Caderno de exercícios nº 2

TESTE CEGO (I)

Dizia que Drummond era um monstro sagrado, “perfeito”. Então peguei poemas pouco conhecidos do itabirano, assinei como meus, e mostrei a ele. Passou pelos versos como quem passa por postes ao dirigir pra fábrica. Me devolveu avaliando: “legal”. Não sabe que não gosta tanto do Drummond. Mas gosta da marca: DRUMMOND.

*

TESTE CEGO (II)

O professor de Teoria Literária desprezava tudo que eu escrevia. Um dia, numa aula, entreguei a ele um papel e disse: “veja este conto da Clarice Lispector que acabaram de descobrir”. Leu, derretido, “ah, ela é maravilhosa”. O texto era meu.

*

TESTE CEGO (III)

A tirada do meu tio analfabeto teve sucesso com um grupo de amigos jornalistas quando menti que a autoria era do Millôr Fernandes. Em outro grupo de jornalistas, quando falei que o autor era meu tio, recebi sorrisos amarelados, constrangidos: era só uma tirada de um senhor analfabeto.

*

TESTE CEGO (IV)

– O que achou da paisagem?

– Achei bonita. Quem pintou?

– Hitler.

*

TESTE CEGO (V)

– Que tal o poema?

– Muito sensível. Quem escreveu?

– O aiatolá Khomeini.

The wine of love, livro de poemas do aiatolá Khomeini

*

TESTE CEGO (VI)

Teste cego com artes e vinhos – quase ninguém passa, quase todos opinam conforme os rótulos, a “opinião dos especialistas” e o preço.

*

CADEIA ALIMENTAR

Engoliu parte do rio. O rio o engoliu todo.

*

NUMA DITADURA (I)

As roupas aguardavam o corpo do soldado. Animadas, fariam a coreografia do fuzilamento de contrarrevolucionários. O soldado se barbeava, pelado. As roupas, tesas no cabide, ansiosas pra matar mais uma vez. Sem elas, os inimigos da revolução ficariam impunes.

*

NUMA DITADURA (II)

Minha querida N.,

Estou apaixonado pela sua dedicação ao regime. Desde que a recolhemos daquela choupana, você gasta até o que não tem pra se manter apresentável durante o serviço, e trocou, sem hesitar, suas sandálias largas por sapatos que machucam – mas impõem respeito. Notei como disfarça a dor e como disciplina a selvageria dos calcantes quando organiza as filas de entrega de mantimentos aos miseráveis; notei como não permite que nenhum fio de cabelo saia do lugar mesmo quando é requisitada nos três turnos. Saiba que nada nos escapa, e que todo sacrifício será recompensado. Também a vi atrás do galpão de cereais se lavando num fio d’água antes da cerimônia de louvor poético ao Grande Líder. Que cena tocante, minha devotada N., que honra sabê-la nos quadros do partido. Outros do seu escalão se escusariam pela falta de chuveiro, mas você não sucumbe à desídia: dá um jeito de servir impecavelmente à nação. Como forma de um primeiro reconhecimento ao seu trabalho prestado até aqui, gostaria de tê-la esta noite, à minha mesa, pra jantar. Esteja linda como nunca, pois você merece. Junto a esta missiva segue um vestido idêntico ao que a filha do nosso Grande Líder usou na inauguração do laboratório que passou a coordenar em outubro. Não tenha vergonha de tomá-lo, não pense que é demasiado pra alguém da sua posição. Também segue, na caixa, um sabonete.

Do camarada que a admira,

V.

*

NUMA DITADURA (III)

Daqui a pouco a pequena Rosa levará uma surra sangrenta de seus pais, e somente no rosto. Será grata por isso no futuro. O general que comanda o país colocou o exército na rua pra sequestrar meninas bonitas.

Alfredo Stroessner, ditador do Paraguai de 1954 a 1989

*

RESSENTIDOS (I)

A mulher feia ficou contente ao descobrir que a supermodelo engordara vinte quilos, e que um fotógrafo fizera disso um escândalo.

*

RESSENTIDOS (II)

Um dia zombaram da sua aparência numa festa de aniversário. Décadas depois, finalmente conseguiria transformar aquela amargura em distúrbio coletivo, palestra, nicho editorial.

*

RESSENTIDOS (III)

O atirador invadiu a escola da sua infância e matou cinco pessoas. Motivação: ninguém fazia nada quando o humilhavam por seus pés tortos. Pessoas de pés tortos no país inteiro se regozijaram internamente ao ler as notícias sobre o atentado.

*

RESSENTIDOS (IV)

Ele domina a gramática da língua portuguesa, mas fracassou como escritor. Quando volta pra casa após um dia pleno de serviços administrativos, gasta suas noites na internet criticando artigos de opinião que começam frases com pronomes oblíquos e fazem uso de neologismos.

*

RESSENTIDOS (V)

“Se você não me amar, vou fazer da sua vida um inferno.”

*

VÁ BUSCAR

O menino de Cartier-Bresson está levando duas garrafas de vinho pra casa. Parece dono delas, parece que as conquistou numa luta, as garotas sentem que ele é importante – até porque está no foco da câmera de um adulto. Na cozinha dos pais, só poderá cheirar as rolhas – o que pra ele é uma festa.

Rue Mouffetard, Paris (1954), fotografia de Cartier-Bresson

*

MADONNA MEETS AGEPÊ

O encontro dela – like a virgin/ touched for the very first time – com ele – deixa eu te amar/ faz de conta que sou o primeiro.

*

JUSTIFICATIVAS PRA MORALISTAS FORA DE HORA (I)

É verdade, ele é machista e egocêntrico. Mas só o admiro como ensaísta, não vamos partilhar uma jarra de sangria ao som de um bolero nem cogitar os nomes dos nossos futuros filhos.

*

JUSTIFICATIVAS PRA MORALISTAS FORA DE HORA (II)

É verdade, ela é fútil. Mas é apenas num tipo de profundidade que eu estou interessado nesta noite.

