Testes cegos, bula na arte e politização do funk (Série “Radical do Movimento Negro”, texto nº 6)

Em julho de 2020, Anthony Tommasini, principal crítico de música clássica do The New York Times, escreveu um artigo chamado Fim dos testes cegos é solução para levar diversidade a orquestras, traduzido no mês seguinte pela Folha de S.Paulo. Quando li o título, pensei que fosse ironia. Enquanto lia o artigo, ainda achava que o autor estivesse desenvolvendo uma ideia com a qual não concordava, fazendo uma espécie de argumentação-embuste para testar a aceitação do público sobre um despropósito, com intenção de, mais tarde, revelar a estratégia. Não era ironia nem embuste. Tommasini acha mesmo que testes cegos devem acabar na contratação de integrantes das orquestras com a finalidade de torná-las mais diversas racialmente.

Testes cegos são adotados por muitas orquestras – e por outros ramos do mundo da música, como a primeira seleção do programa The Voice – para que o perfil do candidato não sugestione a escolha do contratador, que deveria se pautar pela qualidade. Sem eles, um avaliador pontual que não percebe seu sutil racismo ou sexismo pode deixar de contratar uma pessoa competente em prol de outro candidato menor porque foi influenciado pela aparência. Portanto, testes cegos surgiram para fazer justiça ao mérito. Se meu avaliador não vê minha cor, meu gênero, minha beleza/feiura, minha indumentária ou se estou em cadeira de rodas, ele será obrigado a me julgar apenas pela minha habilidade e capacitação.

Seria benéfico se em outras áreas da vida profissional e estudantil fosse possível aplicar esses testes que primam pela qualidade e desencorajam que características geralmente irrelevantes para os fins da contratação tenham peso. A maioria dos concursos públicos, de certa forma, funciona como teste cego, assim como os vestibulares no Brasil: a seleção é feita puramente pelo domínio de conhecimentos dos assuntos da prova. (Em outro momento voltarei a esse tema, que tem nuances: teste cego não é panaceia.)

Estudos de psicologia social mostram que certas características estéticas podem dar vantagem na seleção de emprego, como é o caso do favorecimento das pessoas bonitas (lookism). Isso não acontece de maneira descomunal – é algo que se percebe mais quando se avaliam estatísticas de contratação –, então o fenômeno não é gritante. Para minar o pouco dele que ocorre, defende-se a adoção de testes cegos.

Mas Tommasini constata que tais testes não conseguem tornar orquestras estadunidenses diversas do ponto de vista racial. Então, em vez de propor que existam políticas públicas para melhorar o nível educacional das comunidades onde muitas pessoas negras estão – comunidades onde o tipo de música que se toca em orquestras é ainda mais raro de ser apreciado do que no restante da sociedade –, o crítico do NYT propõe a abolição dos testes cegos. Ele diz:

“[…] a transformação não foi suficiente. As orquestras americanas ainda figuram entre as instituições com menos diversidade racial do país, sobretudo [considerando] músicos negros e latinos. Um estudo de 2014 revelou que apenas 1,8% dos músicos das maiores orquestras eram negros e apenas 2,5%, latinos.”

E depois:

“O status quo não está funcionando. Para que a situação mude, as orquestras precisam poder adotar medidas proativas para combater o desequilíbrio racial enorme ainda existente em suas fileiras. Os testes cegos não podem continuar.”

Tommasini alega que a prática pode ser bem-intencionada, mas é restritiva, e que os sindicatos que a defendem não percebem o quanto ela faz mal para os próprios sindicatos, para as orquestras e para a música. O que importa agora é que as orquestras sejam “relevantes para suas comunidades”, palavras dele, e reparem desigualdades sociais.

Compreendo perfeitamente a reivindicação de representatividade em propagandas governamentais. Parece escárnio que o atual governo brasileiro tenha usado crianças de feições nórdicas para compor a marca “Pátria amada, Brasil” num país de maioria autodeclarada parda. Também apoio representatividade em propagandas comerciais, mostrando famílias negras acessando aplicativos de banco pelo celular e mulheres negras passando maquiagem, bem como apoio que o mercado de brinquedos faça mais personagens negros e menos bonecas que reflitam a estereotipada dona de casa jovial dos anos 50.

Mas orquestras não são apenas rostos e sua finalidade não é a representatividade estética da população. Orquestra é música. Seu propósito primordial é tocar música. Se testes cegos não dão conta de fazer com que elas sejam mais diversas, o problema não está neles, mas, em tese, na sociedade – assim deveriam pensar aqueles que acham que tudo de “altivo” deve refletir proporções demográficas. Testes cegos são a solução para que as contratações nas orquestras sejam justas, e não um empecilho.

O que Tommasini pede é que as contratações voltem a ser um pouco injustas como possivelmente já foram, mas desta vez em prol da diversidade? Mais ou menos. Em seu artigo, ele defende que uma vez que um músico alcançou a excelência, é muito difícil diferenciá-lo em qualidade de outro músico de excelência: por isso, entre um grupo de músicos excelentes valeria a pena priorizar a contratação daqueles que pertencem a minorias raciais e de gênero, até porque eles podem apresentar outras qualificações que vão além da “pura habilidade musical”. Nem todo especialista em música clássica concorda com isso, como você pode ler nesta breve réplica de Max Raimi, violista da Sinfonia de Chicago, ao artigo do NYT.

Não tenho muito o que acrescentar aqui porque não entendo do assunto, mas suspeito que Tommasini se esforça, de boa-fé, para aninhar um erro. Para melhor nos empurrar a ideia de que testes cegos devem ser abolidos a fim de que orquestras sejam mais diversas, e sem parecer com isso que defende a queda de qualidade delas – como se poder tocar entre os melhores sem ser um dos melhores fosse parte dos direitos humanos –, o crítico cria uma justificativa que soa mirabolante: os excelentes já são praticamente iguais, então é benéfico que o critério de desempate entre eles seja o fenótipo.

Mesmo que seu argumento fosse verdadeiro – outros do ramo dizem que não é –, discordo do seu critério de escolha que estimula diferenciação entre pessoas com base em loteria genética. Os Estados Unidos têm uma classe média negra bem estabelecida que pode, se quiser, financiar bons cursos de instrumentos para as crianças que nascem dentro dela. Não há nenhum impedimento objetivo para que mulheres de famílias com dinheiro sigam a carreira que quiserem naquele país. Não vejo por que alguém que cresceu dentro de um ambiente cultural e economicamente favorável deveria levar vantagem por causa das dificuldades que sua cor ou seu gênero sofreram no decorrer dos séculos passados.

Essa abordagem, na verdade, fomenta alguns oportunistas da reparação histórica: pessoas que tiveram oportunidades na vida, mas querem se aproveitar dos sofrimentos dos seus ancestrais para angariar privilégios no presente. Se isso fizesse algum sentido, também eu poderia reivindicar minha carteirinha de sofrimento ancestral: sou branca e loira porque na loteria genética herdei a cor do meu pai, mas minha mãe é mulata e tenho, pelo seu lado, ancestrais que foram escravos no Brasil. Se importa mais a história dos meus ancestrais do que as dificuldades que individual e objetivamente vivi – e que aí poderiam ser um critério de desempate na remota hipótese de uma disputa entre candidatos igualmente qualificados –, então eu e muitos outros brancos brasileiros com ancestrais negros podemos nos beneficiar desse fator pregresso. (Tratarei melhor desse emaranhado num texto sobre cotas raciais.)

Pensando no público que aprecia orquestras, há alguns cenários possíveis caso o pedido de Tommasini seja atendido:

1. O público continuará o mesmo.

Esse cenário não é impossível, mas acredito improvável, especialmente se o novo modelo de admissão for publicizado.

2. Mais gente passará a apreciar orquestras para apoiar a recente diversidade delas e mostrar que a comunidade gosta de atrações que estejam alinhadas com sua formação demográfica.

Aqui cabe perguntar por quanto tempo essa empolgação vai durar, já que é difícil criar um hábito à força. Nos primeiros meses de “orquestra diversa” os teatros poderão estar sempre cheios, mas isso vai durar até quando? Manter o gosto pela música clássica adquirido tardiamente me parece tão difícil quanto manter a prática de exercícios físicos iniciada no último mês e o estudo autodidático de idiomas adotado depois de ver uma palestra sobre aprendizado solitário no YouTube.

3. Menos gente passará a apreciar orquestras.

Quem nunca gostou desse tipo de música ou não quer gastar dinheiro com a novidade da “orquestra diversa” não passará a frequentar os teatros. Jovens negros que só saem de casa para ver shows de hip-hop continuarão só indo a shows de hip-hop. Já alguns daqueles que sempre gostaram desse tipo de música e tinham o hábito de ver os espetáculos podem sentir que a qualidade diminuiu. Provavelmente é um efeito nocebo: pessoas que sempre gostaram de orquestras mas não tinham ouvido apurado para diferenciar detalhes na música podem passar a achar que conseguem notar a queda de qualidade após a adoção da “orquestra diversa”. Não conseguem. Mas o efeito psicológico de saber que orquestras não estão mais primando pela estrita qualidade pode fazer com que essa parte do público deixe de frequentá-las achando que percebe a diferença.

Confirmando-se o terceiro cenário, a queda de público será atribuída, por alguns, ao racismo. Quando alguém questionar “e por que, então, o público negro não passou a vir aos espetáculos se agora há mais negros no palco?”, será dito que o público negro não vai porque não tem dinheiro para pagar as entradas. Pedirão que baixem o valor das entradas. Os administradores das orquestras dirão “mas já estamos em crise, se baixarmos o valor das entradas não vamos conseguir nos manter”. Baixam o valor das entradas por imposição de quem não entende como o mercado funciona. O público negro ainda assim não se anima a ir aos espetáculos. Pode ser o fim das orquestras que não conseguem se manter apenas com doações e recursos públicos – ou seja, daquelas que precisam do valor das entradas –, tornadas espetáculos do passado, lembradas em museus.

