Caderno de exercícios nº 1

ODE AO AVIÃO (I)

É tudo estranho no avião. A última coisa estranha foi imaginar que sua carapaça não estava lá, e que todas aquelas pessoas estavam voando rápido – sentadinhas.

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ODE AO AVIÃO (II)

Alça voo sem precisar bater as asas.

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REPÚDIO AO AVIÃO (I)

Depois de três horas, um cortiço aéreo.

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REPÚDIO AO AVIÃO (II)

Viagem internacional. Já estávamos felizes e bebendo – até entrar o bebê de má índole.

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ME DISSERAM QUE A VINGANÇA NÃO LEVA A NADA

Mas acabei de ver seu assassino, ali na rua, achando graça de uma sacola voando no vendaval.

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LÁ VEM ELA (I)

Enquanto a Morte vinha a galope, Maria tentava fugir com suas bugigangas.

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LÁ VEM ELA (II)

A Morte à porta bem quando ele estava ocupado tomando banho.

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LÁ VEM ELA (III)

Em um minuto a Morte vai entrar naquela azeitona.

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LÁ VEM ELA (IV)

Em um minuto a Morte vai virar aquela curva.

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LÁ VEM ELA (V)

Em um minuto a Morte vai encorajar o pitbull.

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O ACUMULADOR

Morreu rico, dando oportunidade à família de brigar durante décadas pelo seu dinheiro.

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BAGAGEM ÀS PRESSAS

Quando os invasores chegaram, as únicas coisas que conseguiu carregar na fuga foram seu idioma e a memória de uma dança.

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FAMA SÚBITA

Eu queria nascer e morrer anônimo como a maioria. Mas ontem atropelei a estrela de cinema, e hoje meu nome está em todos os jornais – digitais. Agora, eterno.

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A SERVIÇO DA IMAGINAÇÃO

A mulher que se casa com um babão servirá de massa morta, saco de ração, onde o marido fantasiará mil estranhas que ele só alcança em pensamento. Montado no grande pacote com opiniões e furos, seus olhos fechados abrem um portal.

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FRÍGIDAS (I)

Ela não gozava. Era só um instrumento do gozo alheio.

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FRÍGIDAS (II)

Quando ele terminava, que coincidência, ela também terminava.

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FRÍGIDAS (III)

Não se excitava. Mas como gostava muito dele, fez com que todo o hotel soubesse, pelos seus gritos, que o noivo mandava bem. Cada dia mais fria, cada vez mais escandalosa.

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CHICO BUARQUE

Olhos de gude. Dezenas de dentes. A cara da cachaça. Canta pra quem não sabia que o desafino pode ser bonito.

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ESTILÍSTICA (I)

Toda uma escola formada nos farelos do estilo ruim daquele colunista.

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ESTILÍSTICA (II)

Escreve mal, e não se esforça pra ser diferente porque ninguém percebe.

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ESTILÍSTICA (III)

Patchwork de ideias alheias não creditadas.

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ESTILÍSTICA (IV)

Não cita pra mostrar o citado. Cita pra se mostrar às custas citado.

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ESTILÍSTICA (V)

Escreve como quem vende carros usados.

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ESTILÍSTICA (VI)

Escreve pra um público burro porque tem medo de ser pouco lido.

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ESTILÍSTICA (VII)

Torce pra que aquele sujeito comum não ganhe fama – ou vão descobrir onde fazia sua colheita.

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ESTILÍSTICA (VIII)

Só dá crédito a gente morta ou inacessível. Rouba ideias do vizinho, mas só avisa quando assaltou Heidegger.

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ESTILÍSTICA (IX)

Uma sirene humana.

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ESTILÍSTICA (X)

Se não pudesse mentir, tudo seria sem graça.

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ESTILÍSTICA (XI)

Uma escrita apenas vagabunda sofisticada como “marginal”.

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ESTILÍSTICA (XII)

Confunde abordagem meia-bomba com ponderação.

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ESTILÍSTICA (XIII)

Confunde loucura e gritaria com convicção e potência.

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ESTILÍSTICA (XIV)

Confunde a si mesmo com os autores que cita. Pensa que ao citar Orwell se parece com Orwell.

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ESTILÍSTICA (XV)

Esnoba pela frente, copia por trás.

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DEBATES (I)

Como não tinha argumentos, tentou me vencer com piadas. O público que não entendia de argumentos – mas entendia muito de piadas – não percebeu a manobra, e celebrou minha derrota. Da próxima vez mando um palhaço no meu lugar.