*

JUSTIFICATIVAS PRA MORALISTAS FORA DE HORA (III)

Vou publicar as imoralidades dos personagens dele. E você, se ultrajado, não leia. Patrocine freiras que escrevem.

*

JUSTIFICATIVAS PRA MORALISTAS FORA DE HORA (IV)

Só quero que faça um gol pro meu time.

*

ADICTOS (I)

Todos as noites oferece boquetes sem sofisticação a estranhos por um punhado de curtidas. “Me dá, me dá logo!”

*

ADICTOS (II)

Fez doutorado na França pra acabar dependente da aprovação de milhares de selvagens que gostam de análises brutas. “Eles me banham em dopamina quando comparo seus inimigos aos nazistas.”

*

A VACA (I)

Eterna ama de leite de outra espécie.

*

A VACA (II)

Ela não pode fugir e tentar se esconder numa multidão de vacas. Pois não só nestas terras não existem vacas de ninguém como seu brinco denuncia a que senhor pertence.

*

FÓRMULAS TEXTUAIS (V)

Não me importo/ Realmente não me importo/ Entendam: não estou nem aí/ Por que eu me importaria, afinal?/ Que fique claro: isso, pra mim, não tem importância/ (Continua…).

*

FÓRMULAS TEXTUAIS (VI)

Se todos estiverem contra, estarei a favor/ Se todos estiverem a favor, estarei contra.

*

O MAU LEITOR (I)

Desdenha qualquer autor moderno que o sujeite a consultar o dicionário. Perdoa autores antigos que o impelem a fazer o mesmo porque não compete com eles.

*

O MAU LEITOR (II)

Desculpa pra abandonar um clássico: “não me identifiquei com o protagonista”.

*

O MAU LEITOR (III)

Achou que a recomendação de não dar continuidade a livros que desagradam se aplicava a alguém como ele, e assim não passa da página trinta em nada que presta.

*

O MAU LEITOR (IV)

Mal lê poesia, mas já está escrevendo as suas.

*

O MAU LEITOR (V)

Encontrou um erro no livro de uma grande autora. Agora se acha mais inteligente que ela, mesmo sendo incapaz de construir o país que contorna aquela pulga.

*

O MAU LEITOR (VI)

Só a crítica sangrante ou a emoção ostensiva o atingem. Não gosta de pensar, mas de sentir. E desconhece a delícia de só sentir quando forçado a pensar.

*

O MAU LEITOR (VII)

Leu os clássicos da sua área por obrigação: provas, dissertação, doutorado. Mas se estufa pra falar deles como se os tivesse frequentado por amor. E engana todo mundo.

*

O MAU LEITOR (VIII)

Lê pra copiar.

*

O MAU LEITOR (IX)

Só lê o que pode usar.

*

O MAU LEITOR (X)

Lê pra melhorar a exibição no espetáculo. Seus livros estão alinhados a suas roupas e sapatos.

*

O MAU LEITOR (XI)

Se não pudesse anunciar o que leu, não leria.

*

O MAU LEITOR (XII)

Finge tão completamente que chega a fingir que leu aquilo que sente que deveria ter lido.

*

O MAU LEITOR (XIII)

Leu um livro sobre aquele assunto. Já crê que pode dar aulas à massa ignara permeando as lições com pequenos sorrisos irônicos ou em tom paternalista.

*

O MAU LEITOR (XIV)

Leu um livro sobre aquele assunto. Agora arma oportunidades pra mencionar o que leu.

*

O MAU LEITOR (XV)

Se foi elogiado pelos críticos, ele gosta.

*

O MAU LEITOR (XVI)

Seus planos de leitura são magníficos. O que efetivamente leu é patético.

*

NOTAS

1. O Caderno de exercícios nº 1 está aqui. Nele explico, no campo das NOTAS, a que se refere essa nova série do blog.

1.1. Exercícios em primeira pessoa são geralmente fictícios. Não testei ninguém com versos de Drummond, não tive um professor de Teoria Literária, não tenho amigos jornalistas a quem mostrei a tirada de um tio analfabeto. E não acho bonita a maioria das pinturas de Hitler – embora perceba que muitas pessoas avaliam arte (quadros, textos, música) conforme a estima ou desestima estabelecidas e a personalidade dos autores. Se quer realmente saber o que alguém pensa de uma peça, não revele a autoria.

2. Não sou amiga, mas aviso: a editora Carambaia tem no estoque só mais alguns exemplares de Ecos do mundo, do Eça de Queiroz. Homem de cultura e ironia exuberantes, Eça escreveu textos jornalísticos sobre países, eventos e populações que, nesse compilado que divulgo, o organizador Rodrigo Lacerda dividiu em quatro eixos: Brasil, Inglaterra, França e Mundo. Lemos descrições divertidas de D. Pedro II, relatos sobre o terrorismo anarquista francês, a perseguição aos judeus na Alemanha (em artigo pra Gazeta de Notícias em 1881), a guerra turco-russa. Um dia talvez eu escreva uma resenha sobre Ecos do mundo, ou quem sabe apenas o retalhe em trechos marcantes, mas seguem alguns aperitivos do poder daquela cabeça portuguesa.

Do artigo O brasileiro (originalmente publicado em 1872 e depois alterado pelo autor):

A bananeira, nos nossos climas, é uma pequena árvore tímida, retraída, estéril; no calor do Brasil é a grande árvore triunfante, de folhas palmares e reluzentes, tronco possante, seiva insolente, toda sonora de sabiás e outros, escandalosa de bananas.