Se testes cegos não conseguem corrigir a falta de diversidade de orquestras e empresas, esse pode ser um grande sinal de que o problema da padronização racial nesses lugares não se deve ao “racismo estrutural e contemporâneo”, como radicais do movimento negro alegam (muitos certamente com impostura, pois sabem que seu raciocínio é equivocado). Provavelmente a maior causa (embora não a única) da elevada disparidade racial em empresas e orquestras advém de racismo praticado em outras épocas que ainda se reflete em condições socioeconômicas desfavoráveis no presente. Essa conjuntura prejudica o desenvolvimento de pessoas negras na educação e, por corolário, na carreira. O lógico seria, portanto, corrigir o presente. Mas militantes negros já plantaram casa, escritório e jardim no passado, e querem que todos acreditemos que é tratando obsessivamente de racismo – e não de pobreza – que se vai ajustar o mundo.

Pobres continuarão pobres. Muitos negros continuarão com dificuldade de competir por posições e cargos em condição de igualdade com brancos. Cotas serão necessárias para sempre. Teóricos do racismo estrutural, que bem analisado é evidente teoria da conspiração, não desejam alterar as estruturas da pobreza que hoje impedem a ascensão de tantos negros na sociedade. Eles sabem que sua relevância depende da permanência na superfície, tratando de uma guerra racial que alegam ser diária e insistente. Criam tempestades para poder nos vender guarda-chuvas. Tommasini talvez tenha sido convencido a comprar o seu. E agora também quer nos convencer de que está chovendo.

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Durante os mais agitados protestos do Black Lives Matter em 2020, o roteirista de 12 anos de escravidão (12 years a slave, 2013), John Ridley, aproveitou para escrever um artigo no Los Angeles Times pedindo que a HBO retirasse o filme …E o vento levou (Gone with the wind, 1939) de seu catálogo porque a trama perpetuava estereótipos ruins sobre pessoas negras e romantizava a Guerra da Secessão. Em seu artigo, Ridley se queixava da falta de alertas sobre esses pontos precedendo o filme e da ausência de outros títulos no catálogo que retratassem de modo mais realista como a escravidão e a Guerra da Secessão ocorreram.

No dia seguinte à publicação do artigo, a HBO retirou o filme do ar e disse que só o exibiria novamente após a feitura de um vídeo de contextualização histórica e reflexão sobre os papéis que negros representavam nele. O vídeo explicativo foi criado pouco tempo depois e precedeu a exibição do filme na plataforma de streaming da empresa.

Não me oponho muito ao vídeo senão pelo precedente que abre, mas pergunto o que precisa ser explicado e a quem. Nenhum adulto em condições normais de educação assiste a um filme de outra época e pensa que deve reproduzir os estereótipos negativos nele representados, especialmente se aberrantes. Se aberrantes, aliás, a tendência é que causem indignação, não tolerância e imitação. E se a preocupação é com uma possível contaminação inconsciente, a cruzada terá que se expandir e matar a maior parte do que foi produzido pela arte. Talvez tenha que matar o homem.

Ainda que “matar” seja uma palavra muito drástica, o próprio excesso de explicação “local” de qualquer abordagem artística considerada ofensiva é um exagero moralista, podendo fazer com que todo livro, quadro, música ou peça de museu criados no espírito de outro tempo tenham que carregar, consigo, uma aula sobre por que aquilo é errado e como as coisas deveriam ter sido. Não duvido que logo essas explicações serão desenroladas para limpar mesmo a arte atual: o escritor cria um protagonista preconceituoso que se dá bem no romance e a editora pedirá a um membro da equipe – provavelmente o medíocre “editor de diversidade” – que arranje uma introdução pedagógica intitulada “por que o protagonista deste livro não é alguém para se admirar ou reproduzir”. Ao elaborar uma bula apontando efeitos morais adversos da história, querem garantir que o leitor não se encante por um cafajeste. Acham que O estrangeiro, de Camus, deve ter levado muita gente a naturalizar o assassinato de árabes na praia. Os mais neuróticos talvez se perguntem se as peças de Shakespeare em que há suicídio não deveriam vir acompanhadas de um encarte sobre o Setembro Amarelo.

Mas se o vídeo contextualizador e reflexivo da HBO foi criado para conscientizar crianças que acabam sintonizando filmes antigos na TV sem a supervisão de adultos, tudo bem.

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Funk é cultura. Também é cultura a famosa Corrida do Queijo que acontece anualmente na região de Cotswolds, na Inglaterra, em que redondos queijos de Gloucester são jogados de uma colina e participantes da competição têm que correr atrás deles, pegá-los e passar a linha de chegada que fica na parte de baixo dessa colina. Ganha o queijo resgatado quem for o primeiro a passar com ele pela linha de chegada. Equipes de primeiros socorros participam do evento porque algumas pessoas se machucam ao rolar pela colina, havendo casos inclusive de concussão. Diz-se que essa tradição tem no mínimo 200 anos. Experimente criticar a Corrida do Queijo em alguma página bastante acessada. Depois experimente criticar o funk brasileiro.

Quem estuda manifestações culturais alheias não será muito profissional se se preocupar em julgar antes de entender, acreditando que sua primeira missão é mostrar à comunidade acadêmica se encontrou práticas de arrepiar os cabelos ou de maravilhar os olhos entre os objetos de estudo. O relato “quando cheguei à tribo e vi que os índios cozinhavam um parente morto, comecei a gritar e explicar para eles que era horrível o que estavam fazendo” é algo que esperamos de um missionário cristão, não de um antropólogo que está escrevendo um artigo para ser apresentado em congresso da sua área. Mas se mesmo esse pesquisador pode fazer juízo de valor sobre as práticas que estuda em livros de memórias sem pretensões acadêmicas ou no ambiente protegido da sua mente – que a polícia do pensamento tenta invadir, mas parcas vezes consegue –, que diremos de nós, pessoas comuns?

A despeito do autoritarismo de alguns protestos contra a cultura “dos outros”, querendo determinar o que deve ser permitido e o que deve ser proibido com base no próprio interesse, todo mundo tem o direito de não gostar de certas manifestações culturais e de querer argumentar por que não gosta delas. A submissão das mulheres aos homens em tantos países do Oriente Médio é uma tradição cultural e não penso duas vezes antes de dizer que somos muito melhores nesse aspecto. No âmbito cotidiano e informal, posso tranquilamente chamar de triste e absurda a tradição dos pés de lótus que perdurou por séculos em algumas regiões da China. Até pelo menos os anos 70, alguns ianomâmis da Venezuela matavam membros de outras aldeias por prazer – meramente porque os consideravam covardes – e cometiam o que na nossa civilização chamamos de infanticídio. Podemos nos opor aos evangelizadores salesianos que invadiam territórios ianomâmis para tentar convertê-los ao cristianismo – afinal, não estavam apenas querendo impedir a morte de crianças – e, ao mesmo tempo, podemos não sentir admiração nenhuma por essas características da cultura ianomâmi. O relativismo tem o seu lugar – é quase impossível fazer bons trabalhos descritivos de ciências humanas sem considerá-lo –, mas não parece prudente que seja professado como estilo de vida.

Uma conversa normal:

– Detesto o funk brasileiro. Não gosto das batidas repetitivas, não gosto das letras sobre sexo e ostentação, mesmo os clipes desse tipo de música são muito ruins.

– Olha, eu gosto de algumas coisas de funk. Mas entendo que você não goste.

Uma conversa anormal:

– Detesto o funk brasileiro. Não gosto das batidas repetitivas, não gosto das letras sobre sexo e ostentação, mesmo os clipes desse tipo de música são muito ruins.

– Você detesta porque é elitista, porque tem nojo de pobre e nega às periferias o direito à manifestação cultural que não venha da sua cartilha de suposta “alta cultura”. É vergonhosa a sua posição reacionária.

Note que o primeiro falante não diz que o funk deveria ser proibido por lei ou banido das plataformas de compartilhamento de música. Ele diz apenas que não gosta do gênero e explica por quê. Se uma pessoa pode tranquilamente dizer que não gosta de power metal (e eu lhe dou toda razão), por que ao dizer que não gosta de funk o interlocutor ativista e facilmente ultrajado já supõe que esse desgosto se deve a ódio à “cultura dos pobres e pretos”? Asseguro que muita gente que não gosta de funk gosta de samba (de origem preta e pobre), de flamenco (originado de misturas culturais, inclusive da cultura cigana) e de jazz (de origem popular e preta). Querer obrigar todo mundo a dar valor a todas as culturas originadas dos pobres de qualquer época para assim provar estima pelos pobres (?) não tem nenhum cabimento.

Por mais paradoxal que possa parecer num primeiro instante, santificar minorias é uma forma de desumanização. Participam dessa glorificação nociva aqueles que dizem que “gays são maravilhosos”, que “pobres são virtuosos” e que “o mundo seria perfeito se mulheres estivessem em cargos de poder”. Gays, pobres e mulheres realistas sabem que nada disso é verdade, e que a expectativa de que sejam impecáveis enquanto grupo cria uma responsabilidade perversa sobre condutas alheias que eles não conseguem (nem querem) controlar. O que desejam os canalhas que nos reverenciam de modo disparatado e assim atravancam nosso acesso à humanidade comum? Tem exaltação que é puro rebaixamento.

Também é direito de qualquer pessoa proceder a uma hierarquia cultural, embora reconhecendo que diversas manifestações culturais possam coexistir. Uma mãe muito liberal ainda pode preferir colocar seu filho adolescente nas aulas de piano, sem ficar em conflito relativista pensando que “na verdade, tanto faz se eu colocá-lo nas aulas de pancadão ou de piano, pois ambos são igualmente bons”. É natural e recomendável que façamos julgamentos culturais: isso faz parte da nossa liberdade e da construção da nossa individualidade. Ao conhecer coisas novas é preciso tanto avaliá-las quanto reavaliar as velhas, pois mudar de preferências exige exame e classificação. Haverá quem critique as artes das quais gostamos – o que geralmente não tem problema e também pode nos incentivar a progredir na apreciação artística –, e do mesmo modo nós somos livres para maldizer o gosto alheio. Gosto se discute, e muito. Mas parece que alguns gostos estão blindados da crítica.