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DEBATES (II)

Vedou o caminho com um jargão muito pessoal que só ele entendia. Venceu a discussão porque era o único no mundo que falava aquele idioma.

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ANÁLISE (I)

Comparou um peteleco na orelha com uma machadada nas costas. E concluiu: “os dois lados estão errados”.

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ANÁLISE (II)

Não entendia do assunto, mas despistou o fato com a receita: “ninguém é santo nessa história”.

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ANÁLISE (III)

Que análise bonita. Pena que não condiz com a realidade.

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ANÁLISE (IV)

Péssima análise. Ótima literatura.

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ANÁLISE (V)

Usa ironia pra mascarar ignorância. É sério quando domina a matéria.

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FÓRMULAS TEXTUAIS (I)

Ironia/ Choque/ Algo blasé/ Piada/ Mais blasé/ Isso que importa tanto e impacta a vida de muita gente? BLASÉ/ Ironia/ “Não estou nem lá nem cá, muito pelo contrário”/ Mais piadas/ Mensagem moralizante com falsa modéstia.

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FÓRMULAS TEXTUAIS (II)

“Será que isso ou aquilo?”/ Isso, isso, isso/ Aquilo, aquilo, aquilo/ Citação desnecessária de um morto, geralmente da coleção Os Pensadores/ Síntese que não cheira nem fede/ Frase aguada como desfecho.

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FÓRMULAS TEXTUAIS (III)

Narra o fato/ Atribui o fato a interesses financeiros.

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FÓRMULAS TEXTUAIS (IV)

O que diz o 8/ O que diz o 80/ “O que eu digo? 44.”

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NOTAS

Composição X (1939), de Wassily Kandinsky

1. Resolvi chamar esses pedaços de textos de “exercícios” porque às vezes eles são minicontos, às vezes são quase poemas, às vezes são aforismos, às vezes são deboches, às vezes são algo que não tem uma definição clara em catálogos de gêneros textuais. “Exercícios” podem englobar qualquer coisa.

2. “Exercício” é um rebatizado pra algo que já existia há muito tempo. Agrippino Grieco fazia dessas em papeizinhos e guardava em caixas de sapato (ver coletânea Gralhas e pavões; ver artigo sobre Grieco escrito por Arnaldo Jabor, em 1996, pra Folha; ver coluna do Ruy Castro, em 2021, também pra Folha). A Bíblia do caos, do Millôr Fernandes, é cheia deles. Max Nunes fazia.

Os três citados produziam muitas das chamadas máximas, mas também acabavam criando pequenos textos que punham as patas fora do que o dicionário encerra como máxima, e às vezes também extravasavam os conceitos de piadas e contos. Então… exercícios?

3. A capa d’A Bíblia do caos comprova essa dificuldade de catalogar. São “5142 pensamentos, preceitos, máximas, raciocínios, considerações, ponderações, devaneios, cismas, elucubrações, disparates, ideias, introspecções, tresvarios, obsessões […]” e por aí vai:

Poderia ter feito como Millôr – Caderno de constatações, microcontos, críticas, celebrações, gracinhas, fórmulas, quase poemas, resmungos nº 1 –, mas preferi arranjar uma gaveta espaçosa onde entrasse tudo isso e qualquer outra coisa breve que eu queira. E que pegasse o espírito da tomada de notas num caderno, sem inventariar o que vem à cabeça e é trabalhado no papel.

4. Muitos tuítes são exercícios. Eles recebem aquele nome por causa da plataforma onde são publicados, mas fora dela não tem cabimento publicar num blogue tuítes que nunca estiveram no Twitter.

Pensando bem, talvez tivesse cabimento considerando que um tweet é um pio. Isto poderia ser o Caderno de pios nº 1.

5. A maior graça do exercício – ou do pio – é o poder de síntese.

6. Todo exercício pode virar um tuíte. Nem todo tuíte é um exercício. A maioria não é. Avisar que está com fome ou rir escandalosamente porque percebeu que os próprios cadarços estavam desamarrados é só besteira e perda de tempo (seu e dos seguidores).

7. Alguns dos exercícios deste Caderno nº 1 foram tentados versificados. Transformar uma frase em verso ao quebrá-la em partes pode ser picaretagem,

sou poeta

porque escrevo

assim

mas também pode ser um recurso que dramatiza a prosa ao definir a pausa na quebra do parágrafo e quais palavras estarão avizinhadas em cada linha. A primeira versão do exercício ODE AO AVIÃO (I) tinha saído em retalhos:

É tudo estranho no avião.