Do artigo D. Pedro II em Portugal (1872):

A mala era uma insígnia – a insígnia do seu incógnito. S. M. trazia em wagon a mala, pela mesma razão que usa no trono o cetro. Como a coroa é o sinal da sua realeza no Brasil, a mala era o sinal da sua democracia na Europa. A mala formava o seu cetro de viagem, como o perpétuo chapéu baixo constitui a sua coroa de caminho de ferro. Se S. M. trouxesse as mãos vazias, isso indicaria apenas que Sua Majestade não trouxera o cetro porque o incomodava para dormir no beliche do paquete; mas não daria a ninguém o direito de afirmar que ele não era o príncipe, o imperante! Com a mala, não! A mala significa que não só não tem na mão o cetro, mas traz na mão a bagagem; que não só deixou a realeza no Brasil, mas tomou a sem-cerimônia na Europa! A mala é a tabuleta do seu incógnito! A mala diz: ‘Apertem-me a mão, tratem-me por Pedro, e não me toquem o hino!’. A Europa olhava-lhe para as mãos, via-lhe a mala, e dizia logo: ‘Ó aquele, que tal te dás por cá?’. O sr. Pedro trazia a mala para que não o confundissem com Sua Majestade. Aquilo significava: ‘Reparem que não sou Ele’. À entrada das cidades, aproximavam-se desse príncipe ilustre os cortejos oficiais; mas Sua Majestade mostrava a mala – e imediatamente as autoridades desabotoavam os coletes! Os camaristas dos outros reis iam beijar-lhe a mão; mas Sua Majestade descobria a mala – e os cortesãos davam-lhe logo, alegremente, palmadas doces no ventre.

Do mesmo artigo, mas tratando dos “srs. eclesiásticos”:

A nós outros, homens pecadores e perdidos, não causa já grandes estremecimentos a presença da beleza mortal: estamos acostumados, pela educação, às glórias do decote. Também nos não perturba o demônio cor de opala que faísca no champanhe. Conhecemos Satanás em todas as edições. Para nós, um colo decotado não é a misteriosa fatalidade do mal, é o pescoço da sra. Fulana, casada com o conselheiro Sicrano; e o champanhe, sobretudo o do Paço, é uma triaga feita com água-pé de Bucelas. Mas para Vossas Senhorias, educados no isolamento e no regime do seminário, amarrados pelos votos tirânicos, emergidos da frieza da sacristia, fatigados do breviário… Ah, para Vossas Senhorias!

Do artigo A revolução do Brasil (1889):

A surpreendente facilidade com que a república se substituiu ao império provém de que há muito no Brasil nada separava a república da monarquia – senão o imperador. E o imperador tinha-se a tal ponto desimperializado, que entre monarquia e república não havia realmente senão um fio – tão gasto e frouxo que, para o cortar dum golpe brusco, bastou a espada do marechal Fonseca.
Todo mundo no Brasil era republicano – mesmo os diplomatas, os bispos e os camaristas do Paço. O próprio imperador, por vezes, em viagem, nas salas de hotel, se declarava republicano.

Do artigo Espiritismo (1893):

Há dias, por uma das raras tardes deste fusco inverno, em que no céu se espalhou alguma doçura e um pouco de sol desbotado, um amigo meu, E. P., que se ocupa de espiritismo, de teosofia, de magia e de ciências ocultas, por diletantismo intelectual, desejou que eu o acompanhasse ao Centro Espiritista, em Paris, onde ele ia contratar médios e magos para uma experimentação solene de fenômenos psíquicos.
E eu acedi – mais pela sedução do sol cor de canário, que amaciava a tarde, do que pela curiosidade dessas artes-negras, que se não combinam com a nitidez e a simplicidade dum espírito latino.

Do artigo Acerca de livros (1881):

Há nessa literatura geral uma espécie de que o inglês não se farta: a literatura de viagens. Já não falo nos romances – isso não constitui hoje uma produção literária, é uma fabricação industrial.
Na vida doméstica inglesa, a novela tornou-se um objeto de primeira necessidade, como a flanela ou as fazendas de algodão; e, portanto, toda uma população de romancistas se emprega em manufaturar esse artigo, por grosso, e tão depressa quanto a pena pode escrever, arremessando para o mercado as páginas mal secas no ansioso conflito da concorrência.

Do artigo Lord Beaconsfield (1881):

Um jornalista francês, num dia de crise política, em que Lord Beaconsfield devia fazer um discurso decisivo, encontrou-o momentos antes, num dos salões da Câmara, ocupado a encher de água o tubozinho de cristal que, por trás da boteira da casaca, conservava frescas as suas rosas. Todo o homem está nesse traço.

Quem valoriza a escrita opulenta e a observação não banal de episódios históricos deve levar Ecos do mundo pra casa.

3. A Carambaia é uma ótima editora pros órfãos da Cosac Naify: publica geralmente bons títulos sem perder de vista o fetichismo da arte física do livro. Seus preços são mais altos, mas o que se ganha com eles vale a pena. Comprei a maioria do que lançou, embora tenha lido uma minoria por enquanto. Minha pressa em comprar se deveu especialmente às tiragens limitadas.

Além das edições esmeradas, a Carambaia captura alguns dos melhores profissionais do ramo pra construir seus livros: prefaciadores, tradutores, designers. Na tradução, outro ponto alto é a menção ao nome do tradutor na capa, o que é um reconhecimento justo pra essa atividade que Caetano W. Galindo bem definiu: “eu escrevo os livros dos outros pra você”.

A editora trabalha com três linhas de publicação:

Edição Numerada – é a edição especial, limitada em 1.000 cópias (o seu exemplar virá com o número marcado manualmente na última página, lembrando a experiência com LPs de baixa tiragem), que tem projetos gráficos muito particulares. Todas as obras são de autores em domínio público.

Selo Ilimitada – obras que não estão em domínio público e que podem ser reimpressas conforme a demanda. Os projetos gráficos ainda são personalizados, mas seguem uma suave similaridade.

Coleção Acervo – são títulos selecionados da Edição Numerada, mas em versão econômica: o projeto gráfico é padrão e a encadernação é em brochura.

