros negros porque eles, os negros, não querem ser banqueiros, e que não haveria problema nenhum nessa disparidade natural entre grupos raciais. E depois de milênios de domínio do espaço público pelos homens é possível que exista uma influência inconsciente e coletiva de que o poder é uma prerrogativa masculina. Mas vamos graduar um pouco essa abordagem em 8 tópicos:
1. Embora mulheres de várias culturas tenham desenvolvido métodos de cura testando plantas e cuidados no âmbito familiar, a prática da Medicina enquanto profissão é historicamente masculina. Isso não impediu que elas, após conquista de direitos igualitários no Ocidente, decidissem seguir essa carreira, e hoje muitos cursos de Medicina têm mais mulheres do que homens entre seus estudantes. Portanto, não é porque uma profissão é historicamente masculina que mulheres não se interessarão por ela num contexto de liberdade de escolha.
2. Mesmo em países considerados modelos de igualdade de gênero nas oportunidades, muitas profissões não têm “paridade de gênero” orgânica, como utópicos imaginam que deveria ocorrer numa sociedade livre. Mulheres tendem – não confundir tendência com destino – a determinadas carreiras, homens tendem a outras. É difícil que diferenças naturais não influam em diferenças culturais prolongadas e acabem afetando, goste-se ou não, a escolha estatística das profissões, inclusive em sociedades liberais onde mulheres são incentivadas a seguir as carreiras que desejam. Talvez isso ajude a explicar por que o movimento feminista não precisa, atualmente, levantar bandeira por mais mulheres na Medicina.
3. Se a Medicina brasileira é uma área onde a proporção de homens e mulheres está balanceada, o mesmo não se pode dizer das especialidades médicas. Enquanto mulheres são maioria em Dermatologia, Pediatria, Endocrinologia, Alergia e Genética, em quase todas as especialidades cirúrgicas homens são cerca de 90% dos profissionais, bem como eles são imensa maioria em Ortopedia, Urologia, Medicina Esportiva e Perícia Médica. Dá pra especular a razão de alguns padrões observando o relatório de Demografia Médica no Brasil de 2020, mas espero que o feminismo da quarta onda não se meta a tentar corrigir esse tipo de diferença usando suas ferramentas de nivelamento. Se não existe nenhuma barreira objetiva pra que mulheres escolham seguir carreira como cirurgiãs, ortopedistas ou urologistas, não há por que aplicar a régua do gênero nesse setor.
4. Feministas não só infantilizam mulheres ao transformá-las em vítimas perpétuas e intocáveis como também rebaixam os espaços e ramos onde somos maioria. Homens que são minoria em carreiras predominantemente femininas não costumam se rebelar sobre essa disparidade, mas feministas não podem ver uma profissão com poucas mulheres que começam a exigir presença nela, às vezes até fazendo parecer que aquilo em que homens se destacam é mais interessante e é lá que a vida de fato acontece. Nas entrelinhas de alguns discursos, de repente a pedagogia infantil soa como uma carreira menor e até meio estúpida.
O ativismo não prioriza apresentar a mulheres outras opções de trabalho que contornem o estereótipo feminino, mas prefere marcar terreno por meio do salto com varas. Depois de demandar paridade, demandam apreço: quem não quiser seguir mulheres no futebol ou não estiver “acompanhando a produção literária de mulheres” será comparado a medievais. Se disser que gosto muito do voleibol feminino e da ginástica rítmica feminina, mas que acho o futebol masculino mais interessante que sua versão feminina, há uma grande chance de ganhar aulas sobre sororidade para as quais não me inscrevi.
5. Seria ótimo encontrar mais mulheres na política, um ramo que diz respeito a todos. Feministas da quarta onda concordam, mas preferem resolver isso por meio da representatividade forçada, implementando cotas nas candidaturas e no Congresso. Acham que se mulheres são 50% da sociedade, obrigatoriamente elas deveriam ser 50% do quadro político. Como a proporção não é satisfeita de modo espontâneo, creem que ela deve ser imposta por providências imediatas, alterando a lei de oferta e procura. É uma engenharia social que começa a construir prédios pela cobertura.
O Congresso atingir a proporção de gênero da sociedade por meios artificiais é um equívoco iliberal – ainda que bem-intencionado – e clubista. Não faz sentido tratar mulheres como um povo, habitantes de um estado específico que demandaria representação compelida por lei, como se o fato de termos vaginas ou vestimentas associadas ao feminino nos unisse em política e cultura. Nenhuma deputada do PSL me representa apenas porque, como eu, tem útero e usa batom. Fazer cálculos estéticos de gênero para o Congresso – ou para a universidade, ou para profissões – soa quase tão aberrante quanto querer que esses lugares também reflitam a proporção de gordos e de idosos da sociedade. Os grupos das mulheres, dos gordos e dos idosos têm, dentro deles, experiências comuns e particulares, mas elas não são grandes e profundas o suficiente pra que sejam tratadas como uma artéria que passa por todos os membros, transformando esses grupos em homogêneos políticos. Mulheres conservadoras têm mais identificação com homens conservadores do que com mulheres de outras disposições políticas. Mulheres progressistas têm sintonia ideológica quase nula com mulheres reacionárias.