Sem que o funk brasileiro pedisse, muita gente da classe média culpada assume a incumbência de defensora pública da cultura periférica como quem protege os desamparados da opressão. O paternalismo não existe sem o papel da vítima, mas será que aqueles que se orgulham do funk que produzem querem atuar nesse papel e receber o abraço misericordioso do andar de cima, cheio de pessoas que mal reconhecem? O funkeiro que espera vender sua música, crescer na indústria fonográfica e fazer a juventude descer até o chão aprecia essa militância que ao praticar condescendência ofensiva muitas vezes degrada o protagonismo do funkeiro, agora reduzido a alguém que “precisa de ajuda para ser defendido”?

Entre o respeito e a pena há uma grande distância que pode ser medida pelo discurso e pela tragédia do melodrama. Algumas pessoas confundem as duas coisas, põem-se com afetação e ranger de dentes sobre palcos que elas mesmas montaram numa comunidade que não lhes pertence, prestam serviços de advocacia a quem é plenamente capaz de se defender. Não acho exagero dizer que em muitos casos, no campo das ideias e das artes, quem nos critica nos respeita mais como indivíduos do que quem sente piedade de nós. Aqueles que estão com a autoestima em dia não costumam gostar de ser tratados como coitados.

Quando estourou a Revolução Iraniana (ou Revolução Islâmica) em 1979, Kate Millet, feminista estadunidense, foi ao Irã fazer discursos em prol do feminismo, movimento que com a ascensão do aiatolá Khomeini ao poder perderia prestígio e direito de atuação. No final de uma reportagem do Fantástico na época, uma mulher iraniana interrompe a fala ao ar livre de Millet para dizer que também era contra o xador – véu que cobre todo o corpo feminino, com exceção do rosto –, mas que “não precisava de ajuda externa”. É interessante observar o conflito entre a postura “as feministas iranianas precisam de mim” e a reação “vá embora, podemos nos defender sozinhas”. Millet podia ser bem-intencionada, mas era talvez maternalista e seguramente mal informada, pois parte da revolta dos iranianos se deveu à exaustão de receber tantas ingerências exteriores em seu país, especialmente dos Estados Unidos. A vontade de proteção às vezes é uma presunção.

E é aí que se insere algo da tese identitária sobre roubo de protagonismo. O conceito desandou – quase tudo que começou justo no identitarismo desandou –, mas seu princípio tem algum bom senso. Se o movimento negro, o movimento feminista e o movimento gay têm suas pautas e são capazes de sustentá-las, não é soberba que pessoas externas a eles extrapolem a ideia de respeito, queiram “ajudar” com atos dramáticos, e acabem, de propósito ou sem querer, buscando aparecer ainda mais que os membros diretamente ligados aos movimentos? O que é que Fábio Porchat pensa que está fazendo ao criar um banner em que diz que é um “racista em desconstrução”? Isto não é sobre você, Porchat: pode desligar o holofote, recolher o caixote e ir para casa.

Como disse a jornalista Lygia Maria em seu Twitter, famosos que vêm a público anunciar um grandioso “eu sou racista” não dão nenhum exemplo claro do que fazem de racista. Não confessam que preterem negros em relação a brancos, que não querem que seus filhos se casem com mulheres negras, que evitam estar ao lado de homens negros em aglomerações. Com o vago “eu sou racista, pois todos somos racistas”, esses chamarizes de atenção enganam os militantes impressionáveis e caroneiros, irritam os militantes orgulhosos afetados pelo racismo amplo que alegam existir em seus mundos de paranoia estrutural e não precisam responder por nada de objetivo.

Se quem diz “somos todos racistas” desse um único exemplo pessoal de prática racista, mesmo que no passado distante, a reação popular viria sob gritos, paus e pedras, além de exigência de demissão à empresa onde o confessional racista trabalha. Celebridades estão se exibindo com o bordão “eu sou racista”? Chamem a polícia. Depois queremos assistir ao desagravo com os possíveis “veja bem” e “não, não é que eu seja um racista-racista” seguidos de citações de livros da Coleção Feminismos Plurais e com o delegado fazendo cara de que algo não lhe caiu bem no estômago. Inquiridos, os exibicionistas tentarão se defender dizendo que são racistas “filosóficos, metafísicos”, e serão enxotados da sala como moleques que precisam arranjar mais o que fazer. Com o susto talvez aprendam algo sobre não banalizar o sentido das palavras graves. Atendendo a chamados futuros, a polícia precisará questionar se a denúncia se trata de racismo-racismo ou de racismo transcendental.

Você é racista, Porchat? Dê exemplos. Um racismo assumido e que não pode ser reduzido a termo quase certamente é só uma confissão vaga que espera ser celebrada.

Num momento em que a popularidade nas redes sociais desbancou até o desejo sexual – é engraçado que uma esquerda que já foi liberada contribua para a redução coletiva da libido, pelo menos dos heterossexuais de classe média –, não admira que tantos queiram aderir a novos modismos para aparecer às suas custas. O identitarismo, tendência, tem possibilitado assunto e discurso exibitório de virtude para elevar alguns babacas fenomenais. Fica ao gosto do freguês decidir quando isso provém de distorção – é possível, pois se até Jesus foi distorcido em seus sermões ultradidáticos – e quando essas atitudes vaidosas são perfeitamente explicáveis dentro de uma ideologia construída para promover fracassados e aproveitadores. Há militantes noviços exaltados em colunas e postagens que só passam credibilidade a quem exerce cegueira voluntária. Tem fraude que se lê na cara e no cheiro de vendedor de carros que o texto exala pelas linhas. Espero que canastrões morais possam finalmente encontrar um público que perceba como atuam mal. Para esse teatro interativo quero comprar bilhetes com assento no camarote. Desmarcarei outros compromissos. Na bolsa levarei um binóculo e um saquinho de amendoim japonês.

Arrematando a elevação cultural do funk, há quem chame o gênero de “resistência”, colocando-o como forma de protesto político da periferia. Isso é forçar a barra. Podem até existir letras que sirvam ao ativismo, mas mesmo aqui é preciso separar o estilo à procura de um assunto do assunto à procura de um estilo. A indústria musical está infestada de letras de protesto que servem à rebeldia vazia e à vontade de chocar. Além disso, são raros os músicos satisfeitos com a melodia sem voz – às vezes a voz é necessária para melhorar o conjunto, que seria fraco com uma melodia simplória soando sozinha –, e são poucos os músicos que fazem como Ed Motta, que é despreocupado com o sentido da letra porque acredita no poder do som das palavras: “Marta escolhe o seu lugar/ Senta atrás do banqueiro/ Planejou, foi certeiro/ Marta sabe arquitetar/ O transmissor nuclear/ Vai ativar/ O som do sonar/ Do mar/ Ao pousar no estaleiro”. Ou seja, se você vai montar uma banda de punk ou um grupo de funk ou uma roda de pagode, vai precisar de assunto. Alguns escolhem assuntos “de protesto”, outros escolhem assuntos já marcados pelo gênero no qual compõem.

O funk tem muitas letras exaltando intensa vida sexual, ostentação e bandidagem. Não julgarei esses temas porque eles estão presentes em muitas das músicas de hip-hop que eu ouço também, mas gostaria de entender que salto ornamental a esquerda romântica fez para chamar todo esse entretenimento de “resistência”. Músicas que são criadas para bailes em que os jovens querem dançar, exibir seus atributos físicos e apavorar sobre os valores dos pais são muito mais para dar sentido à festa do que para dar sentido a um inventado ativismo. O funk mais difundido resiste a quê? Ao recato, ao tênis barato e à lei? Mas desejar carros caríssimos, roupas de marca e popozudas é resistir a que, exatamente? E pelo que protestam? Ou é um protesto niilista? Marx & Engels não estariam muito satisfeitos ao visitar os bailes do Furacão 2000 e não se deixariam enganar nem por um segundo pelo trecho “Então martela/ Martela/ Martela o martelão”.

O verniz politizado que jogaram sobre pichadores segue a mesma liturgia. Jovens periféricos geralmente do sexo masculino estão à procura de aventura e desafios. Escalam pontes, prédios e trens para “deixar a sua marca”, que é mais para impressionar outros da sua área e de áreas rivais pela ocupação de território do que para protestar contra a desigualdade. Às vezes também pensam que estão atuando “contra o sistema”, mesmo sem conseguir definir que sistema é esse e sendo incapazes de elaborar uma reivindicação que não seja confusa, filha do achismo divagado – fazem da oposição não uma causa, mas um maneirismo. Pouco disso é apanágio dos pichadores ou de sua classe: jovens abonados têm a mesma programação de buscar o risco e a rebeldia, mas a estrutura familiar e o meio em que vivem talvez não permitam que esse impulso seja tão exacerbado. Ultrapassar limites de velocidade num carro esportivo ou pichar o túnel de um metrô, fazer uma faculdade que o pai desaprova ou largar o ensino médio: atitudes tão diferentes, mas que podem ter uma raiz comum.

Esse misto de situações somado a uma vida de poucas perspectivas ajuda muito a explicar o pichador. Há, todavia, quem prefira fazer história encantada dele – suas motivações seriam ativistas e um chamado à sociedade: “vejam, sou um animal político”. Quem leva a sério essa análise artificiosa de consciência de classe pensará que esses jovens estão pedindo melhores escolas públicas, emprego, bibliotecas comunitárias. Convido aos românticos que façam projetos para as periferias em que tudo isso seja oferecido e vejam a adesão dos pichadores. A realidade mostrará que nada é simples. (Mas um trabalho muito bom pode ser feito com os irmãos menores deles.)