4. Algumas das músicas que embalaram esta postagem:

Stuck – Plank I

Marlowe (L’Orange e Solemn Brigham) – President the Rock

Electric Wizard – Witchcult today

Grateful Dead – The golden road

Ebende – For love

4.1. Stuck é uma banda pós-punk de Chicago que conheci pela música Playpen of dissent. A partir daí fui ouvir tudo que tinham tocado, que não é muita coisa. Não é muita coisa e tudo é muito bom.

4.2. Marlowe é um projeto de hip hop da Carolina do Norte formado pelo produtor L’Orange e pelo rapper Solemn Brigham (que se define no Twitter como “a metade barulhenta do grupo Marlowe”). O álbum Marlowe 3 (2022) tem algumas joias – Past life, My people, Hold the crown, Lamelo –, sendo President the Rock uma delas.

4.3. Havia anos que eu não escutava a banda inglesa Electric Wizard, que faz doom metal e stoner rock. Quando a pus esses dias pra tocar era como se estivesse reencontrando algo precioso que estava perdido numa gaveta da casa velha. Existem toneladas de música assombrosa no mundo, então é impossível não passar anos sem ouvir alguma coisa que foi presente em dada época da sua vida – e que naquele tempo você achou que jamais ficaria mesmo dois meses sem colocar pra tocar. Minha segunda música preferida do álbum Witchcult today (2007) é Satanic rites of Drugula.

4.4. Me lembrei de ouvir Grateful Dead, cuja discografia conhecia pouco, porque me veio à mente um personagem real do livro Um antropólogo em Marte, do Oliver Sacks. O livro, que é uma manga na prosa carismática do Sacks, narra sete casos clínicos pitorescos – um que me marcou especialmente foi o do cego desde a infância que voltou a enxergar e teve dificuldade de lidar com essa novidade confusa, tanto que pra melhor entender uma estátua que estava vendo… decidiu fechar os olhos e apalpá-la. Já a história que me lembrou do Grateful Dead se chama O último hippie e conta o caso de Greg, um Deadhead (nome dado aos fãs do Grateful Dead) que tem um tipo de amnésia causada por um tumor cerebral. Parte das memórias que ele conseguiu reter são das músicas do início da banda, e depois não mais:

Foi o que delimitou a extensão de sua amnésia. Lembrava-se perfeitamente de canções entre 1964 e 1968. Lembrava-se de todos os membros fundadores do Grateful Dead de 1967. Mas ignorava que Pigpen, Jimi Hendrix e Janis Joplin estavam todos mortos. Sua memória fora interrompida por volta de 1970, ou antes. Estava preso nos anos 60, incapaz de seguir adiante. Era um fóssil, o último hippie.

O livro é excelente e entraria na minha mala 100 livros pra levar pra uma ilha. Também levaria Vendo vozes, outro título do Sacks, que tinha essa beleza de ser alguém genuinamente interessado pelas coisas, alguém que se amarra na vida – e que mereceria um passe-imortalidade pela reverência a algo que tantos desvalorizam ou gastam à toa.

E Grateful Dead também é algo pra se amarrar. O álbum de estreia, que leva o nome da banda, é de 1967 e está cheio de ouro. Na verdade não tem nenhuma música ruim ali, e das 9 eu favoritei 6: The golden road, Cold rain and snow, Sitting on the top of the world, Morning dew, New new minglewood blues e Viola Lee blues. Por que não favoritei todas se “não tem nenhuma música ruim ali”? Porque só favorito o que realmente quero ouvir com mais frequência. Where is my mind, por exemplo, que é a música mais popular dos Pixies, é excelente, mas não favoritei no Spotify porque ela já toca demais por todo lado e (#chocante) não é das minhas preferidas. Aliás, numa situação-limite imaginária em que um ditador diria “bem, você só poderá escolher uma música dos Pixies pra ouvir a partir de hoje, e nenhuma outra mais será ouvida”, eu iria de No 13 baby, que não é das mais prestigiadas da banda e suspeito que ninguém escolheria como a sua favorita. Não é síndrome de underground: é só uma franqueza de quem nem sempre teme o cânone.

4.5. Ebende é um DJ sueco que descobri por acaso numa playlist do Spotify. A música For love parece harmonizar bem com passeios solitários por lugares quase vazios – uma boa estrada, uma caminhada no parque num horário em que ninguém está lá, uma praia deserta –, mas em lugares cheios, tocada nos fones, também deve ser aquele tipo de som que produz uma viagem blindada. Ebende lançou agora em 2023 um outro álbum, By your side, que também tem ótimas músicas, sendo a melancólica Up a minha favorita.

5. A próxima postagem será sobre A BESTA, que nos deu um alívio com sua queda, mas ameaça voltar pra badernar o país. Não é um texto que tenta prever coisas nem dizer apenas o que todo mundo já disse – geralmente com razão –, mas apontar uma falha no manejo jornalístico dos bestializados.

6. Logo também retomarei os textos sobre a peste identitária que contamina a imprensa, o Congresso, o Judiciário, as universidades, as empresas, as artes, os relacionamentos e até a ciência (que quando fica assim empesteada por religiões políticas deixa de ser ciência real pra ser suposta). É preciso mostrar como essa febre continua a fazer delirar os jornais e as editoras de livros, que agora só falam disso porque dopadas e porque tentando agradar ao largo nicho que surgiu de uma fraude que se propagandeia como conhecimento quando é pura ideologia feita nas coxas.

O que mata nessa epidemia não é a adesão da juventude burrinha, preguiçosa e aflita pelas tendências, mas a conversão de instituições sérias e até de pessoas inteligentes – e que por terem permitido a lavagem cerebral ideológica já não são capazes nem de refutar as alegações mais fajutas da seita identitária. Mesmo o que é errado de modo aberrante não ganha correção porque nossos “especialistas” estão com pena e medo de atrapalhar as coitadas das minorias. Ou seja, não basta mostrar que se é um bundão – surge também a redundância de estar de cócoras.