Se alguns idealistas pensam que forçar mais mulheres no Congresso significaria aumentar a possibilidade de descriminalização do aborto, talvez seja o momento de trocar os óculos. Porque mulheres não nos identificamos como grupo ideológico, não temos, na maior parte do tempo, os mesmos interesses. Evangélicos só crescem no Brasil, e a força que eles têm nessa que é uma das suas bandeiras principais quando em conflito com progressistas – a pauta “pró-vida” – será usada pelas mulheres evangélicas que entrarem na política por cotas. Candidatos unidos pela paixão às armas têm mais coesão política do que candidatas que se assemelham por possuírem características femininas. E se uma candidata pró-armas tende a fazer muito mais pelas armas do que pelas mulheres ao chegar ao Congresso, de que serve tê-la enfiado lá, à revelia do voto popular, por ser mulher? Não somos um clube e não é por meio de atalhos que mulheres deveriam participar da política.
É possível que o aumento artificial de mulheres na política influencie outras a enxergar aquele espaço como uma opção? É possível – até certo ponto a representatividade altera nossa visão e nossas escolhas, especialmente quando somos fracos e inseguros. Basta que você seja premiado num concurso nacional de contos de terror pra que um primo comece a pensar “ora, se até meu parente Zé das Quintas consegue, talvez eu também consiga”. Se você ganhar o Nobel da Paz, alguns habitantes do seu país, do seu estado e principalmente do seu município acharão que têm uma pequena parte do seu mérito, e muitos vão se cogitar, em sonhos, futuros candidatos à condecoração, como nunca tinham feito antes. Uma mulher de 60 anos que chega ao pico do Everest pode despertar outras mulheres dessa faixa etária a buscar o mesmo objetivo. A representatividade inspira.
Mas em papéis em que se exige não apenas estética – senão instrução, liderança e criatividade – é melhor que o sujeito representativo alcance seu posto por merecimento e capacidade. Essa parte do processo tem que ser justa pra que a consagração seja quase inabalável. Estamos certos de que o louvor ao mulato Lima Barreto se deve à sua inteligência. Desconfiamos que o louvor a alguns modernos “escritores oriundos das minorias” não se deve ao talento quando eles parecem só ficar de pé no palco com a ajuda de um colar cervical, talas e sendo segurados por três auxiliares suados.
Um público alienado pela campanha militante nem sabe se esses premiados são bons, mas já os vai festejando. Se alguém descobre, sob a solidão do abajur, que está lendo uma porcaria, provavelmente optará por manter silêncio. Criticar as criações artísticas de oprimidos históricos pode provocar a ira de quem só sabe contrapor através de urros, e também pode, dizem terroristas ideológicos, “ajudar o outro lado”. Imagine quão atrofiado está o juízo de uma pessoa que deixa um abjeto como Bolsonaro pautar os seus apoios e gostos, e aí pensa que esse circo vale o ingresso porque é uma forma de “combater o bolsonarismo”. A vida é muito curta pra se anular em nome disso. Logo retomo este ponto.
6. Proporcionalmente, mulheres ainda não têm o mesmo interesse que homens em política. Convido o leitor a ir a uma biblioteca pública e sentar próximo à seção de jornais e revistas. Contabilize, num dia, quantos homens e quantas mulheres leem revistas especializadas em política e cadernos de política dos jornais. Aliás, ao meramente contabilizar quantas pessoas de cada gênero leem jornais o leitor já notará uma diferença. Fatos feios continuam sendo fatos.
7. Mulheres que escolhem carreiras de Humanas e denunciam a falta de mulheres nas Exatas não deveriam, pra começo de conversa, migrar para as Exatas a fim de melhorar a paridade de gênero nessa área? Seja a mudança que você quer ver no mundo.
8. Algumas minorias que demandam privilégios no presente com base em opressões históricas são mais capciosas do que outras. É o caso de muitas feministas. Enquanto a maioria das pessoas negras tem a própria condição socioeconômica como provável sinal dos danos prolongados da escravidão e do racismo científico – cujos efeitos perduraram mesmo depois de oficialmente superado –, a maioria das mulheres burguesas pouco tem do que reclamar sobre si. Mas elas não só protestam pelo seu estado de vassalagem ante um patriarcado que se acumula nas paredes e fissuras – elas também se colocam com alguma prepotência e espírito nonsense no balaio de oprimidos que mal têm onde cair mortos.