Assim como o funk serve geralmente ao entretenimento, não à política, o picho geralmente serve à aventura e ao tribalismo, não à resistência. Cortadores de cana que após 12 horas de labor vão começar um torneio de baralho não estão “resistindo ao canavial por meio de jogos de cartas”: eles querem se divertir e relaxar. A empregada doméstica que aproveita seu dia de folga no domingo para ir à missa não está “fazendo um ato político”, mas procurando conforto religioso. O pedreiro que passa no bar antes de ir para casa a fim de se embebedar não está “protestando contra sua condição de classe”. É possível que ele seja mais suscetível ao alcoolismo por viver num desastre socioeconômico constante, mas resistência, protesto e atos políticos demandam um mínimo de consciência sobre o significado daquilo que se está fazendo. Por que bebe? Ele vai dizer que é porque gosta. Mas se disser que é para “esquecer os problemas”, ainda assim seu ato não se torna político. Milionário muitas vezes também bebe por esse motivo.

Em um país mal instruído como o Brasil, nem o voto é sempre um ato político. Se pensarmos “ato político” como uma prática advinda da consciência política, ainda que às avessas (o fascismo também é um ato político), veremos que o conceito não se aplica a muita gente que sai de casa para eleger um candidato.

São inúmeros os brasileiros que mostram pelo voto que são completamente alienados em política. Quem resolve conversar com as pessoas e se coloca a ouvi-las com atenção em vez de meramente esperar sua vez de falar sabe que o dever do voto foi compelido sobre cidadãos perdidos que não têm ideia do que estão fazendo. Se nem o símbolo supremo do direito político é em todas as situações exercido como um ato político, é infundado e é até uma fabricação da realidade alegar que toda manifestação cultural periférica é uma forma de resistência e de ação politizada. Não é.

Quando alguém da periferia diz que é, antes da concordância é melhor escavar a origem da alocução. Às vezes estamos há muito tempo fazendo determinada coisa e uma pessoa externa – ou uma pessoa interna que faz intercâmbio em outros círculos – põe um rótulo inadequado sobre aquilo que estávamos fazendo. Se aceitamos a rotulagem, há casos em que mudamos nosso modo de fazer para que fiquemos mais coerentes com o rótulo, mas também há casos em que o rótulo é só um papel que não altera o conteúdo no qual ele gruda. Portanto, ainda que funkeiros e pichadores se encantem pela ideia de chamar suas manifestações culturais de “resistência” e “ato político”, da própria cabeça ou incentivados por outros, isso pode não modificar em nada a essência do que fazem. As coisas e as pessoas são o que são, não o que dizem que são – embora exista um comércio de falsários que conseguem se vender apenas pelo gogó porque há compradores iludidos achando que coisas e pessoas são mesmo o que dizem ser.

Politizaram na marra a diversão e o desejo de aventura dos jovens pobres. Querendo que tudo seja político e vendo que nem tudo assim é, ideólogos pegaram o atalho de inventar politização onde ela não está. Nada escapa à megalomania militante. Nem o baile, nem o picho.

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NOTAS

1. Não me entenda errado, gosto do chamado “funk das antigas”, mas apoio que todos os gêneros musicais possam ser criticados. Isso não impede a “crítica à crítica”, desde que ela não seja, à toa, uma excomunhão moral. Está muito fácil chamar de racista, elitista e malvado quem não gosta de alguma manifestação cultural periférica. Pode-se criticar tudo, menos a periferia? Não desumanize os pobres com advocacia paspalhona.

2. O poder do sample. Algumas das músicas mais conhecidas do funk carioca devem parte do seu apelo à boa escolha de samples. Quando comecei a namorar o André, estávamos fazendo uma das nossas tradicionais festinhas com cerveja, petiscos veganos e músicas intercaladas escolhidas por um e outro. Era a vez dele de escolher a música. Quando ela começou a tocar, eu falei “isso é Tati Quebra-Barraco, rs”; ele replicou “isso é Layo & Bushwacka, rs”. Até aquele momento eu não sabia que o ótimo som de fundo de “Boladona”, da Tati, era um sample da música “Love story”, da dupla de house Layo & Bushwacka. Não consegui descobrir quem é o responsável pela escolha do sample dessa música, mas como o álbum da Tati onde ela está foi produzido pelo DJ Marlboro, que é uma enciclopédia musical, chuto que foi ideia dele.

“Cerol na mão”, do Bonde do Tigrão, tem sample da música “Headhunter”, do Front 242, e “O baile todo”, do mesmo grupo, tem sample da “Who let the dogs out”, do Baha Men.

(E a própria “Love story”, de Layo & Bushwacka, usa como base a música “Mongoloid”, da banda Devo.)

2.1. Tem quem ache que músicas desenvolvidas em cima de samples são cópias que não merecem crédito. Eu discordo. É necessária alguma arte pra saber copiar. Quentin Tarantino é um excelente copiador – apropria coisas de inúmeros lugares, mistura elementos próprios e consegue criar um resultado inovador –, a Era de Ouro do Hip-Hop estadunidense usou muitos samples de jazz como base e compôs músicas sensacionais. Algumas colchas de retalhos são bonitas, outras são feias: é preciso saber escolher os retalhos e saber como costurá-los.

2.2. O que existe de ruim no mundo da cópia:

a) Os maus copiadores. Copiam errado ou copiam o que não presta.

b) Os que só copiam. Imitam tudo que os outros fazem e não conseguem adicionar nenhum bom elemento próprio à mistura.

c) Os que copiam algumas vezes, enganam por um tempo, mas depois não conseguem se sustentar na cópia. É comum na internet, onde pessoas copiam ideias bem elaboradas e sintetizadas de outros, mas se são cavoucadas a se aprofundar no assunto não conseguem. Quando simplórios surgem com opiniões muito arredondadas sobre uma questão difícil, suspeite. Possivelmente a opinião não apareceu de “algumas leituras seguidas de um longo pensamento”, mas de pura cópia de uma opinião alheia já finalizada. A opinião alheia é que surgiu de algumas leituras seguidas de um longo pensamento.

Já me aconteceu, há alguns anos, de receber aulas não requisitadas de uma pessoa que queria me mostrar suas grandes ideias, mas tudo que essa pessoa disse tinha sido elaborado nos últimos textos muito particulares de um colunista de jornal. Eu queria ter perguntado “você não deveria dar crédito ao colunista desse jornal que nós assinamos, já que está usando os últimos textos dele de ponta a ponta como se fossem ideias suas?”, mas não perguntei. Às vezes vale a pena deixar que os outros achem que nos enganam.

2.3. Não acho que devemos dar crédito a tudo e todos de maneira obsessiva – a vida não é um artigo acadêmico –, mas se nós temos um grande guru que copiamos com muita frequência talvez seja o caso de fazer alguma menção. Ler alguém escondido, adotar a maioria das suas ideias, fazer de conta que todas essas ideias resultam da sua pesquisa em muitas fontes junto ao processo do seu pensamento e não dar nenhum crédito ao guru – isso não é muito honesto.

– Engraçado, 90% do que você fala sobre filosofia é puro Schopenhauer.

– Não sei quem é Schopenhauer. Essas ideias sobre o mundo como vontade e representação são minhas.

2.4. Parece que estou dando indireta para alguém em especial, mas não estou.

3. Não me entenda errado, apoio a decisão de Ed Motta de não se preocupar com o significado das letras porque as palavras já têm uma sonoridade própria. (Adoro inúmeras das suas composições, aliás: seu álbum AOR, de 2013, é uma joia). Existem músicas que são ótimas em letra e melodia, que bom, mas a finalidade da música é a… musicalidade. Não procuro as letras da maioria das músicas estrangeiras que ouço. A voz modulando em cima da melodia já me cativa. Já chorei com músicas cujas letras não compreendia.

4. Advogados morais se parecem com alguns advogados comuns: você apresenta seu problema e eles aumentam o número de pedidos na causa. Um processo que seria apenas sobre a falta de pagamento de FGTS se transforma, na criação desses espetaculares, em pedido também de danos morais, horas extras e equiparação salarial. O funkeiro que deseja somente <FAZER SUCESSO> e <GANHAR DINHEIRO> se vê às voltas com um advogado moral que diz “tudo bem, mas vamos aproveitar para reivindicar que você enaltece o Brasil, que a sua cultura faz parte da resistência e que cantar na periferia é um ato político”.

– Não posso só fazer sucesso e ganhar dinheiro?

– Por que se contentar com uma parte se podemos ter tudo? Vamos pensar grande! Vamos pedir qualquer coisa que esteja ao nosso alcance!

5. Mili, a pequena militante:

6. Texto escrito ao som de “Sous le soleil de Bodega”, do Les Négresses Vertes, e outras coisas.

6.1. Outras músicas que recomendo do Les Négresses Vertes: “Ces’t pas la mer à boire”, “Orane”, “L’homme des marais”, “Hey Maria”, “Les yeux de ton père”, “Famille heureuse”, “Face à la mer” e “Accouplés 2020”.

Se Lumena moderasse o tom, ainda assim estaria errada (Série “Radical do Movimento Negro”, texto nº 5)

Existe uma grande confusão – ou, como diria Gilmar Mendeseine grosse Konfusion – quando misturamos tom e discurso. Treinadores de políticos em tempo de campanha sabem disso. A jornalista Olga Curado, que já assessorou Lula, Dilma e Aécio, trabalha para que seus clientes mudem de tom e postura, não de plataforma. Profissionais como ela são contratados porque os partidos têm ciência de que a maneira como se fala pode contar mais com certo público do que aquilo que se fala.