Uma consequência deprimente disso é que o identitarismo apareceu pra fomentar o espírito iconoclasta: inúmeras figuras que você considerava críticas, agudas na observação e imunes a manias pseudointelectuais se mostraram animais sociais que vão aos livros e à faculdade pra buscar firulas, certificados de autoridade e vocabulário só pra melhor adornar as ânsias primitivas dos rebanhos – onde querem se aquecer. Admirar a vida fria que levaram pessoas de outras épocas que se atreveram a criticar as modas generalizadas de seu tempo é algo que só acontece por causa do distanciamento no calendário. O que inebria mesmo é estar no meio da galera – e ainda pensando que essa galera está, sim, a provocar um novo Iluminismo do qual se participa em posição vantajosa.

Torço pra que a História não absolva essa ignorância diplomada e covarde. Mas minha torcida não é garantia de nada, e por enquanto ela prova que não existe fundamento nas tais más energias: se dependesse da energia negativa que exalo, Bolsonaro já estaria morto, ideólogos identitários já teriam sido humilhados nas suas extremas imposturas intelectuais e editoras e jornais já estariam nos pedindo perdão pelo escândalo de terem empoderado a burrice.

7. Obrigada pela leitura e até a próxima!

Caricatura de Eça de Queiroz feita por Rafael Bordalo Pinheiro em 1880

Caderno de exercícios nº 1

ODE AO AVIÃO (I)

É tudo estranho no avião. A última coisa estranha foi imaginar que sua carapaça não estava lá, e que todas aquelas pessoas estavam voando rápido – sentadinhas.

*

ODE AO AVIÃO (II)

Alça voo sem precisar bater as asas.

*

REPÚDIO AO AVIÃO (I)

Depois de três horas, um cortiço aéreo.

*

REPÚDIO AO AVIÃO (II)

Viagem internacional. Já estávamos felizes e bebendo – até entrar o bebê de má índole.

*

ME DISSERAM QUE A VINGANÇA NÃO LEVA A NADA

Mas acabei de ver seu assassino, ali na rua, achando graça de uma sacola voando no vendaval.

*

LÁ VEM ELA (I)

Enquanto a Morte vinha a galope, Maria tentava fugir com suas bugigangas.

*

LÁ VEM ELA (II)

A Morte à porta bem quando ele estava ocupado tomando banho.

*

LÁ VEM ELA (III)

Em um minuto a Morte vai entrar naquela azeitona.

*

LÁ VEM ELA (IV)

Em um minuto a Morte vai virar aquela curva.

*

LÁ VEM ELA (V)

Em um minuto a Morte vai encorajar o pitbull.

*

O ACUMULADOR

Morreu rico, dando oportunidade à família de brigar durante décadas pelo seu dinheiro.

*

BAGAGEM ÀS PRESSAS

Quando os invasores chegaram, as únicas coisas que conseguiu carregar na fuga foram seu idioma e a memória de uma dança.

*

FAMA SÚBITA

Eu queria nascer e morrer anônimo como a maioria. Mas ontem atropelei a estrela de cinema, e hoje meu nome está em todos os jornais – digitais. Agora, eterno.

*

A SERVIÇO DA IMAGINAÇÃO

A mulher que se casa com um babão servirá de massa morta, saco de ração, onde o marido fantasiará mil estranhas que ele só alcança em pensamento. Montado no grande pacote com opiniões e furos, seus olhos fechados abrem um portal.

*

FRÍGIDAS (I)

Ela não gozava. Era só um instrumento do gozo alheio.

*

FRÍGIDAS (II)

Quando ele terminava, que coincidência, ela também terminava.

*

FRÍGIDAS (III)

Não se excitava. Mas como gostava muito dele, fez com que todo o hotel soubesse, pelos seus gritos, que o noivo mandava bem. Cada dia mais fria, cada vez mais escandalosa.

*

CHICO BUARQUE

Olhos de gude. Dezenas de dentes. A cara da cachaça. Canta pra quem não sabia que o desafino pode ser bonito.

*

ESTILÍSTICA (I)

Toda uma escola formada nos farelos do estilo ruim daquele colunista.

*

ESTILÍSTICA (II)

Escreve mal, e não se esforça pra ser diferente porque ninguém percebe.

*

ESTILÍSTICA (III)

Patchwork de ideias alheias não creditadas.

*

ESTILÍSTICA (IV)

Não cita pra mostrar o citado. Cita pra se mostrar às custas citado.

*

ESTILÍSTICA (V)

Escreve como quem vende carros usados.

*

ESTILÍSTICA (VI)

Escreve pra um público burro porque tem medo de ser pouco lido.

*

ESTILÍSTICA (VII)

Torce pra que aquele sujeito comum não ganhe fama – ou vão descobrir onde fazia sua colheita.

*

ESTILÍSTICA (VIII)

Só dá crédito a gente morta ou inacessível. Rouba ideias do vizinho, mas só avisa quando assaltou Heidegger.

*

ESTILÍSTICA (IX)

Uma sirene humana.

*

ESTILÍSTICA (X)

Se não pudesse mentir, tudo seria sem graça.

*

ESTILÍSTICA (XI)

Uma escrita apenas vagabunda sofisticada como “marginal”.

*

ESTILÍSTICA (XII)

Confunde abordagem meia-bomba com ponderação.

*

ESTILÍSTICA (XIII)

Confunde loucura e gritaria com convicção e potência.

*

ESTILÍSTICA (XIV)

Confunde a si mesmo com os autores que cita. Pensa que ao citar Orwell se parece com Orwell.

*

ESTILÍSTICA (XV)

Esnoba pela frente, copia por trás.

*

DEBATES (I)

Como não tinha argumentos, tentou me vencer com piadas. O público que não entendia de argumentos – mas entendia muito de piadas – não percebeu a manobra, e celebrou minha derrota. Da próxima vez mando um palhaço no meu lugar.