Pessoas negras honestas, não cooptadas pelo identitarismo, podem dizer que raramente aparecem em cursos de Engenharia e na direção de empresas porque é difícil superar a pobreza e todos os problemas advindos dela. Uma pobreza que é sintoma de um racismo largamente praticado no passado – insisto – e que aumenta a chance de integrar uma família desestruturada, estudar em más escolas, não ter acesso a bens culturais que elevam a posição social, receber nutrição inadequada, ser vítima de violência doméstica e sexual, aceitar os piores empregos disponíveis. Mas qual é a desculpa que uma mulher de classe média tem pra não estar em ramos dominados por homens e não chefiar a própria empresa? Ela pode dizer: “é que não me interessam as áreas dominadas por homens; prefiro me dedicar à família ou ao trabalho delimitado a chefiar uma empresa – não segui nesse caminho porque eu não quis”. Ou pode cometer estelionato moral: “a culpa é da mão invisível do machismo”. Uma mulher em situação financeira confortável pode pedir ao movimento feminista pra protegê-la de danos como assédio sexual, violência doméstica, estupro e padrões de beleza exagerados. Mas geralmente soa vigarice alguém assim alegar, nestes tempos, que tem obstruída sua liberdade de escolha na carreira “por causa dos homens”.
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Por que deveríamos “ler mais mulheres”, “prestigiar profissionais do sexo feminino” ou elogiar a criação de datas comemorativas como “agosto, mês das tradutoras”? Essas recomendações são inúteis pra escritoras, médicas e tradutoras de excelência – reconhecidas pelo próprio valor –, e só servem pra elevar, às custas da qualidade, mulheres dependentes da publicidade farsesca de um movimento que só consagra incompetentes mediante a exigência de inúmeras concessões. Quantas concessões foram necessárias para reputar Conceição Evaristo como excelente escritora que não merece nenhuma crítica? A quantas concessões se obrigam estudiosos que leem os textos de Silvio Almeida e “não percebem” que ele é anticapitalista, mau observador da realidade e “anacrônico crônico” sobre a questão racial? Quantas concessões fizeram alguns anestesiados jornalistas da Folha de S.Paulo que elogiaram o ideólogo negro Frank B. Wilderson III quando ele disse que brancos não filmam agressões de policiais contra negros por justiça, mas “porque têm fetiche em ver negros sendo agredidos”, que “relações entre brancos e negros são sempre parasitárias” e que é “escravo da própria esposa” porque ela é branca?
Tais concessões partem da política da pena, mas quando a pena se torna vezeira e uma espécie de direito adquirido, alguns passam a fazer concessões por medo – torna-se arriscado criticar. Quem se atreve às vezes almeja ser chamado de corajoso, mas provavelmente será esculachado como cruel e perverso.
Essa política exige uma relação vertical, pois temos pena de quem está abaixo de nós numa dada situação, contínua ou temporária. Isso pode ter efeitos positivos quando se trata de caridade – damos dinheiro a um pedinte porque temos pena da sua condição inferior à nossa – ou de consideração pelo sofrimento alheio – você tem pena do colega de trabalho cuja mãe morreu. No campo intelectual e artístico, entretanto, a política da pena é humilhante. É ela a responsável por fazer adultos serem tratados como crianças do jardim de infância que têm todos os seus desenhos elogiados pela professora, não importa se feitos com capricho ou com desleixo, e é ela a responsável pela ausência de críticos de porte que coloquem certas “escrevivências” – neologismo-crochê de Conceição – sob a mesma lente utilizada pra analisar outros textos.
Se é preciso conceder tratamento especial pra intelectuais e artistas de determinadas identidades, parece que os favorecedores usam como analogia o preceito legal reservado às pessoas com deficiência – o princípio de “tratar desigualmente os desiguais”. Toda essa cortesia, esse finjo-que-não-estou-vendo, esse anúncio de que o rato pariu uma montanha é uma confissão: os benevolentes concessores acham que mulheres, negros e outras minorias são desiguais intelectualmente. Que esses grupos foram historicamente desiguais em direitos todos já sabemos, mas a novidade dos últimos anos de estouro identitário foi essa declaração sutil de que eles são prejudicados inclusive na capacidade intelectual e por isso precisam ser ajudados com júbilos, contratos, espaços e premiações imerecidas.
Ter ciência de que se é favorecido de maneira injusta por misericórdia abala o orgulho de qualquer pessoa sadia, mas os heróis das letras e das artes que jornais e cadernos literários tentam nos empurrar aquietam essa voz interior por meio da racionalização. Eles se esforçam pra acreditar que são mais publicados, mais aplaudidos e mais citados porque merecem e não porque são vítimas da política da pena. Dá pra ver os vinte e oito cabos que erguem alguns deles sobre a multidão, mas você olha ao redor e está todo mundo gritando, emocionado, “estão levitando!, estão levitando!”. É atuação canastrona, e, como em rompantes coletivos, contagia.
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Saudosistas vaticinam que a crítica intelectual e artística já vem morrendo há tempos, mas note que o que sobra dela misteriosamente não busca tratar dos livros das aclamadas minorias, a não ser de modo laudatório. Não trata de forma negativa – se trata, é num linguajar tão cheio de rodeios, tão labirinto de Escher entre névoas, que parece querer esconder numa artificial profundidade analítica o que de fato pensa da bodega que tem nas mãos.
– O que ele disse ali?
– Na verdade não entendi muito bem.
– Ele está criticando ou elogiando?
– Olha, parece que está criticando, mas não sei dizer com objetividade por que acho isso, nem sei indicar os trechos onde estariam as críticas.
– Estranho, ele costuma ser muito claro ao dar opiniões.