Timbre, dicção, simpatia, estabelecimento de vínculo com o eleitor e convicção às vezes têm mais eficácia do que um redondo programa de governo. O maior entrave para Marina Silva chegar ao Executivo Federal é justamente sua aparência e seu tom, que sugerem fraqueza e despreparo. Já Bolsonaro – tosco, com histórico de abana-moscas em quase 30 anos de Câmara dos Deputados e carregando um projeto político obscuro – foi eleito por 57,8 milhões de brasileiros, que viram em sua incivilidade alguma coisa de estupendo. Democracia em país de maioria ignorante é capaz de eleger candidatos de comportamentos que nos remetem à Pré-História. Não é todo mundo que admira conquistas da civilização como os talheres, o vaso sanitário, os direitos humanos e a urbanidade.


A política eleitoreira escancara como um tom sedutor pode ser usado para ocultar um discurso fraco, incoerente ou com promessas difíceis de implantar, mas o problema da confusão entre tom e discurso não se reduz a ela. Quando pensamos que políticos corruptos e sem programas consistentes se elegem ao adotar tons que arrebatam o povo, costumamos achar que certa “gente simples” é que se permite enganar por esses falsários. Tenho ressalvas quanto ao grau de simplicidade que explicaria a perpetuação de estelionatários na política – porque acredito que o Congresso representa muito bem as características marcantes de boa parte da população brasileira –, só que a dominância do tom em relação ao discurso vai além disso. Entre pessoas esclarecidas ostentando doutorados que valem cada vez menos o tom tem nublado a propícia análise de conteúdos. Tanto se defendem discursos mancos porque feitos em tons considerados justos quanto se execram discursos íntegros porque embalados em tons “ofensivos”.


Nem eu gosto de inúmeros tons. Acho que deboche tem hora, lugar e medida, que cinismo pode mascarar estultice e desconhecimento de causa, que o recurso da comédia é abusado por aqueles que não sabem do que estão falando, que o autoelogio constante é uma demonstração de insegurança, que a grosseria deveria ser expediente a se recorrer em último caso, que o purismo ideológico é sectário, que vaidades tendem a sujar discursos, que o estilo exaltado cansa e que a pergunta retórica ao vivo costuma ser feita por quem gosta de dar palestras às quais não nos inscrevemos. Todo mundo tem o direito de preferir uns tons a outros.


Às vezes chegamos a um ponto em que mais nos irritamos com o tom de um opinador do que exultamos com seus acertos, e decidimos: “o custo-benefício está muito ruim, não aguento mais esse reinado que pensa inventar uma roda por dia”. Quebramos o vínculo porque a postura enlouquecida do mensageiro se sobressai às mensagens que veicula: ele estimula mais ódio e ansiedade do que raciocínio. É reconfortante acordar na manhã seguinte e não ter aquela montanha-russa de emoções como presença em feeds de notícias, e-mails, colunas, livros, encontros. Perde-se algo – o polemista “passado no tom” tem algumas razões –, mas ganha-se mais. O ar fica salubre outra vez e estamos libertos de acompanhar um desequilibrado tacando fogo na sala dos nossos pensamentos – apenas porque não conseguia puxar uma cadeira, tomar um vinho e dialogar discordâncias.


Tem quem só se sinta vivo criando incêndios. Não somos obrigados a embarcar em aventuras piromaníacas para descobrir, no final da devastação, que criamos dez inimigos novos e instauramos pânico no bairro só por causa de um quadro desalinhado na parede que nosso “influenciador” resolveu vingar. Há pessoas ressentidas que transformam seus problemas pessoais em problemas coletivos, e há pessoas que usam o tom “proletários, uni-vos contra a opressão do capital!” quando um chefe meramente diz que é preciso voltar a bater o ponto.


Uma causa correta tratada num tom dramático, excessivamente grosseiro ou presunçoso pode espantar parte do público. Se esses recursos desproporcionais espantam de um lado, mas arrebanham de outro, é o caso de seus operadores se perguntarem se é mesmo para esse perfil que desejam continuar falando. Nem sempre temos culpa de angariar simpatizantes fanáticos que se esforçam para criar neurônios no fígado, pois não temos controle sobre quem resolve gostar de nós – às vezes parecendo que só gostam porque não entendem o que de fato estamos pregando –, mas há situações em que somos não só algo responsáveis pelas bestas-feras invasoras dos salões que divulgamos, como estimulamos que elas venham ter conosco para aumentar o volume de gente que nos sanciona. 


Quando se acredita que a inflação da popularidade é necessariamente uma consequência da inflação da qualidade – ou do reconhecimento da qualidade –, pode ser mais difícil enxergar o número de idiotas que nos aplaudem só porque idolatram tom amargo, ódio, humor vazio e arrogância. Se fazemos questão de manter a fidelidade deles, acabaremos como as lojas: alterando nossas ideias para seguir uma lógica de comércio. Quem manda é o cliente, com ou sem razão.


Além disso, o discurso certo feito repetidamente com o tom errado pode levar, sem que seu proprietário perceba, a um discurso errado. Um opinador começa muito bem, sopesando tudo, mas um dia perde a mão e nessa circunstância congrega uma turma de apaixonados. Se o opinador se deixa enfeitiçar pela aclamação e quer dar à sua cabeça mais dessa droga que é o êxito social, ele pode extremar o tom gradualmente. Aposte: em pouco tempo é provável que ele extreme também o discurso. Muitos críticos de justiceiros ficaram tão ardentes nas proposições feitas à categoria contra a qual lutavam que não perceberam que seu tom radicalizou, que seu discurso piorou com o tom e, no final das contas, também não notaram que se transformaram em justiceiros de outro jeito ou reacionários. Só não direi que “não se nasce extremista, torna-se extremista” porque creio que algumas pessoas têm uma tendência natural ao jacobinismo. A cultura, que nos diferencia dos outros animais, deveria ajustar esse erro de programação, não agravá-lo.


Também podemos abandonar alguém que exibe alguns juízos aproveitáveis, mas tem um tom malemolente, choroso, enfadonho. Muita gente se encanta pelo estilo da jornalista Eliane Brum, mas chego à metade de um texto seu tamborilando na mesa com impaciência e com vontade de voltar a fumar. Fui ver o documentário Laerte-se, na Netflix, com direção e roteiro de Brum, e saí dele melancólica e sentindo pena de Laerte. O documentário queria mostrar que Laerte tem depressão? Brum opta pela alienação quando se trata de criticar insânias identitárias, mas já escreveu linhas excelentes sobre figuras da direita brasileira. Por causa do seu tom, entretanto, opto por raramente lê-la. Vivemos numa época em que existe informação demais disputando nossa atenção e é preciso estabelecer um critério de leitura dentro do que pode aprimorar nossas opiniões sobre assuntos de interesse geral. O tom é um dos filtros para selecionar o que é útil nesse bombardeio informacional. Com tantos escritores capacitados tratando dos mesmos tópicos, não vejo sentido em perder muito tempo escolhendo para ler aqueles que têm estilo ruim e mudam de tom conforme a tribo criticada.


*


Já a drástica oposição a essa ideia de abandono por causa do estilo talvez esteja naquele que não quer ouvir nada de “desagradável”. Trata-se de maneira incisiva o que merece abordagem incisiva, talvez com uma ironia bem dosada aqui ou acolá, e o sensível se levanta para ir embora porque desaprova o tom. Qualquer tratamento mais afiado de uma questão ou a demolição controlada de uma crença pela qual o sensível tinha ternura é motivo para que ele se recuse a ouvir uma opinião contrária e CULPE O TOM sem julgar o mérito do argumento.


A mente fechada considera que uma opinião combativa é, por si, um “tom inadequado”. Discordar sem pedir licença, trazer flores, almofadar a sala, tirar os sapatos e questionar, baixinho, “será que, por acaso, talvez, quem sabe, vocês não estão, digamos, equivocados?” é “errar o tom”. Teria havido Reforma Protestante se Martinho Lutero suavizasse o tom? O que teriam alcançado as sufragistas se reivindicassem o direito de voto das mulheres com um tom recatado? Em vez de rebeliões, escravos revoltados contra sua condição de mercadoria deveriam ter convidado seus senhores para uma conversa amigável e conscientizadora à beira do lago?


O autoritarismo nem sempre precisa de palavras de ordem e armas para se manifestar. Num convento em que os decibéis se mantêm muito baixos e onde facas de manteiga e cabos de vassoura são utilizados apenas para as finalidades às quais foram destinados, uma noviça com dúvidas pode ser calada porque sua pergunta é tida como um problema de tom.


– Madre, será que…?

– Ah, Teresinha, esse seu tom, esse seu tom!


A suposta rejeição a um tom pode ser só uma forma de calar um discurso: o que é “de bom tom” é não tocar no assunto. Neste caso, o problema do polemista não é o estilo que professa, mas sua existência de boca aberta. O interlocutor que reclama do nosso tom pode querer contribuir para que qualifiquemos uma abordagem. Ou talvez queira só nos amordaçar. Saber avaliar essa diferença não é tão simples em algumas situações.


Para aborrecimento dos sensíveis, existem temas que ofenderão alguém mesmo se tratados com cortesia por uma japonesa risonha dentro de uma floricultura ao som de “Summer breeze”, de Seals & Crofts, pois são intrinsecamente de potencial ofensivo. E para adicional resmungo desse grupo abaladiço que transita entre a sutileza e a frescura, muitas vezes é o tom desafiador e cavaleiresco que faz o charme merecido de alguns bravos que não temem confrontar matérias urgentes.


De minha parte, a admiração pelos desbocados só é mantida quando essa braveza não é estapafúrdia – como fazem os combatentes de lagartixas que alardeiam derrubar dinossauros – e quando ela é proporcional ao tamanho do problema. Quem manda publicar o próprio jornal cheio de exclamações para acusar o tremor de terra que formigas causam ao caminhar, mas finge que acontece um festival de música & dança toda vez que uma fileira de elefantes passa pela cidade – isso é muito mais do que uma “diferença de tom”, isso é canalhice. Num contexto democrático em que sua vida e seu emprego não estão em risco, tolerar problemas grandes e fazer escândalo por problemas pequenos pode ser um desvio de caráter. Avalia-se um opinador público não apenas sobre o que ele fala, mas sobre o que ele cala. Tem quem faça profissão dessa patifaria.