*

DEBATES (II)

Vedou o caminho com um jargão muito pessoal que só ele entendia. Venceu a discussão porque era o único no mundo que falava aquele idioma.

*

ANÁLISE (I)

Comparou um peteleco na orelha com uma machadada nas costas. E concluiu: “os dois lados estão errados”.

*

ANÁLISE (II)

Não entendia do assunto, mas despistou o fato com a receita: “ninguém é santo nessa história”.

*

ANÁLISE (III)

Que análise bonita. Pena que não condiz com a realidade.

*

ANÁLISE (IV)

Péssima análise. Ótima literatura.

*

ANÁLISE (V)

Usa ironia pra mascarar ignorância. É sério quando domina a matéria.

*

FÓRMULAS TEXTUAIS (I)

Ironia/ Choque/ Algo blasé/ Piada/ Mais blasé/ Isso que importa tanto e impacta a vida de muita gente? BLASÉ/ Ironia/ “Não estou nem lá nem cá, muito pelo contrário”/ Mais piadas/ Mensagem moralizante com falsa modéstia.

*

FÓRMULAS TEXTUAIS (II)

“Será que isso ou aquilo?”/ Isso, isso, isso/ Aquilo, aquilo, aquilo/ Citação desnecessária de um morto, geralmente da coleção Os Pensadores/ Síntese que não cheira nem fede/ Frase aguada como desfecho.

*

FÓRMULAS TEXTUAIS (III)

Narra o fato/ Atribui o fato a interesses financeiros.

*

FÓRMULAS TEXTUAIS (IV)

O que diz o 8/ O que diz o 80/ “O que eu digo? 44.”

*

NOTAS

Composição X (1939), de Wassily Kandinsky

1. Resolvi chamar esses pedaços de textos de “exercícios” porque às vezes eles são minicontos, às vezes são quase poemas, às vezes são aforismos, às vezes são deboches, às vezes são algo que não tem uma definição clara em catálogos de gêneros textuais. “Exercícios” podem englobar qualquer coisa.

2. “Exercício” é um rebatizado pra algo que já existia há muito tempo. Agrippino Grieco fazia dessas em papeizinhos e guardava em caixas de sapato (ver coletânea Gralhas e pavões; ver artigo sobre Grieco escrito por Arnaldo Jabor, em 1996, pra Folha; ver coluna do Ruy Castro, em 2021, também pra Folha). A Bíblia do caos, do Millôr Fernandes, é cheia deles. Max Nunes fazia.

Os três citados produziam muitas das chamadas máximas, mas também acabavam criando pequenos textos que punham as patas fora do que o dicionário encerra como máxima, e às vezes também extravasavam os conceitos de piadas e contos. Então… exercícios?

3. A capa d’A Bíblia do caos comprova essa dificuldade de catalogar. São “5142 pensamentos, preceitos, máximas, raciocínios, considerações, ponderações, devaneios, cismas, elucubrações, disparates, ideias, introspecções, tresvarios, obsessões […]” e por aí vai:

Poderia ter feito como Millôr – Caderno de constatações, microcontos, críticas, celebrações, gracinhas, fórmulas, quase poemas, resmungos nº 1 –, mas preferi arranjar uma gaveta espaçosa onde entrasse tudo isso e qualquer outra coisa breve que eu queira. E que pegasse o espírito da tomada de notas num caderno, sem inventariar o que vem à cabeça e é trabalhado no papel.

4. Muitos tuítes são exercícios. Eles recebem aquele nome por causa da plataforma onde são publicados, mas fora dela não tem cabimento publicar num blogue tuítes que nunca estiveram no Twitter.

Pensando bem, talvez tivesse cabimento considerando que um tweet é um pio. Isto poderia ser o Caderno de pios nº 1.

5. A maior graça do exercício – ou do pio – é o poder de síntese.

6. Todo exercício pode virar um tuíte. Nem todo tuíte é um exercício. A maioria não é. Avisar que está com fome ou rir escandalosamente porque percebeu que os próprios cadarços estavam desamarrados é só besteira e perda de tempo (seu e dos seguidores).

7. Alguns dos exercícios deste Caderno nº 1 foram tentados versificados. Transformar uma frase em verso ao quebrá-la em partes pode ser picaretagem,

sou poeta

porque escrevo

assim

mas também pode ser um recurso que dramatiza a prosa ao definir a pausa na quebra do parágrafo e quais palavras estarão avizinhadas em cada linha. A primeira versão do exercício ODE AO AVIÃO (I) tinha saído em retalhos:

É tudo estranho no avião.

A última coisa estranha foi imaginar que sua carapaça não estava lá

e que todas aquelas pessoas estavam voando rápido

sentadinhas.

O efeito é diferente quando o texto é contínuo:

É tudo estranho no avião. A última coisa estranha foi imaginar que sua carapaça não estava lá, e que todas aquelas pessoas estavam voando rápido – sentadinhas.

Optei pelo segundo modelo porque acho que combina mais comigo. Contudo, me parece que o efeito da quebra dá um ar mais importante ao texto, como se vê comparando isto

LÁ VEM ELA (V)

Em um minuto

a Morte vai encorajar

o pitbull.

com isto:

LÁ VEM ELA (V)

Em um minuto a Morte vai encorajar o pitbull.

Se o versinho parece um pouco mais refinado, não seria melhor optar por ele? Talvez, especialmente se se estima esse refino que seduz com mais facilidade. Mas quero ser engajada aqui: inúmeras sentenças da prosa passam despercebidas porque a) se ocultam no meio de um grande bloco de palavras, b) o relapso leitor de prosa muitas vezes está mais atento à mensagem do que à forma da mensagem; ele quer saber do fato, da história, do pretexto, c) há quem tenha dificuldade em perceber um item diferente no balaio sem o apoio do apontar.