É uma entrevista com político. A repórter pergunta: “senhor, sim ou não?” A resposta do entrevistado sai de São Paulo, passa por cachoeiras pra chegar a Minas Gerais, faz uma caminhada até o Piauí, dança com vendedoras de acarajé em Salvador, volta de carona, dá um pulo na lanchonete pra tomar um suco e comer um pastel, retoma o assunto, coloca um ponto final, diz “bem, é isso” – e ninguém entende o que aquilo sintetiza. Nesse momento a repórter poderia forçar “senhor, imagine que tem uma arma na sua cabeça, sim ou não?”, mas peixes ensaboados não se deixam pegar.
– Ela estava grávida ou não?
– Veja bem…
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– Afinal, é um bom livro?
– Ora, senão vejamos. “Bom” é um conceito muito relativo. Ademais…
– O senhor pode nos dizer o que considera ser um bom livro e depois revelar se esse que tem no colo se aplica ao seu conceito de qualidade.
– Mas serei eu a medida de todas as coisas? Não me tenham em tão alta conta…
A falta de clareza não serve apenas pra estofar o banal; ela é útil quando se quer escapar de penalidades. É difícil que tribunais que já estão a nosso favor consigam nos condenar por opiniões mal compreendidas que tivemos medo de assumir e que por isso enfeitamos com “hermetismo” vocabular ou com uma malandra confusão argumentativa. Advogados ficam empolgados ao discursar diante do juiz que não é evidente o que se tencionou dizer, que o cliente não tem que produzir provas contra ele mesmo e que lhe é assegurado o direito de permanecer calado sobre o que estava, de fato, opinando. Terminada a audiência, eles vão para o boteco comemorar a disputa vencida por falta de provas, e o advogado finalmente pergunta: “agora, cá entre nós – estava ou não estava criticando o livro daquela romancista identitária?”. O absolvido responde: “hehe, eu estava”. O advogado – espichado, cabelo seboso na altura dos ombros, uma pequena tiara, óculos de armação quase invisível – dá tapas na mesa enquanto gargalha com grandes gengivas, balançando o corpo e soltando inúmeros perdigotos. Pede mais uma rodada. O crítico se torna um paradigma para os que virão depois dele.
– Neste parágrafo aqui ele deprecia o livro ou é impressão minha?
– Não dá pra saber, o palavreado não deixa.
É usual ver a tática em funcionamento, e parece que a pilantragem obtém certo sucesso. Entendo quando pessoas comuns se resguardam de conceder opiniões polêmicas em público porque têm medo de ser perseguidas como Bruxas de Salém nesse recente surto que nos leva a especular sobre a circularidade histórica, mas intelectuais tagarelas evitando tais temas “delicados” e achando que basta nos alimentar com repetitivas críticas a figuras e comportamentos já gastos pra que fiquemos satisfeitos com seu “posicionamento diante das aflições deste tempo” é uma demonstração do quanto rebaixam a inteligência dos seus leitores. Realmente há uma parte da plateia que aceita ser feita de panaca, mas é vexatório se propor a pensar pra esse perfil. É como fazer o exercício de imaginar qual é o tipo mediano de leitor que você agrega – e começar a escrever só pra ele.
O debate público está com tantos críticos semelhantes que eles parecem ter saído de uma indústria de enlatados. Se você leu um, você já leu quase todos, porque os gostos, as indignações, as denúncias, os panegíricos e as formas de aderir à tentação polarizadora – que puxa ou empurra nos temas mais inusitados – são iguais. Pode fechar os olhos e apanhar qualquer um, eles estão falando as mesmas coisas. Às vezes são obviedades ululantes, às vezes é bololô enigmático; quando não é isso, são apelos chocantes, hiperbólicos e febris que não exigem muito conhecimento e que qualquer sindicalista que nunca abriu um livro seria capaz de fazer em termos até parecidos.
Tem intelectual pensando que ao apenas espinafrar o reacionarismo já está exercendo sua função crítica. Tem intelectual pensando, em sua imaginação megalomaníaca, que ao se opor a Bolsonaro está desafiando ditaduras, equivalendo-se ao chinês de sacola na Praça da Paz Celestial – nesta nova versão, ele seria O Rebelde Conhecido –, gritando impropérios contra Pinochet, dando uma banana para Geisel, resistindo aos coturnos dos marechais. Ao encontrar alguém que foi torturado, perseguido e exilado por alguma real ditadura, esse faminto pelo reconhecimento da sua valentia talvez seja capaz de dizer: “vivo a mesma situação e também estou resistindo”. Expõe-se ao ridículo quem coloca um preço muito maior no que a própria “resistência” vale, mas se você se aconchegar entre outros Napoleões é possível que seu colar de melancias inteiras não seja nem notado.