*


Não compreendo aqueles que tentam determinar certa universalidade tônica. Primeiro porque esses senhores tendem a pedir mansidão apenas para uma categoria. Aquele que diz “não se conquista defensor de Bolsonaro por meio de xingamentos e deboche, devemos agregar as pessoas” é bizarramente o mesmo sujeito que trata até moderados de esquerda com xingamentos e deboche. Por que é preciso ser amoroso e compassivo com alguém que em 2021 ainda apoia um entusiasta da tortura, de ditadores sanguinários de direita, do golpe militar e do fechamento da imprensa, mas para um morno de centro-esquerda é reservada humilhação e estardalhaço de erros pontuais? “É com bolo e chá de especiarias que se humaniza o pobre homem que apoia a inserção de ratos na vagina de mulheres como método de tortura”, recomenda a fada insensata que toda semana está na internet ridicularizando apoiadores de Tábata Amaral ou Marcelo Freixo. É intrigante alguém achar que bolsonaristas são crianças que não sabem o que fazem – sendo <O AMOR> o método ideal para resgatá-las –, mas que qualquer esquerdista é um arquiteto da perversão afoito por fazer do Brasil uma Venezuela. Entendo que a abordagem grosseira pode não funcionar com quem só se expressa por meio da grosseria – há casos em que a única forma de desarmar um grosseiro é sendo sóbrio e delicado –, mas é importante observar qual é a motivação daqueles que suavizam os loucos de um lado e transformam suaves do outro lado em loucos. 


Em segundo lugar, não existe apenas um tom correto para o convencimento. Há quem se encante com argumentos bossa-nova e só mude de ideia quando rodeado por passarinhos persuasivos, e há quem prefira um enfoque belicoso que ponha pilares abaixo na base de explosões. Já mudei de opinião lendo quem dissertava como João Gilberto cantava – biri biri, boró boró, badá badá –, mas também já fui seduzida por exposições vertiginosas saídas da Escola Enéas de Entonação. O tom humorístico que funciona para fascinar Luís é rejeitado por Júlia e considerado bom, mas exagerado, por Doroteia. Não há fórmula universal.


É justo reclamar de tons incômodos e largar o cínico partidário de X para acompanhar os textos do moderado partidário de X. Uma mesma ideia costuma ser apoiada por uma miríade de tons passíveis de escolha. Ateus sisudos que repudiam sátira com religião dizem não gostar do tom zombeteiro do etólogo e divulgador científico Richard Dawkins, mas é com esse tom que Dawkins conquista muitas pessoas para o espírito científico e para o ateísmo. Também religiosos repudiam o tom de Dawkins, mas muitas vezes achando que essa crítica já basta como contraponto. Não basta. Usar pura ojeriza ao tom para disfarçar incapacidade de réplica é desonesto, ainda que funcione entre os distraídos. Estaríamos diante de uma “falácia do tom”?


São três as posições honradas nesse campo:


1. Concordo com o argumento, mas não com o tom.

2. Concordo com o tom, mas não com o argumento, porque [explicação].

3. Discordo do tom e do argumento, e discordo do argumento porque [explicação].


Essa posição número 2 é engraçada, mas existe. Quem já não leu pessoas com as quais discordava apenas porque sentia algum fascínio pelo tom que elas usavam para discorrer sobre as coisas? Um poeta pode fazer versos adoráveis só escrevendo asneiras revolucionárias pró-URSS, quem acha as ideias de Nietzsche muito extravagantes pode perfeitamente lê-lo como literatura.


Um tom errado para dada ocasião pode esconder uma proposição certa, assim como um tom certo pode esconder uma proposição errada. Mas também há casos de discursos errados feitos com tons errados que são repelidos apenas pela entonação. Nesse exemplo particular, desaprova-se o tom para se salvar o discurso. É isso que militantes envergonhados com a histeria de Lumena fizeram, e parece que com algum sucesso. 


*


Vou supor que o leitor não saiba quem é Lumena, então apresentá-la-ei. Lumena é uma psicóloga baiana e ativista negra que foi selecionada para participar do Big Brother Brasil de 2021. É identitária e usou a edição com mais participantes negros do BBB para passar sua agenda militante ao país por meio de sermões embolados que irritaram grande parte dos espectadores. No dia 2 de março foi eliminada num paredão. Muita gente tirou sarro do fato de Lumena ter vindo de uma empresa de Felipe Neto, mas o que achei mais interessante foi saber que ela escrevia roteiros para o canal de Silvio Almeida no YouTube.


Eu não tinha nenhum plano de acompanhar este BBB. Nunca tive por hábito ver o programa e só me lembro de ter visto um pouco das edições em que Alemão e Max venceram. Vi tão pouco que até alguns dias atrás achava que eles eram da mesma edição. Quando anunciaram os participantes do BBB21, li comentários sobre a seleção ter sido feita com o intuito de consagrar a lacração, e, como sempre, deixei pra lá, achando que o buraco do fascismo de esquerda já poderia pleitear o nome de abismo. Fui descascar batatas para o jantar.


Até que começaram a surgir análises sobre como os identitários do BBB21 estavam dando tiros no próprio pé. Gente que falava tanto de empatia e sororidade fazia terrorismo psicológico com “irmãos pretos” e chamava outra mulher da casa de “vagabunda” porque supostamente ela estaria “dando em cima” de um homem visado. Palestras transtornadas sobre privilégio branco, lugar de fala e racismo estrutural apareceram, bem como brancos fazendo autoimolação com choradeira porque temiam oprimir pessoas “historicamente marginalizadas”. Aí me interessei pelo programa e passei a acompanhá-lo.


Lumena foi uma das maiores preciosidades da edição. Ela é como um tornado, ou seja, um daqueles fenômenos brutais que não desejamos que existam, mas que, se existem, ganham nossa dedicação e interesse. Fazia monólogos longos sobre privilégio branco, coagia pessoas brancas da casa a não querer se sobrepor aos negros, vinha do outro lado do pátio apontando o dedo para chamar a atenção de uma sister, determinava quem estava “se apropriando de pautas coletivas para fins egoicos”, disse que o primeiro beijo gay do BBB entre um negro que ela perseguia – talvez por considerá-lo fraco – e um pardo foi para chamar atenção e para “sequestrar a causa LGBT”, disse que uma mulher branca estava “toda cagada na merda da branquitude” e que ela tinha uma “jornada que não transcendia a mediocridade”, reclamou com um colega porque ele teria cogitado deixar que “duas pretas” estivessem no mesmo paredão, transformou uma agressora psicológica desvairada em vítima ao dizer que ela era criticada apenas por ser “fenotipicamente negra”, reclamou que os outros estavam “deslegitimando” e “ressignificando” coisas e causas variadas, incluindo a fofura.


Tudo isso vinha em tom seco, às vezes gritado, com os olhos arregalados ou a testa franzida em um labirinto. As caras e bocas, os termos de quem se embaraça para simular profundidade e o estilo de sua patrulha justiceira se tornaram uma fartura de memes. Mas muito mais do que aquilo que Lumena falava, foi seu tom que desestabilizou a militância “aqui fora”. Com uma postura arrogante que nunca deu certo num BBB que tende a dar o prêmio a bacanas ou coitados, a roteirista de Silvio Almeida não irritou apenas o cidadão comum ou os críticos dos excessos identitários – ela conseguiu irritar os próprios militantes que comungam do mesmo discurso que o seu. Nesta versão do mito, Narciso vê seu reflexo no rio e não se apaixona. Jogar pedras nessa imagem não muda nada se você não souber, antes de qualquer coisa, que a imagem é toda sua.


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Prefiro o risco de ser chamada de obcecada ao risco de me acusarem de não saber do que estou falando porque não li quem critico. Então leio alguns dos superestimados “intelectuais negros” que se dizem porta-vozes da boa negritude. Cedo descobri que essa ciência não contribui muito para que me estimem na ágora virtual, pois quando dizem “vá ler” e digo “já li”, treplicam que devo ter lido errado. Se indico o trecho que demonstra meu ponto, insistem que descontextualizo peças convenientes. Se me esforço para fazer pesquisa de graça para os outros e trago o pano maior e a repetição da bizarrice em outras plataformas, aí usam a bigorna que encerra o debate: “você está criticando porque você é racista”. Não existe discussão saudável com cínicos e devotos.


Ocorre que Lumena não foi novidade para ninguém que estava acordado ouvindo a arruaça identitária que acontece todos os dias na internet e nas universidades. Sua paranoia com uma coletividade branca supostamente racista, sua perseguição a brancos que a criticam, seu mau-caratismo de atribuir a racismo o repúdio ao comportamento abusivo de uma colega negra que sentia prazer em infernizar a vida alheia, suas análises anacrônicas sobre guerras raciais, sua compulsão em vexar os outros por pequenos erros, seu assédio a inimigos imaginários, sua fórmula de fingir autoconfiança para esconder baixa autoestima, suas sentenças herméticas que não admitem o contraponto – nada disso é original para quem acompanha aqueles tais “intelectuais do movimento negro”.


Tons débeis como o seu são corriqueiros entre identitários nas redes sociais, e discursos como o seu são recebidos com honra em programas de TV. Estrelas do movimento negro radical inventam que nada mudou para os negros desde a escravidão, exigem que ensaios opinativos de pessoas oprimidas sejam ratificados como “ciência” na academia, falam que todo branco é racista, atribuem a racismo atual qualquer situação negativa que aconteça a negros, impedem que brancos divirjam sobre assuntos da negritude porque isso seria desrespeito ao “lugar de fala”, acham que vivência tem mais valor científico do que biologia e história, demandam condecoração na marra – e isso está bom para professores, representantes institucionais, jornalistas e mídia em geral. Se Lumena é rechaçada não por apoiar todas essas coisas, mas por falta de traquejo social ao fazer militância, foi ilusão acreditar que este BBB poderia ajudar a colocar o trem do bom senso nos eixos.