A última coisa estranha foi imaginar que sua carapaça não estava lá

e que todas aquelas pessoas estavam voando rápido

sentadinhas.

O efeito é diferente quando o texto é contínuo:

É tudo estranho no avião. A última coisa estranha foi imaginar que sua carapaça não estava lá, e que todas aquelas pessoas estavam voando rápido – sentadinhas.

Optei pelo segundo modelo porque acho que combina mais comigo. Contudo, me parece que o efeito da quebra dá um ar mais importante ao texto, como se vê comparando isto

LÁ VEM ELA (V)

Em um minuto

a Morte vai encorajar

o pitbull.

com isto:

LÁ VEM ELA (V)

Em um minuto a Morte vai encorajar o pitbull.

Se o versinho parece um pouco mais refinado, não seria melhor optar por ele? Talvez, especialmente se se estima esse refino que seduz com mais facilidade. Mas quero ser engajada aqui: inúmeras sentenças da prosa passam despercebidas porque a) se ocultam no meio de um grande bloco de palavras, b) o relapso leitor de prosa muitas vezes está mais atento à mensagem do que à forma da mensagem; ele quer saber do fato, da história, do pretexto, c) há quem tenha dificuldade em perceber um item diferente no balaio sem o apoio do apontar.

Esse apoio do apontar pode vir de um amigo – “preste atenção nisto aqui” –, de um especialista – ele escreve a resenha de um livro já dizendo que é bom e selecionando trechos, e você, como confia na expertise, ficará atento de um jeito que não ficaria se fosse ler no escuro da recomendação – ou de um recurso estético. É do recurso estético que se valem muitos poemas pra dar na vista: o verso há muito tempo se vende como naturalmente mais sensual do que os quadrados e retângulos corporais da prosa, e às vezes ele ainda rouba uma página inteira pra dizer

Quando ele terminava

que coincidência

ela também terminava.

É impossível não se deter nessa mancha destacada numa página branca ou ocupando só um canto da tela. Já se fosse texto texto texto texto texto texto quando ele terminava, que coincidência, ela também terminava texto texto, a frase seria, pra muitos, só um meio pra algo maior. Levaria a um “e daí?”, a um “mas quem é o mais vilão?”, a um “o que isso significa no subtexto político dos personagens?, e qual é a raça deles?”, etc.

Tudo bem: os exercícios, como são curtos e aqui titulados, também acabam em relevo. Mas ainda estão rendendo homenagem à prosa, que tantas vezes só parece de alma quadrada porque quem olha pra ela está deitado no fundo de uma caixa.

E não falei nada disso pra desmerecer versos.

8. “Exercício” também soa humilde – ainda que seja uma humildade fingida. É grave a responsabilidade de asseverar “lá vão as minhas poesias”. Qualquer barata na polenta pode fazer a família se levantar com engulhos e gritando “ISSO é poesia?” Quando você começa a se explicar, o Kadett já está dando partida com partes de parentes saindo pelas janelas. Pior ainda é alguém anunciar que está compendiando as próprias máximas – cria o risco de ser sentado no sofá e ter que ouvir de um grupo de amigos: “estamos preocupados com a sua condição”. Piadas, provocações, microcontos – dá pra criar isso tudo com liberdade e intercâmbio no colo pródigo do exercício.

Além disso, há casos em que ele pode ser definitivo, mas parece que ainda está sendo experimentado. Já desdenhei poemas chamando-os de “exercícios” justamente porque pareciam oriundos de um bloco de rascunhos revelado ao público, uma bodega que era pra ser apenas um treino. Não retiro o que eu disse. Há exercícios bons e há exercícios ruins.

9. Passei vergonha ao descobrir que Pablo Neruda tem bons poemas. Depois de anos debochando de uma amostragem doces-amantes-rolam-afoitos-no-mel, fui ler uma compilação sua que era simples – “para jovens” – e que hospedava bons versos, alguns absurdos (é um elogio: existe uma boa ala do absurdo na poesia). Empolgada, pesquisei por alguma antologia dele que fosse bilíngue, e encontrei algo que eu nunca tinha visto: a tradutora brasileira que trabalhou pra editora José Olympio decidiu transformar todos os poemas em prosa. Vi isso por meio de fotos embaçadas e comentários em lojas virtuais; ainda não sei se é essa a versão que eu vou comprar ou se me atrevo a adquirir a Antología general que foi preparada pela Real Academia Española e pela Asociación de Academias de la Lengua Española – cuja desvantagem é me obrigar a enfrentar o espanhol sem o apoio do português.