Se por um lado é cinismo fingir que Bolsonaro é um mero vereador maluco, como alguns liberais e alguns gazeteiros populares têm feito, por outro é de dar pena – o sentimento de inferiorização – quando um intelectual que só sabe falar disso e não vê mais nada na frente do nariz parece querer medalhas pela sua rotinária “bravura” ante um desgoverno já bastante malquisto no meio que esse intelectual frequenta. Dá pra exigir mais dos estudiosos que foram oferecidos pra pautar Cultura & Sociedade. Afinal, os críticos que comparam tudo de que não gostam a Hitler não têm mais nada pra desenvolver. Há muito mais coisas acontecendo simultaneamente, e as análises fáceis, exclamativas, feitas por alguns deles parecem só servir a uma audiência bruta que pretende matar tempo até ser sepultada ou cremada. Uma audiência que podia substituir tudo isso por jogos de baralho e então descongestionar a internet.
*
Assim como muito do identitarismo foi importado, logo alguns brasileiros importarão também a crítica que intelectuais de fora vêm fazendo a essa corrente há bastante tempo. Serão pioneiros das ideias velhas de estrangeiros – essa tradição do pensamento nacional. As lâmpadas estão vindo de barco e vão impressionar aqueles que na sala escura seguram uma vela acesa na cara de um problema só. Antes tarde do que mais tarde.
***
NOTAS
1. Relembro que este campo das NOTAS comenta alguns fios soltos no texto principal, mas também fala de coisas aleatórias, amenidades. Por respeito ao tempo dos leitores que só têm interesse no assunto do texto principal, vou avisar quando as notas deixarem de tratar dele pra começar a jogar conversa fora.
2. No futuro talvez escreva um texto somente sobre Carolina Maria de Jesus. E outro garimpando poemas do Drummond.
3. Estou compilando alguns xingamentos que recebo por causa das críticas a identitários. Vão de “branca pobre”, passando por “nazista”, “neonazista”, até chegar a este que veio na seção de comentários da Folha de S.Paulo: “você consegue ser ainda pior do que Hitler e Bolsonaro”.
Falei no texto principal que “nazista” era o teto dos xingamentos. Mas pouco tempo depois fui chamada de “pior do que Hitler e Bolsonaro”. Acima do que chamei de teto havia outro teto. Acima disso, talvez estaria “você é pior do que Hitler, Bolsonaro e Stálin”. E depois: “você é pior do que Hitler, Bolsonaro, Stálin e Ceaușescu”. E assim sucessivamente. Ter um cérebro de Homo sapiens e usá-lo dessa forma na seção de comentários de um jornal – que desperdício.
3.1. A propósito:
4. Aconselharia Conceição Evaristo a tentar escrever teatro. Há peças marginais que são ruins no papel, mas que ganham brilho quando encenadas. Como ainda há poucas dramaturgas – e menos ainda dramaturgas marginais –, aí está um nicho a ser explorado, já que parece haver certa sina dos identitários em criar nichos e dominar os existentes.
5. A Companhia das Letras publicou no ano passado o livro As 29 poetas hoje, com seleção de Heloísa Buarque de Hollanda. Tem alguns bons poemas ali, mas muitos são constrangedores, como este de Renata Tupinambá:
“[…] não sou cega
não sou surda
não sou muda
não me abusa
não me usa
feridas abertas foram deixadas pela
humanidade
apartheid
nazismo
genocídio
colonização
sem equidade
sem justiça social
não existe igualdade
digo sim à pluralidade […]”
Parece resultado de uma daquelas gincanas de poemas que professoras de português fazem com a turma do oitavo ano, achando que é uma boa ideia incentivar os alunos a escrever poesia antes de ler poesia – ordem de fatores que espera levar o Sol a girar ao redor da Terra pra que depois a Terra tenha interesse em girar ao redor do Sol.
Não dá pra dizer que é espantoso uma editora desse porte publicar poemas ruins por ativismo, já que mesmo antes da explosão identitária a Companhia das Letras e algumas outras casas vinham lançando livros de poemas de homens brancos em que quase nada prestava. Notável mesmo é que é quase impossível achar crítica a muitos desses livros que saíram mais recentemente – não há nem sequer um medroso “é ótimo, [pigarro] com algumas ressalvas [pigarro]” –, e no caso das 29 poetas talvez isso se deva a um acordo tácito de que não se deve atrapalhar a ascensão de quem está se empoderando no cenário cultural. Nada de deixar o direito ao ordinário como apanágio de Francisco Alvim e Arnaldo Antunes, o concretista lisérgico; vamos estender esse direito às mulheres também.
6. Lista de livros escritos por mulheres que li em 2021:
Rastejando até Belém – Joan Didion (Todavia)
Ficções: feminino (contos) – Várias autoras (SESC-SP)
Colorismo – Alessandra Devulsky (Jandaíra)
As 29 poetas hoje – Várias autoras, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda (Companhia das Letras)
Diário de Bitita – Carolina Maria de Jesus (SESI-SP)
Quarto de despejo: diário de uma favelada – Carolina Maria de Jesus (Ática)
Casa de alvenaria, volume 1: Osasco – Carolina Maria de Jesus (Companhia das Letras)
Laços de família – Clarice Lispector (Rocco)
Fome: uma autobiografia do meu corpo – Roxane Gay (Globo)
Ponciá Vicêncio – Conceição Evaristo (Pallas)
O que recomendo dali é Joan Didion e Carolina Maria de Jesus. Não gosto muito de Clarice Lispector, mas marquei trechos bons em Laços de família e acho que alguns leitores poderiam gostar do livro.