Esse apoio do apontar pode vir de um amigo – “preste atenção nisto aqui” –, de um especialista – ele escreve a resenha de um livro já dizendo que é bom e selecionando trechos, e você, como confia na expertise, ficará atento de um jeito que não ficaria se fosse ler no escuro da recomendação – ou de um recurso estético. É do recurso estético que se valem muitos poemas pra dar na vista: o verso há muito tempo se vende como naturalmente mais sensual do que os quadrados e retângulos corporais da prosa, e às vezes ele ainda rouba uma página inteira pra dizer

Quando ele terminava

que coincidência

ela também terminava.

É impossível não se deter nessa mancha destacada numa página branca ou ocupando só um canto da tela. Já se fosse texto texto texto texto texto texto quando ele terminava, que coincidência, ela também terminava texto texto, a frase seria, pra muitos, só um meio pra algo maior. Levaria a um “e daí?”, a um “mas quem é o mais vilão?”, a um “o que isso significa no subtexto político dos personagens?, e qual é a raça deles?”, etc.

Tudo bem: os exercícios, como são curtos e aqui titulados, também acabam em relevo. Mas ainda estão rendendo homenagem à prosa, que tantas vezes só parece de alma quadrada porque quem olha pra ela está deitado no fundo de uma caixa.

E não falei nada disso pra desmerecer versos.

8. “Exercício” também soa humilde – ainda que seja uma humildade fingida. É grave a responsabilidade de asseverar “lá vão as minhas poesias”. Qualquer barata na polenta pode fazer a família se levantar com engulhos e gritando “ISSO é poesia?” Quando você começa a se explicar, o Kadett já está dando partida com partes de parentes saindo pelas janelas. Pior ainda é alguém anunciar que está compendiando as próprias máximas – cria o risco de ser sentado no sofá e ter que ouvir de um grupo de amigos: “estamos preocupados com a sua condição”. Piadas, provocações, microcontos – dá pra criar isso tudo com liberdade e intercâmbio no colo pródigo do exercício.

Além disso, há casos em que ele pode ser definitivo, mas parece que ainda está sendo experimentado. Já desdenhei poemas chamando-os de “exercícios” justamente porque pareciam oriundos de um bloco de rascunhos revelado ao público, uma bodega que era pra ser apenas um treino. Não retiro o que eu disse. Há exercícios bons e há exercícios ruins.

9. Passei vergonha ao descobrir que Pablo Neruda tem bons poemas. Depois de anos debochando de uma amostragem doces-amantes-rolam-afoitos-no-mel, fui ler uma compilação sua que era simples – “para jovens” – e que hospedava bons versos, alguns absurdos (é um elogio: existe uma boa ala do absurdo na poesia). Empolgada, pesquisei por alguma antologia dele que fosse bilíngue, e encontrei algo que eu nunca tinha visto: a tradutora brasileira que trabalhou pra editora José Olympio decidiu transformar todos os poemas em prosa. Vi isso por meio de fotos embaçadas e comentários em lojas virtuais; ainda não sei se é essa a versão que eu vou comprar ou se me atrevo a adquirir a Antología general que foi preparada pela Real Academia Española e pela Asociación de Academias de la Lengua Española – cuja desvantagem é me obrigar a enfrentar o espanhol sem o apoio do português.

Como não li, não posso opinar sobre a preferência da tradutora. A seu favor está a edição bilíngue: pode-se comparar a prosa em português com a poética em espanhol, então ninguém ficará sem fazer ideia de onde estariam os cortes do autor. Contra ela, quem sabe, a petulância de remodelar as curvas de um texto que não é seu. Traduzir poesia, mesmo de uma língua próxima, já é delicado porque impõe o desafio de fazer pequenas escolhas entre a beleza interior e a formosura dos versos, e a tradutora de Neruda vai mais longe pra buscar ossos pro seu ofício quando resolve colocar o poema na maca pra dobrar braços e pernas pra dentro, e ainda enfiar seus revoltos cabelos numa touca. No fim, só lendo pra ver como ficou.

10. Existe um livrinho chamado Os cem menores contos brasileiros do século, da editora Ateliê. Foi organizado pelo escritor pernambucano Marcelino Freire, que convidou cem autores pra escrever “histórias inéditas de até cinquenta letras (sem contar título e pontuação)”. A maioria dos contos não é boa, mas o livro vale pelo que é possível extrair e pela proposta da história em pílula. Abaixo, alguns dos que eu garimpei.

De Fabrício Corsaletti:

FUZILAMENTO

O condenado levantou o pé para evitar a poça d’água.

*

De Glauco Mattoso:

O EUTANAZISTA

Não podendo eliminar o resto da humanidade, suicidou-se.

*

De Jorge Furtado:

Eu não te amo mais.

O quê? Fale mais alto, a ligação está horrível!

*

De Livia Garcia-Roza

ATRIZ NO DIVÃ

Doutor, o senhor já me viu representar?

Fora daqui?

*

De Mário Bortolotto:

LAST BLUES

Não espalho, mas ando triste pra caralho.

*

E do anarquista Millôr Fernandes, que procurou brechas na regra pra contar quase tudo no título:

EMOCIONANTE RELATO DO ENCONTRO DE TEODORO RAMIREZ, COMANDANTE DE UM NAVIO MISTO, DE CARGA, PASSAGEIROS E PESCA, DO CARIBE, NO MOMENTO EM QUE DESCOBRIU QUE A BELA TURISTA INGLESA ERA, NA VERDADE, UMA PERIGOSA TERRORISTA CUBANA, QUE TENTAVA PENETRAR NUM PORTO DO SUL DA FLÓRIDA, PARA DINAMITAR A ALFÂNDEGA LOCAL, E PROCUROU FORÇÁ-LA A FAVORES SEXUAIS

Capitão, tem que me estuprar em 1/2 minuto; às 8, seu navio explode.

11. Esta foi apenas a terceira postagem de 2022. Tenho planos (gargalha a claque, dando chutes no ar) de me dedicar mais a este blogue em 2023, até porque daria pra publicar um livro só com as dezenas de textos não terminados que estão no meu computador. Será outro ano em que “ter mais disciplina” é uma meta.