Como não li, não posso opinar sobre a preferência da tradutora. A seu favor está a edição bilíngue: pode-se comparar a prosa em português com a poética em espanhol, então ninguém ficará sem fazer ideia de onde estariam os cortes do autor. Contra ela, quem sabe, a petulância de remodelar as curvas de um texto que não é seu. Traduzir poesia, mesmo de uma língua próxima, já é delicado porque impõe o desafio de fazer pequenas escolhas entre a beleza interior e a formosura dos versos, e a tradutora de Neruda vai mais longe pra buscar ossos pro seu ofício quando resolve colocar o poema na maca pra dobrar braços e pernas pra dentro, e ainda enfiar seus revoltos cabelos numa touca. No fim, só lendo pra ver como ficou.

10. Existe um livrinho chamado Os cem menores contos brasileiros do século, da editora Ateliê. Foi organizado pelo escritor pernambucano Marcelino Freire, que convidou cem autores pra escrever “histórias inéditas de até cinquenta letras (sem contar título e pontuação)”. A maioria dos contos não é boa, mas o livro vale pelo que é possível extrair e pela proposta da história em pílula. Abaixo, alguns dos que eu garimpei.

De Fabrício Corsaletti:

FUZILAMENTO

O condenado levantou o pé para evitar a poça d’água.

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De Glauco Mattoso:

O EUTANAZISTA

Não podendo eliminar o resto da humanidade, suicidou-se.

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De Jorge Furtado:

Eu não te amo mais.

O quê? Fale mais alto, a ligação está horrível!

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De Livia Garcia-Roza

ATRIZ NO DIVÃ

Doutor, o senhor já me viu representar?

Fora daqui?

*

De Mário Bortolotto:

LAST BLUES

Não espalho, mas ando triste pra caralho.

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E do anarquista Millôr Fernandes, que procurou brechas na regra pra contar quase tudo no título:

EMOCIONANTE RELATO DO ENCONTRO DE TEODORO RAMIREZ, COMANDANTE DE UM NAVIO MISTO, DE CARGA, PASSAGEIROS E PESCA, DO CARIBE, NO MOMENTO EM QUE DESCOBRIU QUE A BELA TURISTA INGLESA ERA, NA VERDADE, UMA PERIGOSA TERRORISTA CUBANA, QUE TENTAVA PENETRAR NUM PORTO DO SUL DA FLÓRIDA, PARA DINAMITAR A ALFÂNDEGA LOCAL, E PROCUROU FORÇÁ-LA A FAVORES SEXUAIS

Capitão, tem que me estuprar em 1/2 minuto; às 8, seu navio explode.

11. Esta foi apenas a terceira postagem de 2022. Tenho planos (gargalha a claque, dando chutes no ar) de me dedicar mais a este blogue em 2023, até porque daria pra publicar um livro só com as dezenas de textos não terminados que estão no meu computador. Será outro ano em que “ter mais disciplina” é uma meta.

12. Já que me comprometi a escrever mais vezes em 2023, vou passar a listar somente cinco músicas que embalaram cada postagem. Nesta, escolho:

Guillotine Crowns – Art dealers

Osees – Paranoise

Dry Cleaning – Driver’s story

The Mothers of Invention – You’re probably wondering why I’m here

Fleetwood Mac – The chain

12.1. É um motor da ansiedade entrar nessas páginas que criam listas de álbuns de hip hop e encontrar títulos como Os 60 melhores álbuns de 2022. Você fecha os olhos, aponta pra qualquer um lá no final, ouve – e tem músicas valiosas nele. Restariam 59 álbuns pra garimpar.

A boa notícia é que aquele pessoal decretando O FIM DA MÚSICA – alguns nos anos 70, outros nos anos 80 e 90 – renova, em cada virada, o seu erro, pois diversos gêneros continuam produzindo joias. Deve ser muito triste não aproveitar nada disso por causa de bitolamento a uma época ou estilo. Mentalidade aberta, sem fuleiragem, é mesmo uma qualidade subestimada. Chovem pérolas sobre tantos porcos.

Guillotine Crowns é um duo formado pelos rappers Uncommon Nasa (Nova York) e Short Fuze (Chicago). Lançaram em 2022 o álbum Hills to die on, que tem algumas músicas muito boas, sendo Art dealers uma das minhas prediletas.