7. Em áreas dominadas por homens, às vezes centenas ou milhares deles são considerados comuns até surgir alguém de destaque. Mas quando uma mulher aparece nessas áreas, ela já é chamada, por alguns, de incrível. Probabilidade estranha.
8. É raro encontrar livros que aglutinem um ramo jurídico inteiro – cursos e manuais – escritos apenas por mulheres. Uma busca na área penal, por exemplo, só retorna homens como autores únicos desses livros volumosos, e a única mulher que encontrei é coautora de um manual. Como hoje o ramo jurídico tem proporção praticamente igual de homens e mulheres, tentei decifrar por que elas são tão desafeitas a se dedicar a essa empreitada. Também me perguntei se a razão dessa diferença é o que explica por que cientistas mulheres parecem publicar muito menos livros de divulgação científica que homens. Algumas hipóteses:
a) Ambição. Homens são mais ambiciosos que mulheres e podem sentir maior desejo de prestígio por escrever livros que se tornem material fundamental nas áreas em que atuam?
b) Desafio. Esses livros precisam de várias centenas de páginas pra abarcar o assunto todo com um grau adequado de especificidade. É um trabalho cansativo, extenso e demorado, ou seja, desafiante. Homens se sentem mais atraídos por desafios? Sabemos que homens são mais afeitos ao risco do que mulheres – isso inclui o risco de escrever uma obra desse porte?
c) Administração do tempo. As prioridades cotidianas de homens cientistas e juristas é diferente das prioridades das mulheres cientistas e juristas? Sabemos que mulheres gastam muito tempo com cuidados estéticos, afazeres domésticos e, quando mães, com os filhos. Com essas prioridades tantas vezes autoimpostas, elas provavelmente têm menos tempo e disposição para a tarefa de escrever um livro de 800 páginas.
9. Não é todo mundo que tem privilégios no tribunal identitário e pode alegar “complexidade” e falha de interpretação pra se safar de condenações. Lilia Moritz Schwarcz, aliada da causa, é tratada por muitos militantes como inimiga prioritária. Outra hora vem um texto desta série só pra essa situação excepcional dela.
10. Quando friso que o racismo largamente praticado no passado escorre efeitos socioeconômicos para o presente não estou negando que ainda exista racismo. Estou negando que ele se manifeste, hoje, na proporção que identitários apregoam. Não é surpresa nenhuma que grupos ideológicos queiram fazer diagnósticos radicais sobre a sociedade contemporânea pra depois oferecer remédios que só os laboratórios deles sabem produzir – e numa dosagem venenosa. Tem que ser muito ingênuo pra não perceber que uma diferença de proporção transformou pautas justas em seitas delirantes. Ingênuo ou mal-intencionado.
A novidade é que o identitarismo anda tão mal cotado em alguns lugares que agora seus defensores colocam aspas no termo – “identitarismo” – porque não querem se associar à marca dele, e até dizem que a crítica ao movimento é a crítica a um espantalho. Só se for porque espantalhos têm um aspecto horrendo, e não no sentido da falácia do espantalho: basta ler com atenção qualquer livro de bolso dos seus ideólogos pra começar a esquematizar o que defendem e representam em termos de anacronismo, anticiência, anti-intelectualismo, desproporcionalidade, paranoia e justiçamento.
“Identitarismo é um problema imaginário, inventado”, de repente alegam. É o velho truque de negar que um problema exista pra não ter que enfrentá-lo nem ter que admitir que dentro do seu território uma doença vai atacando a população. Também na História nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Quem acompanha o curso dos homens no tempo vive com o gosto de “já vi isso antes” na boca. Às vezes é um gosto amargo, e nessas horas guardamos o pequeno busto de Rousseau na gaveta e desengavetamos o busto de Hobbes.
11. A partir desta nota, assuntos aleatórios que não têm a ver com a postagem. Agradeço a quem leu até aqui. Pra quem vai continuar lendo, vou preparar um cafezinho. Açúcar mascavo? O quê? Sim, sim, pode pôr os pés no sofá se eles estiverem limpos.
12. Meu motivo pra começar a fumar foi que desde criança eu gostava do cheiro de cigarros. (Sei que é inusual, mas somos o que somos.) O cheiro de um bom cigarro – Dunhill, antigo Carlton – misturado a um bom perfume sempre me agradou. Parei por alguns motivos, mas continuo gostando do cheiro – não sou como o típico ex-fumante. Quando a fumaça de outro apartamento chega à minha sacada, não me importo, e às vezes até dou uma longa fungada, à Chandler Bing.