12. Já que me comprometi a escrever mais vezes em 2023, vou passar a listar somente cinco músicas que embalaram cada postagem. Nesta, escolho:

Guillotine Crowns – Art dealers

Osees – Paranoise

Dry Cleaning – Driver’s story

The Mothers of Invention – You’re probably wondering why I’m here

Fleetwood Mac – The chain

12.1. É um motor da ansiedade entrar nessas páginas que criam listas de álbuns de hip hop e encontrar títulos como Os 60 melhores álbuns de 2022. Você fecha os olhos, aponta pra qualquer um lá no final, ouve – e tem músicas valiosas nele. Restariam 59 álbuns pra garimpar.

A boa notícia é que aquele pessoal decretando O FIM DA MÚSICA – alguns nos anos 70, outros nos anos 80 e 90 – renova, em cada virada, o seu erro, pois diversos gêneros continuam produzindo joias. Deve ser muito triste não aproveitar nada disso por causa de bitolamento a uma época ou estilo. Mentalidade aberta, sem fuleiragem, é mesmo uma qualidade subestimada. Chovem pérolas sobre tantos porcos.

Guillotine Crowns é um duo formado pelos rappers Uncommon Nasa (Nova York) e Short Fuze (Chicago). Lançaram em 2022 o álbum Hills to die on, que tem algumas músicas muito boas, sendo Art dealers uma das minhas prediletas.

12.2. A banda Osees, originalmente de San Francisco e hoje baseada em Los Angeles, já teve alguns nomes: Orinoka Crash Suite, Orange County Sound, etc. Parece que o que está valendo hoje é o Osees, mas na época em que lançaram o álbum Orc (2017) o nome em vigor era Oh Sees. Pra achar esse disco cheio de ouro no Spotify, a melhor busca é pelo nome Thee Oh Sees; algumas das mudanças de nome da banda têm entradas diferentes no catálogo de artistas da plataforma (OCS, Thee Oh Sees, Osees pelo menos), mas o que importa nesse enrosco é o som.

12.3. Em 2022 os ingleses do Dry Cleaning lançaram o álbum Stumpwork. A banda toca e a vocalista mais fala do que canta com sua voz de veludo fumante. A melodia aconchega o desabafo, o “meu querido diário”, o “mulher escrevendo cartas em alto som”. Se alguém tentasse me explicar isso tudo, eu suspeitaria que não fosse gostar. Ouvindo, passei madrugadas e madrugadas com esse álbum no repeat. Agradável pra ler, pra organizar a escrivaninha, pra olhar a cidade. Difícil escolher A Melhor do álbum, mas vou de Driver’s story.

12.4. Meus pais sempre foram muito religiosos, especialmente minha mãe. Devo ter herdado a trupe genética do fervor apaixonado, mas destinei isso pra coisas que existem, como a música. Sempre me converto a novos cultos musicais, e o novo culto é ao Frank Zappa. Não vou me delongar aqui porque posso me perder. Você deixa uma Testemunha de Frank Zappa entrar na sua casa e daqui a pouco ela já está tirando uns discos da maleta pra tocar no seu aparelho de som e ligando uma apresentação de slides na sua parede vazia: “Por que Ele é um gênio (slide 1 de 349)”. Um dia vou escrever só sobre o frankzappismo.

Do álbum Freak out! (1966), do Zappa com o The Mothers of Invention, gosto de tudo, mas You’re probably wondering why I’m here me pega na melodia, na chacota com vozes e instrumentos, na letra (“you rise each day the same old way/ and join your friends out on the street/ spray your hair and think you’re neat/ I think your life is incomplete”), na rápida baixa melancólica que precede os refrões (“they only pay me here to plAAAy” e “what will you tell your mom and pOOOp?” e “and you think you know where it’s AAAt?”). Não foi uma música que me pegou de primeira, mas, quando pegou, pegou com os vinte dedos e uma dentada no pescoço.

12.5. A música mais famosa do álbum Rumors (1977), do Fleetwood Mac, é Dreams – uma praga de rádio comercial, um pano de fundo pra empresários de gosto musical líquido que dirigem do ponto A pro ponto B, mas que é boa. Talvez a segunda mais famosa seja Go your own way, que tem essa animação dolorida de quem está tentando superar qualquer coisa. O álbum merece os elogios: rendeu uma porção de clássicos. Minha preferida é The chain, mas ali tudo vale a pena porque a alma do disco não é pequena (podem me prender por esse atentado; estarei esperando em casa).

13. Finalmente ficaremos livres DA BESTA, mas não nos livraremos tão cedo dos abestalhados. O bolsonarismo se tornou muito maior, mais delirante e mais perigoso que o próprio Bolsonaro. Ter que desviar dessa direita aberrante de um lado e do progressismo alucinado – a viagem é ruim e seu identitarismo virou doença – do outro é desgastante, mas foi isso que a sociedade se tornou na nova Idade das Trevas.

14. O antropólogo baiano Antonio Risério estava organizando um livro sobre identitários e me convidou pra participar dele. O livro se chamaria Contra o identitarismo, mas alguns autores aconselharam Risério a suavizar o título pra tentar alcançar moderados que ainda se mantinham em cima do muro. Então a obra coletiva saiu como A crise da política identitária. Prefiro o título inicial, mas entendo a opção pelo último.

A gama de autores é tão plural que há, no grupo, assessores voluntários de reacionários e também esquerdistas pró-cotas racismo-é-o-pior-problema-do-Brasil. Só tenho responsabilidade pelo que eu escrevi. Meu texto se chama Missionários nas redações e retoma algumas críticas que já fiz aqui à imprensa cooptada pelo identitarismo, mas também comenta casos novos.

O livro tem 560 páginas, foi publicado pela editora Topbooks e já está disponível nas principais livrarias virtuais do país.

15. Obrigada pela leitura e até a próxima!