*


Reconheço que fui boba ao pensar, por duas semanas, que a explosão identitária no BBB pudesse ser o começo do fim. Crises ocorrem após acúmulo de acontecimentos negativos, mas nem sempre é possível prever onde e como elas vão estourar. Por mais que meia dúzia de corajosos estejam há anos se mantendo de pé contra o autoritarismo do delírio identitário – um delírio agora coletivo que nos é servido no café da manhã, nos livros didáticos e em eventos de Exatas –, isso não significa que a crise estouraria nos espaços onde eles estão resistindo. Crises podem aparecer no lugar inesperado e pelo motivo inimaginável: quem suporia que os protestos de 2013 iniciariam após a possibilidade de um aumento ínfimo no transporte público? 


Um balão há muito tempo insuflado por gigantes de repente estoura com o sopro de um anão. Num reality show que desejava promover uma seleção “diversa” com participantes empoderados dispostos a tombar continuamente, poderíamos ser surpreendidos ao assistir a outro tipo de tombo. Não aconteceu. Nós sequer tivemos tempo de explicar para a audiência comum que o motivo de ela ter detestado aqueles personagens que fez questão de eliminar tão cedo foi, em parte, porque eles espargiam soberba, hipocrisia e autoritarismo próprios do movimento identitário. Melhor seria, talvez, se tivéssemos deixado que eles passassem vergonha até abril.


Pessoas que fazem o mesmo discurso que Lumena tentaram se descolar da genitura dela e quiseram nos levar a crer que ali existia mais um defeito de tom e de oportunidade do que de discurso. Isso mostrou que um bode expiatório fora eleito para ser sacrificado na frente de todos a fim de que depois tudo continuasse como sempre foi. Esse ritual também não é novo. Quando escândalos surgem dentro de seitas e corporações, um membro tende a ser escolhido para ser linchado simbolicamente e expiar a vergonha pública de uma conduta que era admitida pela comunidade quando era prática comum, mas algo privada. Uma vez que o elemento indigno seja expurgado porque desonrou o grupo perante grupos rivais, baixa sobre os carrascos um sentimento hipócrita de “fizemos o que tínhamos que fazer”. O acordo tácito é o de manter o costume, mas cuidar para que a situação não se transforme em escândalo outra vez.


Sintonia com o infrator que se assemelha a nós não é para qualquer um. Durante execuções inquisitórias, quem cometeu erros iguais ou piores que os do condenado pode ser o incentivador mais febril a exigir que a fogueira seja acesa logo. Se militantes que são como Lumena disseram “ela está militando errado, tem que ser renegada” em vez de assumir “ela representa o que fazemos, e isso mostra que precisamos mudar”, está demonstrado que nenhuma lição foi aprendida. E se uma multidão de tolos sendo empurrados pelo espírito de seu tempo – gente que confunde “evolução moral” com “seguir qualquer moda virtuosa que apareça” – tem fé nessa explicação de que o problema de Lumena era pontual e “de tom”, esta edição do BBB servirá apenas para o que sempre serviu: entretenimento alienante de fim de noite. 


Pediram o sacrifício do tom público de Lumena para que pudessem continuar cultuando males discursivos maiores dentro do movimento negro. A militância bronca, ressentida, anacrônica, vaidosa e vitimista corta a unha do dragão para poder preservar o fogo que ele solta pelas ventas. Encastelados acham que agora tudo está sob controle. Logo verão melhor o custo disso.


***


NOTAS


1. É preciso cuidar para não se encantar por um tom que é um tanque arrasando um piquenique. Esse tom se proclama “na ferida”, mas olhe melhor. Quem aparece com um facão para arrancar uma espinha não é “o corajoso que não teme o enfrentamento das moléstias”, é um doido. A doideira seduz quem precisa de <IMPACTO> para sentir que alguma coisa de impressionante está acontecendo na guerra ideológica que presencia, mas se deixar cooptar por um discurso descomedido porque ele é embalado num tom <MATADOR> é muito adolescente. Não é à toa que tantos adolescentes se enfeiticem pela picaretagem <MATADORA> de alguns professores de História defensores de regimes tirânicos.


1.1. Interessantemente o tom <MATADOR> algumas vezes está, mesmo, defendendo matanças. Existem tons que casam muito bem com certos discursos, por isso há determinado volume de decibéis que deve pôr nossas orelhas em pé de antemão. Às vezes ideias radicais já vêm embrulhadas em tom radical. Tem doido sofrendo crise nervosa no meio da rua – e em vez de levá-lo para o hospital, um grupo de passantes à procura de emoções fortes o arrasta para o palanque. Alguém que precisa de ajuda psiquiátrica, sopa e chinelos confortáveis se transforma no maioral que é escolhido para agitar multidões.


1.2. A antítese do doido talvez seja a mosca morta que quer tratar metástase com homeopatia. Algo grave está acontecendo e o fleumático publica um texto tão brocha que faz parecer que ele na verdade está satisfeito com a situação.


1.3. Verniz de ponderação também não deveria isentar ninguém de uma análise discursiva e argumentativa mais detida. Tem muito maluco falando manso que está aliciando incautos. Tem maluco que usa tom moderado permeado de citações e é chamado de “intelectual”. Roupagem acadêmica, docilidade e parcimônia emocional não deveriam sabotar nosso foco no conteúdo da arenga. 

1.4. O tom pode variar de acordo com a ocasião para que fique adequado a determinado público e sem que haja nisso oportunismo. Uma professora universitária de pintura que resolve fazer trabalho voluntário no clube de mães de uma favela certamente mudará de tom para conduzir os artesanatos das senhoras sob sua tutela. Na universidade a professora é seca com o erro técnico de uma aluna que pintou um quadro que passaria muito bem pelo crivo estético de tantos leigos, mas na favela ela é amável com a idosa que pintou uma galinha sorrindo num pano de prato. A idosa pergunta “Posso pintar a frase DEUS RECOMPENSA OS JUSTOS embaixo da galinha?”, e a professora diz “É claro, Dona Hermínia, é claro”.


2. Uma sugestão. Não observe tanto quem ainda está apoiando Bolsonaro. Observe quem está calado sobre Bolsonaro. Especialmente se o cínico costuma abrir a boca para opinar sobre tudo, mas sobre Bolsonaro – nojento, incompetente, pernicioso, coveiro, estúpido, baixo – não fala uma palavra sequer ou só solta murmúrios inofensivos. Também observe quem não critica quase nenhuma das idiotices que Bolsonaro diz todos os dias, mas é uma voz exaltada na tribuna se alguém fala alguma coisa que não procede contra Bolsonaro, como se esse sujeito vivesse para ser um advogado subalterno do absurdo. Que frustrante só ter utilidade ao catar as migalhas de um traste. 


“Quem não é visto não é lembrado.” Tente se lembrar dos espalhafatosos que têm opiniões e indignações para todas as coisas do mundo político, econômico, cultural, jornalístico, filosófico, biológico, circense, culinário, jurídico, medicinal, literário, tipográfico, farmacêutico – mas se abstêm de dar as caras para criticar um presidente que afeta a rotina de todos. Análise de discurso é importante. Análise de silêncio também. Alguns silêncios resistentes valem como conferências. 


2.1. Pode apostar. Quem sempre gostou de opinar sobre política e agora está calado sobre o mar de excremento que Bolsonaro fez jorrar sobre o país vai subir nas tamancas quando algum futuro presidente de esquerda causar a primeira poça d’água. Alguns colunistas da Gazeta do Povo devem estar até torcendo para que Bolsonaro não seja reeleito, pois assim eles podem voltar a ter assunto. Não está fácil para esses rasteiros fingir por tanto tempo que Bolsonaro é apenas “um tio do pavê”. Mas eles persistem. Não se deixam abalar pelo desafio. Cada resto de osso que cai da mesa de Bolsonaro continua sendo visto como uma grande oportunidade. 


2.2. O cinismo é um defeito subestimado. Em outro momento escreverei uma postagem apenas sobre ele.


3. Afinal, de onde vêm os escândalos? Nem sempre eles podem ser previstos e explicados. Sabemos pela experiência que condutas reprováveis ocorrem continuamente sob a cumplicidade da maioria. Quando por acaso uma dessas condutas se torna um escândalo, quase todos os cúmplices se mostram falsamente chocados, alegando “eu não sabia” e participando da exclusão daquele que por tanto tempo apoiaram porque agora “pega mal” continuar endossando o acusado. Com frequência vemos corruptos, abusadores morais e sexuais, terroristas psicológicos e canalhas sendo protegidos e elogiados por gente que se fará de surpreendida quando – e se – um escândalo estourar. É impossível que os amigos e aduladores de Harvey Weinstein não soubessem do comportamento predador dele – muitos deviam saber e até achar engraçado –, há espíritos de lixo que usam o poder hierárquico que têm para humilhar os outros, e são contemporizados com os termos “personalidade forte” e “jeitão”. É uma transigência que o zelador e a faxineira temperamentais não obtêm, e é óbvio por quê.


3.1. Conhecidos de Lumena foram às redes sociais manifestar “espanto” com seus modos dentro do BBB, como se ela tivesse se transformado em um personagem irreconhecível. Duvido da honestidade dessas alegações. Pode ser que no cotidiano Lumena não fosse tão autoritária quanto era nesse programa, mas ela já devia ser autoritária o suficiente para ser rechaçada em discurso e postura por aqueles que aceitavam usar o sentido da visão para enxergar. É muito conveniente fingir choque e “não tenho nada a ver com essa pessoa” quando um escândalo aparece. Se você precisa que uma atitude errada seja censurada por um coletivo para então incriminá-la, é porque você não se assombra com atitudes erradas, mas com escândalos.