O que me irrita é quando a fumaça de outros apartamentos é de incenso. Incenso já tende a ser péssimo, mas tenho uma vizinha não bem localizada que consegue escolher os piores, e, em vez de colocar essa coisa pra empestear a casa dela, põe o palito na sacada pra aromatizar o mundo inteiro com aquele sequestrador de serotonina. Geralmente sou muito calma, mas já estive a ponto de gritar “não queremos a porcaria do seu incenso na nossa casa!” e já pensei em desenhar um panfleto pra colar no elevador – “não gostamos do seu incenso, vá cheirá-lo sozinha” –, mas basta uma ação justificada dessas pra ganhar certa fama de maluca no condomínio e nunca mais conseguir lavar a pecha – e às vezes até começar a fazer mais maluquices porque “minha imagem já está manchada, mesmo”. Vou guardar meu surto pra outra ocasião.
Suponho que a dona do palito de incenso seja mulher por uma questão de probabilidade.
13. Tem sido cada vez mais demorado terminar um texto. Isso porque quando olho textos velhos – textos que têm mais de dois anos – não costumo gostar do que leio, tanto é que reverto muitos pra rascunho. Até gosto de trechos, mas é muito difícil gostar do que escrevi na íntegra. Então agora vou enrolando pra escrever, reviso vinte vezes o mesmo texto – sempre mudo coisas –, às vezes fico um mês sem abrir o editor pra que o tempo possa dar o distanciamento que permite ver erros e tons inadequados que a proximidade disfarça. Enfim, tudo isso pra dizer que quando escrevo “texto escrito ao som da música X e outras coisas”, esse “outras coisas” tem sido com cada vez mais coisas. Se fosse anotar todas as músicas que embalaram o texto acima, por exemplo, faria uma lista extensa. Mas quero dar destaque a duas bandas que tenho ouvido muito – minhas preferidas do momento –, e que estiveram por aqui: Uriah Heep e Kat Onoma.
13.1. Só recentemente passei a ouvir Uriah Heep. E fiquei de joelhos, com um braço erguido e o outro segurando um lencinho no nariz. Talvez devesse começar um Diário de descobertas pra anotar quando descobri de verdade coisas que já estavam por aí e pelas quais passei como uma lhama arrogante, supondo que fossem ruins. Vale para o Uriah Heep que só fui ouvir de fato em 2022, vale para o Drummond que só passei a “olhar com outros olhos” em 2021 (livros didáticos terem fotografado o poeta em seu ângulo menos sedutor não ajudou). Apenas nas últimas semanas Uriah Heep já me deu sensação de poder, já me fez sentir um Zaratustra, já me fez sentir um lixo, já me fez chorar (demais; preciso comprar um barco), já me fez cultuar a seleção natural – por ter sido capaz de criar algo como o Uriah Heep –, já me fez passar por um luto atrasado porque o primeiro vocalista, David Byron, morreu por complicações advindas do alcoolismo em 1985. (Esse luto atrasado é uma constante, já fiquei desse jeito com João Ubaldo Ribeiro, Bob Welch, Chus Lampreave, Verónica Forqué, MF Doom – só fiquei sabendo da morte muitos meses depois porque a família dele só divulgou muitos meses depois –, Cherushii, etc.)
É assim que muitos cultos conquistam: por arrebatamento, desequilíbrio emocional, choque apaixonante. E aí se alguém critica seu novo culto – no meu caso, Uriah Heep –, a vontade é de dizer que essa pessoa não é nem digna de pronunciar o nome do culto e que não é à toa que está destinada ao inferno dos gostos. Estou algo ciente de que isso tudo é exagero, fanatismo, mas, como ainda passo pela fase da recém-conversão, fui cegada pelo sublime e sinto que minha obsessão se justifica. Também tenho aquela sensação de que meu culto é superior aos outros, e que os membros do culto repousam sobre nuvens enquanto lá embaixo todo mundo rasteja, e que os apóstatas – “ah, Uriah Heep…, eu já gostei, hoje não ouço mais” – são ainda piores do que aqueles que não aderiram à idolatria apenas porque, como índios isolados, não tiveram oportunidade.
13.2. É difícil escolher músicas pra dar uma palinha – os primeiros álbuns são de matar ou morrer –, mas seguem algumas sugestões, com o ano de lançamento entre parênteses:
Pra matar: Real turned on (1970)
Pra morrer, especialmente da metade pro final: Wake up (Set your sights) (1970)
Pra matar, morrer no meio, ressuscitar depois: Born in a trunk (1970)*
Pra matar na ópera: Bird of prey (1971)**
Pra matar e morrer três vezes dentro de 16 minutos: Salisbury (1971)
Pra morrer, tanto é que tocaram como homenagem quando David Byron morreu: July morning (1971)
Pra adquirir um visual matador; parece uma daquelas músicas pra ouvir quando você está chegando à escola com tênis novos e um corte de cabelo que copiou de algum grande artista (tudo bem que daqui a pouco vão pisar nos seus tênis e zombar do seu cabelo, mas uma das funções da música – da arte em geral – é justamente essa fuga da dura realidade): Tears in my eyes (1971)
Pra matar com a anuência dos anjos: Poet’s justice (1972)
Pra morrer no grande jardim de um bairro rico: Paradise (1972)
Pra matar e morrer com roupas coloridas, chapeuzinho de aniversário, tomando capilé batizado, assoprando uma cornetinha, dentro de uma música que parece ter cinco músicas dentro dela: The magician’s birthday (1972)
Pra morrer na praia vazia e ventosa, à noite: Tales (1972)
No começo parece que é pra matar, mas o refrão é pra morrer no chão, abraçado às próprias pernas: Sweet freedom (1973)
Pra matar no vilarejo medieval e depois terminar ensinando o abecedário a algumas crianças maltrapilhas que vinham carregando cestos de cereais: Seven stars (1973)
Pra matar morrendo: Suicidal man (1974)
*Born in a trunk não era originalmente desse álbum. A música era do Spice, banda que antecedeu o Uriah Heep com a mesma formação. Na versão expandida do álbum colocaram essa versão alternativa de Born in a trunk.