12.2. A banda Osees, originalmente de San Francisco e hoje baseada em Los Angeles, já teve alguns nomes: Orinoka Crash Suite, Orange County Sound, etc. Parece que o que está valendo hoje é o Osees, mas na época em que lançaram o álbum Orc (2017) o nome em vigor era Oh Sees. Pra achar esse disco cheio de ouro no Spotify, a melhor busca é pelo nome Thee Oh Sees; algumas das mudanças de nome da banda têm entradas diferentes no catálogo de artistas da plataforma (OCS, Thee Oh Sees, Osees pelo menos), mas o que importa nesse enrosco é o som.

12.3. Em 2022 os ingleses do Dry Cleaning lançaram o álbum Stumpwork. A banda toca e a vocalista mais fala do que canta com sua voz de veludo fumante. A melodia aconchega o desabafo, o “meu querido diário”, o “mulher escrevendo cartas em alto som”. Se alguém tentasse me explicar isso tudo, eu suspeitaria que não fosse gostar. Ouvindo, passei madrugadas e madrugadas com esse álbum no repeat. Agradável pra ler, pra organizar a escrivaninha, pra olhar a cidade. Difícil escolher A Melhor do álbum, mas vou de Driver’s story.

12.4. Meus pais sempre foram muito religiosos, especialmente minha mãe. Devo ter herdado a trupe genética do fervor apaixonado, mas destinei isso pra coisas que existem, como a música. Sempre me converto a novos cultos musicais, e o novo culto é ao Frank Zappa. Não vou me delongar aqui porque posso me perder. Você deixa uma Testemunha de Frank Zappa entrar na sua casa e daqui a pouco ela já está tirando uns discos da maleta pra tocar no seu aparelho de som e ligando uma apresentação de slides na sua parede vazia: “Por que Ele é um gênio (slide 1 de 349)”. Um dia vou escrever só sobre o frankzappismo.

Do álbum Freak out! (1966), do Zappa com o The Mothers of Invention, gosto de tudo, mas You’re probably wondering why I’m here me pega na melodia, na chacota com vozes e instrumentos, na letra (“you rise each day the same old way/ and join your friends out on the street/ spray your hair and think you’re neat/ I think your life is incomplete”), na rápida baixa melancólica que precede os refrões (“they only pay me here to plAAAy” e “what will you tell your mom and pOOOp?” e “and you think you know where it’s AAAt?”). Não foi uma música que me pegou de primeira, mas, quando pegou, pegou com os vinte dedos e uma dentada no pescoço.

12.5. A música mais famosa do álbum Rumors (1977), do Fleetwood Mac, é Dreams – uma praga de rádio comercial, um pano de fundo pra empresários de gosto musical líquido que dirigem do ponto A pro ponto B, mas que é boa. Talvez a segunda mais famosa seja Go your own way, que tem essa animação dolorida de quem está tentando superar qualquer coisa. O álbum merece os elogios: rendeu uma porção de clássicos. Minha preferida é The chain, mas ali tudo vale a pena porque a alma do disco não é pequena (podem me prender por esse atentado; estarei esperando em casa).

13. Finalmente ficaremos livres DA BESTA, mas não nos livraremos tão cedo dos abestalhados. O bolsonarismo se tornou muito maior, mais delirante e mais perigoso que o próprio Bolsonaro. Ter que desviar dessa direita aberrante de um lado e do progressismo alucinado – a viagem é ruim e seu identitarismo virou doença – do outro é desgastante, mas foi isso que a sociedade se tornou na nova Idade das Trevas.

14. O antropólogo baiano Antonio Risério estava organizando um livro sobre identitários e me convidou pra participar dele. O livro se chamaria Contra o identitarismo, mas alguns autores aconselharam Risério a suavizar o título pra tentar alcançar moderados que ainda se mantinham em cima do muro. Então a obra coletiva saiu como A crise da política identitária. Prefiro o título inicial, mas entendo a opção pelo último.

A gama de autores é tão plural que há, no grupo, assessores voluntários de reacionários e também esquerdistas pró-cotas racismo-é-o-pior-problema-do-Brasil. Só tenho responsabilidade pelo que eu escrevi. Meu texto se chama Missionários nas redações e retoma algumas críticas que já fiz aqui à imprensa cooptada pelo identitarismo, mas também comenta casos novos.

O livro tem 560 páginas, foi publicado pela editora Topbooks e já está disponível nas principais livrarias virtuais do país.

15. Obrigada pela leitura e até a próxima!