3.2. O escândalo também pode aparecer de maneira injusta, e aqueles que não se preocupam com a avaliação de atitudes, mas com o estouro de escândalos, podem ser os mesmos que negaram apoio a Jesus quando ele foi condenado. Muita gente que hoje entope capelas e templos teria abandonado o autointitulado Filho de Deus quando ele atingiu o ápice do “escândalo” em Jerusalém. Afinal, quem deseja manchar a própria imagem apoiando um escandaloso? O melhor é negá-lo três vezes. Dois milênios depois é fácil repreender Pedro por um comportamento que quase todo mundo teria, mas os autoenganadores têm certeza de que liderariam uma insurreição contra Pôncio Pilatos ou teriam ao menos se oferecido para carregar a cruz no lugar de Cristo. Não têm coragem nem de recriminar pequenas injustiças cotidianas, lambem as botas de poderosos perversos, seguem a opinião da maioria, mas estão certos de que na Antiguidade sacrificariam suas reputações e vidas para ficar ao lado de um homem que era considerado lunático e perigoso, um homem que só foi reabilitado muito tempo depois de ter sido crucificado.


4. Acusaram Lumena de “academicismo”. Vai mal a academia quando está associada a um discurso desengonçado defensor de que o melhor caminho entre dois pontos é uma curva acentuada.

4.1. A melhor forma de disfarçar a falta de profundidade de conteúdo é adotando um discurso espiralado que nem poético é. O que esconde o palestrante que torna sinuoso um assunto simples e dá voltas surrealistas no ordinário?


4.2. Os objetivos do projeto que Lumena escreveu para sua atuação no BBB talvez fossem estes:


– Ressignificar os itinerários das instâncias medíocres da branquitude

– Desconstruir a opressão estruturada em jornadas não edificantes

– Deslegitimar causas egoicas que se apropriam do coletivo e não transcendem


Essa linguagem não é só embromada. É feia. E não deveria ser chamada de “academicismo” apenas porque é usada e incentivada dentro de alguns segmentos acadêmicos que só existem graças à imprecisão e à obscuridade. Se um grupo de teatro de uma grande universidade resolve fazer todo mês uma interpretação da centopeia humana no meio do Departamento de Artes, um entusiasta de pornografia escatológica que encontrasse algo parecido no submundo da internet poderia chamar aquilo de “academicismo”?


4.3. Mas talvez a academia mereça ser assim aviltada para perceber que tipo de absurdo tem nutrido.


4.4. Lumena diminuiu a tempestade quando começou a ver seus aliados sendo retirados em cada paredão, mas essa mudança não deveria nos interessar tanto. Interessante é ver como age aquele que conseguiu algum poder discursivo ou grupal. Na vida às vezes encontramos o filho do dono se mostrando um chefe humanitário e motivador – sendo filho do dono, poderia usurpar seu poder para ser tirânico e terrorista –, enquanto uma colega de trabalho calma e que foi recentemente promovida se revela abusiva e arrogante. Pouco me importa como uma identitária autoritária age quando está ilhada. Quero saber do que ela é capaz quando acha que está em posição superior e é sustentada por um grupo que apoia suas incontinências.


4.5. Uma reportagem da BBC tinha a seguinte manchete: “Por que não se pode falar que Lumena está sendo racista contra Carla Diaz”. Lumena disse que Carla era desbotada e tinha falta de melanina, e o jornalista da BBC resolveu nos instruir que o tal “racismo reverso” não existe. Para isso, buscou a opinião de “especialistas” identitários. É como fazer uma matéria “Por que Barbara é na verdade alto-astral e otimista” segundo a especialista Minha Mãe, ou “Por que não se pode dizer que o fascismo é ruim” com base na opinião do especialista Mussolini. Agora existem especialistas em identitarismo que são consultados a sério pelos jornais. 


4.6. Racismo reverso não existe porque o que existe é RACISMO. Identitários inventaram que o racismo depende de relações de poder, mas essa desvirtuação do conceito não deveria ser engolida. Um leitor com o qual me correspondo por e-mail escreveu há alguns meses um ótimo ponto: se o racismo só pode existir do opressor para o oprimido, Hitler não poderia ser chamado de racista ao escrever Mein Kampf. Afinal, ele ainda não era <O PODER> quando escreveu esse livro antissemita – ele era oprimido, ressentido pelo sucesso judeu e naquele momento estava preso. Então só poderíamos chamar Hitler de racista a partir da data em que ele ascendeu ao poder? Não faz sentido.


4.7. E de que escalas de poder estamos falando? Uma chefe negra que humilha uma subordinada branca com base na cor da pele tem <O PODER> para ser chamada de racista ou ainda não? Como é classificado o negro retinto que desdenha de um pardo por sua cor?


5. São engraçadas as pessoas que acham que a moral só melhora, como se o mundo peregrinasse rumo a um estado de perfeição em que se poderá dizer “bem, é isso: chegamos”. Engolir qualquer novidade que se anuncia como “a mais nobre” e começar a cuspir em personagens do passado que não estão alinhados com a nossa localização no fio do progresso é esquecer que nós somos o passado de alguém. Os identitários de hoje – e aqui coloco tanto os líderes dessa seita quanto seus cachorros servis – desdenham pensadores de outros tempos porque acreditam que agora estão muito próximos ao lendário estado de perfeição: um estado que eles, iluminados, nos permitiram alcançar. Seria nosso dever celebrá-los porque é um privilégio que possamos ser contemporâneos de líderes que atingiram uma posição moral nunca antes obtida.


5.1. A ilusão é um navio que vai longe antes que alguém perceba que está furado. Você que olha para o passado e o rejeita também rejeitaria o futuro se pudesse olhar para ele. Porque o futuro terá outras modas morais, outras cruzadas, outras inquisições que fogem à sua compreensão. E esse futuro assombroso, “imoral”, vai olhar para você de volta e menosprezar as suas escolhas. Torça para que ele pense que você era só um sujeito comum seguindo as tendências de seu tempo.


5.2. Seu sagrado identitário tal como é hoje não está garantido à mesa amanhã. Seu líder diz que sim? Era previsível: projetos de ditadores sempre acham que eles serão os responsáveis por finalmente matar a História.


5.3. O futuro pode tanto se livrar do identitarismo – que teria caído após uma crise – quanto ser tão extremamente identitário que os tais oprimidos plenos se tornarão opressores. Querer oprimir eles já querem, e algumas vezes conseguem graças à complacência de abobados que aceitaram a explicação de que “a opressão feita pelo oprimido é a mais correta justiça”. Esse possível futuro é tão tenebroso que você quereria arrancar os olhos se ele aparecesse à sua frente. Enquanto não tem essa visão, você fica aí dando água e adubo para uma planta que considera inocente e graciosa porque fica bem na sua sacada. Toda sequoia já foi uma sementinha que cabia na palma da mão.


5.4. O trágico parágrafo anterior pode ser harmonizado com a abertura da ópera O Guarani, de Carlos Gomes. A partir dos 3 minutos dela acho que é o mais recomendado. Experimente. Muitos professores universitários e cientistas norte-americanos já experimentaram esse tipo de trilha sonora ao perderem seus empregos por causa de ninharias identitárias. 


6. Texto escrito ao som de “Water of love”, do Dire Straits, e outras coisas. 


6.1. Minha formação musical na infância e na adolescência aconteceu por rádio (Rádio Atlântida e Antena 1), pelas músicas que tocavam nas casas dos vizinhos (meu morro em Blumenau sempre foi muito eclético) e por alguns LPs que meu pai punha para tocar (basicamente ABBA e Richard Clayderman). Dire Straits tocava muito no rádio e na casa de vizinhos, mas sempre as mesmas músicas. “Water of love” só vim a conhecer recentemente.


6.2. A Rádio Atlântida já foi um bom, digamos, colégio de formação musical. Na grande época tinha programas excelentes como Depósito (depois transformado em Discorama), As feras do rockPijama Show e Gasômetro (com o Gastão Moreira). Não consigo listar tudo que conheci por meio deles. E perdi as contas de todas as vezes em que fiquei na frente da caixa de som esperando que o radialista dissesse o nome da música e do artista que acabaram de tocar para que eu pudesse anotar no meu caderno, e tudo que dava para entender era que “acabamos de ouvir URWINGT GROHRY com PRISRLYNG SON TROUW”, e então essa informação não servia para nada, e eu sempre planejava escrever para a produção reclamando por que é que tinham que falar tão rapidamente. Hoje a Atlântida é outra rádio. Está imprestável.


6.3. A Antena 1 também decaiu muito. Tocam uma elogiável “Ventura highway”, do America, depois é uma dor de barriga, uma versão estragada Supermercado-Pão-de-Açúcar de algum clássico e Adele. Então finalmente aparece “Georgy Porgy”, do Toto, mas depois há mais três músicas que provocam sentimentos primitivos. Não vale a pena. Hoje minha formação musical continuada ocorre testando coisas no Spotify, no YouTube e no SoulSeek. Meu namorado também sai para desbravar a internet e volta para casa com músicas excelentes para ouvirmos no jantar. 


6.4. A música boa é um universo. Lamento a limitação de quem ouve sempre as mesmas coisas ou se atém apenas ao mainstream. Toda semana conheço o que são para mim novidades – dos anos 50 até hoje.


6.5. Pelas músicas sempre estrangeiras que coloco para encabeçar as postagens, pode parecer que não aprecio o que é feito no Brasil. Não é assim. Gosto desde os Engenheiros do Hawaii gaúchos até a Dona Onete paraense, mas músicas cantadas em português me atrapalham para escrever. Não consigo me desligar de versos que entendo perfeitamente e atravessam o raciocínio. “Essa conjuntura é própria para que apareçam grupos quEEE VACA DE DIVINAS TEETAAS encontram pretextos para empurrar uma agenda LEITE MAU PARA OS CARETAS” – é isso que acontece quando tento pensar uma sentença ouvindo músicas em português. Músicas com vocal em outras línguas às vezes também atrapalham, mas menos.


(Postagem publicada originalmente no blog antigo em 08/03/2021 e atualizada em 01/06/2021.)