**Bird of prey é a primeira música do álbum Salisbury (1971). O Spotify cadastrou a primeira música do álbum como High priestess, mas quando você clica no nome da música é a Bird of prey que toca.
13.3. Agora que voltei do culto Uriah Heep – o pastor deixou que eu desse meu depoimento no púlpito hoje, mui gentil –, só vou guardar as velas, colocar minha roupa de faxina e um avental, e já retomamos as notas, um minuto.
13.4. Kat Onoma também poderia ser um culto, mas menor e muito mais apartado. A banda, de Estrasburgo, esteve ativa de 1980 a 2004, lançou alguns álbuns… e só tem verbete na Wikipédia da França. Nem em inglês alguém se dispôs a escrever um. Isso tudo é um mistério, pois a banda é apaixonante. A Wikipédia francesa a define como “rock, jazz e música experimental”, mas eu acrescentaria que tem uma dengosa veia country e, ainda, às vezes lembra Lou Reed. Muitas músicas são pra colocar no repeat e esquecer, pra deixar que sejam a trilha sonora de uma noite inteira.
13.5. Vai também uma palinha do Kat Onoma:
Pra abrir um vinho e sentir muito carinho pela vida enquanto funga cigarros alheios na sacada: Memo (1992)
Pro baile esvaziado, já de madrugada: Will you dance? (1992)
Pra resolver assuntos pendentes com bandidos no Texas: The gun (1992)*
Parece aquelas músicas que casais muito magros e muito altos ouvem em coberturas de apartamento (com móveis quase todos brancos e enormes) enquanto tomam gim em silêncio porque há alguma tensão entre eles; ainda existe amor, mas o cara desviará o beijo que a mulher vai tentar dar nele porque continua magoado: Le désert (1992)
Pra morrer: Artificial life (1993)**
*The gun tem clipe. O clipe é legal, mas tira um pouco da experiência “imaginativa” da música, então recomendo primeiro só ouvir e depois, talvez, ver o clipe.
**Artificial life está no álbum Far from the pictures, de 1993. É outra versão, e não é tão poderosa quanto a que coloquei no hiperlink. Sou contra upar para o YouTube músicas que já estão lá, mas decidi upar novamente essa versão de Artificial life porque o guri que já tinha upado não escreveu “versão alternativa” no nome do vídeo. Não estou competindo – o vídeo dele tem áudio melhor, aliás –, mas gosto das coisas mais explicadas.
13.6. Descobri Kat Onoma sem querer, há pouco mais de um ano. Tinha o hábito de baixar compilações no SoulSeek, às vezes com centenas de músicas. Ia ouvindo e garimpando o que prestava. Interessante é que a compilação onde estava o Kat Onoma era muito ruim, excluí dezenas de músicas umas atrás das outras, até que achei The gun e Artificial life. Então valeu muito a pena ouvir tantas músicas ruins pra encontrar, lá no fundo da palha, esse pingente bonito.
13.7. Desde que comecei a assinar o Spotify, passei a baixar muito menos músicas no SoulSeek. Só vou pra lá quando não encontro o que procuro no Spotify. Uma forma boa, e barata, de inibir esse comportamento fora da lei de piratear músicas.
14. No segundo semestre de 2021 aprendi a gostar de coentro. Parece que minha exposição leve e gradual ao tempero ativou o gene da sua apreciação. Para Darwin nada é impossível (tudo bem, algumas coisas são impossíveis, mas a frase perde força se eu fizer ressalvas, haha). Isso vai facilitar futuras viagens pra países como Chile e Portugal, onde já passei maus bocados com esse ingrediente do qual nunca imaginei que pudesse vir a gostar.
15. A Amazon Prime disponibilizou no catálogo alguns filmes mais antigos do Almodóvar, esse gênio de sensibilidade, comicidade, loucura e cores. Uns são melhores que outros, mas recomendo todos. Queria um dia escrever sobre ele aqui. Planos, planos, planos.
16. Falando em “planos”, sei que estou bem atrasada na resposta a alguns e-mails de pessoas queridas. Fevereiro será um mês cheio, mas vou responder. Não comecem, essas pessoas queridas, a achar que sou tratante, arrogante, etc. Fora isso, é como canta Raphael: “digan lo que digan, digan lo que digan, digan lo que digan… los demás!”
17. Texto finalizado ao som de Organised crime, do U.K. Subs. Obrigada pela leitura, um abraço e até a próxima!